Colóquio de Pesquisa em Filosofia da UFSC
Texto: IELA
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A mídia brasileira e a América Latina Por elaine tavares Conferência proferida na I Jornada Latino-Americana – UFRGS – 11 de outubro de 2013
15.10.2013 – Os demais países da América Latina aparecem na mídia brasileira em duas situações bem específicas: ou quando vivem alguma tragédia, ou para serem vilipendiados. É a mesma forma como a mídia comercial trata internamente os empobrecidos e os trabalhadores. E por que? Porque a mídia comercial representa uma classe específica: a classe dominante. Logo, não há interesse em representar aqueles que para os que dominam não passam de incômodo. Vejam os exemplos: Como a mídia comercial trata o governo dos Estados Unidos? A França? A Inglaterra? Geralmente eles tem correspondentes especiais nesses lugares. A economia, a política, a cultura, tudo é mostrado de forma positiva. E se algo ocorre nesses países que seja contrário ao status quo dos mesmos, é mostrado de forma pejorativa. Vejam as greves, os movimentos sociais ou coisas do tipo. Pensem em como a mídia brasileira retratou, por exemplo, o caso do soldado Brad Manning, que denunciou as atrocidades dos EUA no Iraque. Façam a comparação sobre a forma como a mídia está tratando os casos de espionagem dos EUA contra o Brasil. Tudo muito civilizado. Nenhuma palavra desabonadora. Imaginem se a Venezuela estivesse espionando os Estados Unidos? O que pensam que aconteceria? Possivelmente uma guerra e o presidente da Venezuela seria mostrado como um ditador, um bandido, um terrorista. Mas, para falarmos de mídia brasileira, é preciso entender do que estamos falando. Quem é “a mídia” brasileira? Para efeito da nossa fala vamos pactuar que a mídia brasileira é a grande mídia, as empresas comerciais, as emissoras de televisão, os grandes jornais, o rádio. Ou seja, são os meios de comunicação de massa que a maioria da população utiliza para se informar e que, no geral, estão no mercado para garantir lucros. Pouco estão se importando com a informação, o jornalismo, ou a produção do conhecimento. Seu objetivo principal é o lucro.
O segundo objetivo é a manutenção do estado de coisas. Esses meios, que visam o lucro, são também máquinas de ideologia para manter a população alienada das várias faces da verdade. É por conta disso que os movimentos sociais, as lutas dos trabalhadores, a organização popular, as mobilizações etc… nunca são mostradas no seu contexto, como contradições do sistema. Ao esconder esses fatos, as empresas de comunicação se asseguram de que as pessoas vão se manter quietas, sem questionar muito a vida, prisioneiras da mais-valia ideológica, que é uma espécie de escravidão mental. Vou falar disso mais na frente.
Hoje, no Brasil, são entre seis a 11 grandes conglomerados de mídias, os que buscam fazer a nossa cabeça. Alguns deles são familiares como as Organizações Globo (os Marinho), os Sirotski (RBS), os Civita (revistas da Abril), o SBT (Silvio Santos) ou os donos da Bandeirantes, os Saad. Depois temos as igrejas, a Universal (Record), sendo a principal e mais forte. Fora isso, há mais umas três dezenas de médias redes, afiliadas das grandes, que pertencem a senadores, governadores, deputados, vereadores, pouco menos de 20 mil pessoas, segundo o sítio “Donos da mídia”. Toda essa gente representa os interesses delas mesmas como empresas que buscam lucro e os de seus anunciantes, que são outras empresas grandes que buscam o lucro. Nessa ciranda, não há espaço para a vida das gentes. Os trabalhadores e os empobrecidos só aparecem quando são bandidos ou vítimas de tragédia. Se estão em luta, a forma como aparecem é sempre preconceituosa. Claro, há exceções, mas estamos falando no atacado. Vejam como são tratadas as greves e os movimentos sociais. São sempre os trabalhadores e os ativistas aqueles que “atrapalham” o trânsito, que “perturbam” a vida da cidade. São os baderneiros, os terroristas. Essa é a forma óbvia como a grande mídia vai sempre tratar esse segmentos da população, porque é uma gente que quer mudanças. E a mídia representa a classe que quer que tudo fique como está. Então, são peças do tabuleiro da luta de classe. A velha luta entre os oprimidos e os opressores. Nessa luta, são os que oprimem aqueles que detém o poder da força bruta (polícia) e da força ideológica (a comunicação sendo um braço dessa força).
