Início|Brasil|O golpe de 64 e a desmemória nacional

O golpe de 64 e a desmemória nacional

-

Por Gilberto Felisberto Vasconcellos em 17 de abril de 2024

O golpe de 64 e a desmemória nacional

Brizola e Jango – imagem de um Brasil soberano

Na atualidade prolifera o obscurantismo pentecostal pornô, que seguramente recalca o que sucedeu com a queda de João Goulart; acredito no entanto que não tenha esse o fator explicativo de seu olvido coletivo. Creio que foi mais a cultura do tal Estado democrático de direito, coadjuvado pela telenovela durante meio século com ojeriza ao legado varguista, sem que se deixe de mencionar a universidade pós-moderna com a sua a-historicidade indiferente ao domínio das empresas multinacionais.

A igreja católica com o pastoreio da terra tem permanecido silente por ter participado com Deus, Pátria e Família do golpe. Não houve apoio popular à derrubada do governo João Goulart. Se não há memória viva do que foi a democracia de 30 a 64, por outro lado o povo não comemorou a besteira do marechal Castelo Branco. Essa efemeridade não faz sucesso nem dentro dos quartéis. Os generais de Jair Bolsonaro até que tentaram, mas não surtiu efeito, não vingou; todavia não desistiram da ideia de que um candidato militar que fosse eleito pelo povo. Isso seria a prova de que o povo, passadas algumas décadas, aprovou a atuação das Forças Armadas que desbarataram o perigo comunista. Se tal versão não condiz com realidade, é inegável no entanto que a esquerda ficou perplexa com o voto em Jair Bolsonaro, o qual ainda carece de ser explicado e que induz à questão da consistência da cultura democrática de Sarney a Dilma.

Reconheça-se que Dilma sofreu um golpe branco, que Lula foi preso pela Lava Jato fascistóide articulada pelo consorcio milicojudiciario, mas não obstante tudo isso houve o desejo em Jair Bolsonaro, o candidato da ditadura, da CIA escolhido nas urnas com o apoio da burguesia bandeirante. O governo Jair Bolsonaro foi catastrófico para a classe trabalhadora. O seu significado pode assim ser resumido: o país não precisa de autonomia ou soberania nacional para se desenvolver. E mais: a saberania nacional além de ser inexequível, não é funcional do ponto de vista econômico, não é pragmática, não é próspera, não traz modernização; afinal, a ditadura de 64 merece ser aplaudida por ter sido desenvolvimentista. Curioso e politicamente melancólico, é que muita gente de esquerda ainda que avessa ao golpe de Estado, parece concordar o signo multinacional da modernização por onde aportam-se os pacotes tecnológicos externos.

Os derrotados foram tidos como objetivamente equivocados. Quem foi golpeado (o trabalhismo getuliano) teria sido responsável por sofrer o golpe. Bem feito. A propósito, basta verificar quantos analistas do período ainda hoje colocam a culpa no radicalismo de Leonel Brizola que atrapalhou João Goulart. O triunfalismo imperialista influenciou a historiografia, os militares (aqueles que não se venderam) e os líderes trabalhistas agiram contra si mesmos, enfim, acabou-se o que era doce para Jango e Brizola. Estes no fundo mereceram ser derrubados e exilados (a morte de Goulart nem foi pranteada), e por pouco Brizola não foi assassinado.

A estratégia do esquecimento foi urdida na historiografia universitária. Um estudante em 1968 na Faculdade de Ciências Sociais poderia pós-graduar-se sem nunca ter ouvido falar na campanha brizolista da legalidade de 1961. Ensinado nas aulas era o sociólogo Ítalo-argentino Gino Germani com a sua feijoada eclética funcionalista a misturar o norte-americano anticomunista Talcott Parsons com o antiperonista e stalinista Rodolfo Ghioldi de que resultava uma caricatura do populismo em meio a um proletariado imaturo de origem rural. O tema surrado é repetido do “populismo”, seduziu os sociólogos da USP, mais tarde repartidos em PT e PSDB, ambos adversários e reticentes de Vargas e Peron na América Latina.

Releva afirmar contra o anti-militarismo abstrato que o peronismo e o getulismo não são descrentes da possibilidade de emergir um nacionalismo militar democrático. Os intelectuais brasileiros golpeados (Darcy Ribeiro, Roland Corbisier, Edmundo Moniz) viram no brizolismo getuliano um prelúdio rumo ao marxismo, tal qual o peronismo na Argentina com os marxistas Jorge Spilimbergo e Abelardo Ramos. A amizade de Jango com o Perón foi repudiado pelo Itamarati e pelas Forças Armadas. O gorilaço começou com hostilidade contra Vargas e Peron nas Forças Armadas, culminando com o espectro da “república sindicalista” de João Goulart pró Cuba de Fidel Castro. A palavra operário desapareceu do léxico da esquerda substituído por trabalhador e por empreendedorista. Com a expansão dos meios de comunicação de massa houve a desmoralização da palavra “socialismo”.

Não é nenhuma bizarria julgar os intelectuais e artistas pelo critério de que se ligou ou não ao movimento anti ditadura ocorrido em Porto Alegre. A campanha subversiva da legalidade de 1961 foi menosprezada, assim como é malsonante falar que a ditadura de 1964 teria iniciado com o AI-5 como reação às passeatas de 1968.

 

Últimas Notícias