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Contestado: uma guerra de classes

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Por IELA em 22 de julho de 2020

Contestado: uma guerra de classes

Acabo de ler “Guerra do Contestado: A Organização da Irmandade Cabocla”, da professora Marli Auras, publicado pela Editora da UFSC, há quase quarenta anos. Seguramente, o primeiro livro da historiografia catarinense que analisa este grande conflito (1912-1916) por meio do referencial teórico-metodológico gramsciano, utilizando os conceitos de ideologia, de hegemonia, de pedagogia. 
A obra é fundamental para entender esta guerra de classe, que o oficialismo quando não logrou esconder, tentou mostrar ser apenas uma disputa territorial entre dois Estados da União. Historiadores de plantão, adeptos do “intimismo à sombra do poder”, se prestaram a jogar tanta tinta fora, caracterizando uma luta de classes como se fosse um conflito religioso, ou um levante de fanáticos, ou um ataque de jagunços. “Optei”, diz Auras, “por trabalhar o Contestado reconstruindo a história dos vencidos”.
Marli mostra que a construção de uma estrada de ferro, entre a vila de São Pedro do Itararé (SP) e a vila de Santa Maria da Boca do Monte (RS), traz no seu bojo a modernidade capitalista, com toda a sua barbárie. A penetração do capital estrangeiro transforma a terra da condição de bem de uso para a de mercadoria. Os trilhos que rasgam a floresta destroem o modo de produção camponês, obrigando os sertanejos a se refugiarem nos redutos – as Cidades Santas –, nos quais, “quem tem, mói; quem não tem, mói também, e no final, todos ficarão iguais”. Uma versão atualizada dos “Atos dos Apóstolos” que afirma que tudo era posto em comum entre os cristãos, não havendo necessitados entre eles. Mesmo assim, a Igreja Católica, na figura de frei Rogério, os condena e passa a apoiar as tropas republicanas, chegando a dizer missa para os soldados fardados.
As Cidades Santas foram uma experiência de vida em comum, tanto que habitar no reduto era muito melhor que estar fora dele. Ali não entram as leis capitalistas, mas as comunitárias. São irmandades, nas quais os valores prevalecentes eram a igualdade, a fraternidade, a escolha dos dirigentes pelo consenso do grupo, e a supressão da propriedade privada. Dai a razão da queima dos cartórios e da derrubada das cercas.
O sertanejo, “antes de tudo um forte”, defende a Monarquia – a “lei de Deus” –  e ataca a República  – “a lei do Diabo” -,  porque esta representa o poder dos coronéis, o domínio da estrada de ferro da Lumber, a exploração comercial da madeira, a institucionalização da propriedade privada, a influência da Igreja Católica, os privilégios dos imigrantes europeus. A razão da rejeição republicana não está na forma de governo, mas no trato dado pelos governantes.
As Cidades Santas se organizam em torno de lideranças que vão se sucedendo na medida em que vão morrendo, tendo o cuidado de debater em conselhos as ordens recebidas dos monges desaparecidos, antes de passá-las ao povo. Portanto, de cima só vinha aquilo que de baixo se pedia. Era o “mandar obedecendo”, dos indígenas de Chiapas. Na realidade, o povo sem-terra, sem renda, sem perspectiva, refugia-se no messianismo, sem perder a dimensão da luta do explorado contra o explorador.  
O solo do Meio-Oeste catarinense, ensopado pelo sangue caboclo, vivenciou verdadeiras cenas de horror, praticadas pelo Estado brasileiro na defesa dos interesses oligárquicos nacionais e imperialistas internacionais. Mais da metade do exército republicano participou deste massacre, utilizando-se de armamento pesado e de operações que envolveram o pioneirismo da aviação militar brasileira. Uma vez derrotados, muitos sertanejos foram fuzilados; outros aprisionados e retirados paulatinamente das cadeias para serem degolados ao longo dos caminhos, com seus corpos insepultos; outros ainda presos em campos de concentração; grande número levado para trabalho compulsório nas fazendas da região. A soma dos mortos aponta para 8.000, na sua grande maioria de camponeses. É um povo que ainda dorme o seu cansaço de raça vencida. 
Os nomes de alguns líderes camponeses –  como os de João Maria, José Maria, Maria Rosa, Adeodato  – mostram uma coerência interna dentro do movimento, passando aos caboclos o que necessitam ouvir e fazer; já,  em contraposição, gente como o coronel João Gualberto, o general Mesquita, o capitão Matos Costa, o general Setembrino, são todos militares manchados de sangue que infelizmente, hoje, dão nomes à ruas, à avenidas, à praças, à cidades. Espero que o revisionismo histórico que vem derrubando estátuas e renomeando monumentos mundo afora, chegue ao Planalto Catarinense e a memória dos vencidos se levante. Que os Cruzeiros e as Fontes de Água, onde segundo a tradição “pousou” o monge João Maria, sejam símbolos levantados, respeitados, guardados. 
“Os sertanejos”, diz Marli, “foram sujeitos da história ao construírem a irmandade, seu inequívoco manifesto de rejeição à ordem capitalista em curso. A irmandade, entretanto, ao demonstrar ser francamente insuficiente para vencer essa ordem em constituição, foi esmagada por ela, pela intermediação de cerca da metade do Exército da República Velha, deslocado, na época, para o interior da área contestada” (p. 170).
Um livro que deve ser lido, pois trata de gente de sertão adentro. 
(Marli Auras. “Guerra do Contestado: A Organização da Irmandade Cabocla. Editora da UFSC/Editora Cortez/Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 1984, 204 páginas). Obs: O livro se encontra na 3ª edição.

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