Os demais países da América Latina sempre foram ignorados pela mídia brasileira. Primeiro, porque eram considerados insignificantes demais para serem notícias no jogo de interesses comerciais, por exemplo. Como ao longo de séculos esses países foram, de certa forma, parceiros menores do Brasil, não havia razão – do ponto de vista da classe dominante – para que a vida, a cultura, a economia e a política desses países fossem conhecidos. Desde a formação das repúblicas (1830) até 1959, não acontecia nada que turbasse a “paz” daqueles que estavam acostumados a dominar. Uma pequena “rugosidade” foi a Guerra do Paraguai (1864 a 1870), mas, basta pesquisar os jornais da época para ver como tudo foi tratado. Os Paraguaios eram os “demônios” que precisavam ser destruídos. E assim foi feito. Ao longo de décadas, os países irmãos apareciam no noticiário em situações bem específicas. Seja por conta de tragédias naturais ou fatos bem delimitados, como um golpe de estado, um crime hediondo, alguma coisa folclórica.
1959 foi um ponto de viagem. Os cubanos ousam questionar o poder ditatorial que dominava a pequena ilha do Caribe no mesmo diapasão de toda a América Latina: aliado aos interesses do novo império, os Estados Unidos. Fidel, Raul, Célia, Che, são nomes que começam a crescer no imaginário popular. A revolução cubana, que começa a ser noticiada com frequência, passa a ser vista como uma perturbação total da ordem. Seus líderes passam a ser demonizados. São os comunistas, bandidos, os comedores de criancinha, os que vão roubar as casas, tirar a liberdade, e toda a sorte de outras etiquetas negativas que vão sendo coladas no processo. Poucos são os veículos de comunicação que contextualizam a revolução, que contam o outro lado, que narram a vida através do olhar daqueles que viviam prisioneiros de um sistema que os tornava cada dia mais empobrecidos, prostituídos, degradados. No Brasil, a revolução cubana, a partir do momento em que deixa bem claro seu caráter socialista, passa a ser mostrada como o espaço do demônio.
E foi para preservar os demais países da contaminação do “socialismo” que os Estados Unidos lançam uma ofensiva na América Latina. Não é sem razão que nos anos 60 e 70 proliferam as ditaduras militares em vários países, inclusive no Brasil. Caem sob a mão dos militares também a Argentina, o Chile, o Uruguai, o Peru, a Bolívia. É uma sucessão de governos autoritários que se forma com a ajuda providencial dos Estados Unidos, visando barrar o perigo cubano, a “ameaça comunista”. Naqueles anos, a mídia brasileira igualmente noticiava os fatos nos países vizinhos, com a mesma parcialidade de antes, sempre favorável aos dominantes. Foi um tempo em que, internamente, os veículos também tinham de conviver com a censura. Mas, no geral, as grandes empresas de comunicação se abraçaram com os militares, inclusive angariando vantagens importantes, como foi o caso da Globo, que vicejou naquela período, garantindo empréstimos milionários e importações clandestinas que lhes valeram o salto tecnológico capaz de dominar o país inteiro com seu sinal. Aliada da ditadura, a Globo foi usada para criar uma “identidade nacional”.
Depois, nos anos 80, com a volta da chamada democracia, gradativamente, em quase todos os países da América Latina, a vida seguiu seu curso normal. Poucas notícias dos países irmãos, e sempre na mesma fórmula: tragédia, bandidagem (narcotráfico na Colômbia) ou folclore. É que as democracias, no geral, não representavam qualquer rompimento com a ordem das coisas. No campo econômico e político seguia a dominação por parte dos Estados Unidos, agora através dos empréstimos via FMI. A dependência só aprofundando. Mas, nada disso é discutido na grande imprensa. Agora, na contemporaneidade, a América Latina voltou a aparecer nos meios de comunicação por conta de uma grande viragem política, cultural e econômica que viveu seu pico a partir dos anos 90 do século passado. Primeiro foram os indígenas que começaram a se levantar, com ocupações gigantescas de espaços públicos, como no Equador, a luta armada, com os zapatistas no México, as rebeliões na Bolívia. Depois, veio o fenômeno Hugo Chávez, que deu outra cara para a América Latina. Com ele, toda a lógica de dependência do impérios estadunidense começa a cair e uma nova forma de viver a política também aparece com a democracia participativa.
A Venezuela passa a ser o motor da transformação. Faz uma Constituinte que dá novos contornos ao que seja uma lei magna. A constituição é construída pelas gentes e são criados dois novos poderes, mudando o modelo liberal do constitucionalismo: o poder eleitoral e o poder popular, garantindo autonomia e poder ao povo organizado. No rastro dessas mudanças vem a Bolívia, que elege Evo Morales e o Equador que elege Rafael Correa, ambos com propostas semelhantes de mudanças radicais na transformação da vida. E como a imprensa trata tudo isso? Com a mesma arrogância e desinformação de sempre. Chávez, ao longo de todo o seu trabalho como presidente foi demonizado e até mesmo a sua doença serviu para mais ataques. Evo Morales igualmente, afinal, é um índio. Quando decide nacional o gás e coloca em xeque a ação subimperialista do Brasil, também e demonizado. Houve gente que sugeriu até um ataque militar à Bolívia para defender os interesses do Brasil. É que a Petrobrás tinha curso livre no país e dominava a exploração e distribuição de gás natural com um contrato leonino, para a Bolívia. O que Evo faz é estabelecer contratos justos.
Depois, as batalhas da criação de uma nova Constituição são mostradas no Brasil como total descalabro. Durante o levante dos latifundiários de Santa Cruz, que não queriam a mudança na lei por que não admitiam que os índios pudessem mandar no próprio país, também a imprensa brasileira se limitou a noticiar só os fatos violentos, sem mostrar claramente o que estava em jogo no país. Pouca gente ficou sabendo o que era a proposta do Estado Plurinacional e a revolução cultural em curso.
O Equador, que viveu a criação de uma nova Constituição também foi pouco noticiado. E, quando aparecia era sempre com conotações negativas. A nova lei, inédita no mundo todo, estabelece direitos à natureza, uma virada total de conceitos sobre o que seja a organização da vida, com a apropriação de conceitos milenares, das gentes originárias. Tudo isso ficou obscurecido. Ainda que hoje, europeus e estadunidenses venham para esses países estudar suas constituições, que são as maiores novidades no mundo, no Brasil, o tema é ignorado.
Outras mudanças como as leis de comunicação, que transformaram radicalmente o espectro da informação nesses países, bem como, mais recentemente a Argentina, sempre foram noticiadas com parcimônia. O foco negativo, a abordagem no conflito, sem contextualização que pudesse levar as pessoas a compreenderem o que realmente acontecia. Um caso que serve de modelo foi a não renovação da concessão da RCTV na Venezuela. Para a mídia brasileira era um ato ditatorial do presidente Chávez. Não era dito que a emissora havia burlado as leis e que não havia sido fechada, apenas não tinha sido renovada sua concessão. Ela seguiu existindo e transmitindo na net. A concessão de televisão é uma coisa pública e precisa estar submetida as leis. Mas, isso não era dito.
Os absurdos que são gerados com a desinformação prestada pela mídia comercial chegam ao ponto de ouvirmos coisas como a declaração de uma professora da USP, pasmem, a Maristela Basso, que, falando sobre o país disse ser o mesmo “insignificante” par ao Brasil. Desconhece a professora que o Brasil tem relações comerciais importantíssimas com a Bolívia. Praticamente todo o gás natural consumido aqui vem da Bolívia por um gasoduto de quase três mil quilômetros, movimentando bilhões de dólares. A Bolívia ainda é uma das mais importantes reservas de lítio, um material que está presente na vida de todos nós, nas baterias de celular e outras bugigangas tecnológicas. A Bolívia tem uma história, um patrimônio cultural da grandeza de um Egito, uma Mesopotâmia. Ora bolas, é muita ignorância. E assim poderíamos ficar falando da ação desinformativa da mídia, país por país. Mas, o que precisa ficar bem claro é que isso não é feito por esquecimento ou ignorância. Faz parte da lógica de dominação e manutenção da dependência cultural. Faz parte da manutenção da colonização das mentes e da perpetuação da mais-valia ideológica. Ludovico Silva, um filósofo venezuelano cunhou essa expressão ao mostrar que a pessoa, mesmo quando está em casa, descansando, vendo televisão, continua prisioneira do mundo da produção real. Está o tempo todo sendo levada ao consumismo, a movimentar a máquina do capital. Logo, está sob o domínio da mais-valia ideológica. A mídia, desinformando e criando necessidade, mantém as mentes cativas do sistema, seja na realidade concreta (o consumo) ou na colonização mental (ideologia).
Vocês poderiam dizer que agora temos as redes sociais, a internet livre e isso muda tudo. Em parte. Primeiro que a internet não é livre. Para acessá-la há que pagar e se submeter às regras dos provedores, que são dominados pelos mesmos grupos que dominam os demais meios de comunicação. Mesmo que haja acesso gratuito, ainda assim, a pessoa pode ter o seu blog tirado do ar se o provedor quiser. O facebook bloqueia e desbloqueia o teu perfil quando bem quer, e ainda rouba todas as tuas informações. Isso é liberdade. É certo que muita coisa vaza, isso faz parte da contradição do sistema, mas as jornadas de junho deixaram bem claro que a maioria da população ainda precisa da confirmação da mídia para os fatos. Tanto que quando começaram as mobilizações gigantescas pelo passe livre, o tema bombou na redes sociais e a mídia foi obrigada a ver. Mas, como sempre, inventou novas bandeiras, deu outra conotação para as passeatas e levou muita gente a se mobilizar por coisas que nem conhecia, como foi o caso da PEC do Ministério Público.
Então, o primeiro passo para entender o processo de comunicação é conhecer a realidade dos meios. Não dá para ser ingênuo quanto a “democratização” dos meios de comunicação comercial nesse tipo de estado que temos. Transformações importantes só foram possíveis nos países que citei: Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina, porque lá existem movimentos fortes de luta por uma outra forma de organizar a vida.
No Brasil, pensem comigo: que lei sairia de um Congresso Nacional que tem grande parte dos seus membros como donos ou sócios de empresas de comunicação, ou gente que representa os interesses dos grandes grupos? Se não houver movimento na rua, qualquer lei de comunicação no Brasil seria um arremedo de democracia.
Assim, meus amigo, sinto dizer: mas, para garantir mudanças significativas na nossa vida há que lutar. Uma luta coletiva, séria, baseada no conhecimento das coisas. Sem isso, não avançamos.
Texto: Claudio Katz - Professor UBA/Argentina
Texto: Elaine Tavares
Texto: Rafael Cuevas Molina - Presidente AUNA-Costa Rica
Texto: Lauro Mattei - Professor/UFSC
Texto: Maria Eduarda Furlanetto - estagiária de Jornalismo