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Lições da experiência chilena (1970-73)

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Por IELA em 13 de setembro de 2017

Lições da experiência chilena (1970-73)

 
Texto de Paulo Cesar De Biase Di Blasio (professor de História e militante do PCB de Nova Friburgo/RJ)
INTRODUÇÃO
O governo da Unidade Popular, presidido por Salvador Allende, impressionou-nos muito. Aos 17 anos de idade, sob ditadura militar, em pleno governo Médici, ouvimos do professor de História a notícia de que um socialista havia sido eleito democraticamente para a presidência do Chile. Para nós era um fato inusitado. Acompanhávamos com os parcos meios disponíveis, as notícias que aqui chegavam sobre o governo Allende. Quando, no dia 11 de setembro de 1973, no Jornal Nacional, da Rede Globo, foi noticiado com grande alarde o Golpe Militar que derrubou Allende, a tristeza foi grande, apesar de não ter sido uma surpresa, pois em junho do mesmo ano havíamos assistido ao assassinato do cinegrafista sueco pelos militares golpistas que tentaram, em vão, derrubar o governo. Esse processo que acompanhamos de longe contribuiu para que nos engajássemos na luta contra a ditadura militar brasileira, direcionando o ódio aos gorilas chilenos para os tupiniquins, participando das eleições de 1974, nas quais a ditadura foi eleitoralmente derrotada.
Nosso breve texto não tem outro propósito senão apenas levantar questionamentos, abrir perspectivas de análise e apontar possíveis caminhos. A experiência chilena, por sua proposta, desdobramentos e trágico fim, obriga-nos a ressaltar a necessidade de uma profunda reflexão sobre ela. Consideramos de fundamental importância para o movimento operário e popular de todos os países, em especial para os da periferia capitalista, uma análise apurada do Governo da Unidade Popular, para que dessa experiência se tire ensinamentos para a prática política dos trabalhadores que lutam contra a exploração capitalista e a dominação imperialista.
Em nosso trabalho, vamos abordar, primeiramente, os antecedentes econômicos, sociais e políticos que permitiram as condições para a ocorrência da experiência popular chilena: sua singularidade na economia, sua estabilidade política e institucional e sua sui generis estrutura social. Num segundo momento vamos traçar a trajetória do governo da Unidade Popular: desde a vitória, passando pela política econômica, pela reforma agrária, pelas crises e por sua derrota. Depois iremos elencar diversas análises e opiniões de cientistas sociais e de dirigentes políticos sobre as causas da derrota da Unidade Popular: ilusões democráticas, apego às instituições burguesas, despreparo militar, esquerdismo ou reformismo. Por último, daremos as nossas conclusões sobre o governo Allende e sobre as causas de sua derrota.
A SINGULARIDADE DO CHILE
As guerras do processo de independência contribuíram para aumentar as dificuldades econômicas dos jovens países latino-americanos. Excluindo os metais preciosos e couros, nenhum outro produto encontrou mercado favorável. As dificuldades sofridas pelo algodão, com a concorrência dos EUA, pelo açúcar, com a produção de beterraba na Europa (o café só a partir de meados do século XIX terá um mercado crescente) irão abalar as economias e desestabilizar os regimes políticos dos países da América Latina, com a exceção do Chile.
Inserido no contexto do sistema colonial como as demais formações sociais da América Latina, o Chile, capitania autônoma, era o mais distante e isolado dos domínios de Espanha. Seu clima temperado e geografia bastante acidentada apresentavam um quadro bem distinto dentre os países latino-americanos. Sua agricultura não oferecia produtos atraentes para o mercado europeu e a sua produção de metais preciosos (prata) era bem inferior em relação ao Peru e Bolívia. A economia não se caracterizava pela exportação de produtos agropecuários para a metrópole. Na realidade, a região chilena estava integrada ao pólo peruano, que consumia a sua produção de trigo e de derivados da pecuária.[1] Essas características particulares do Chile fizeram com que este país não fosse tão afetado e que preservasse o seu modelo político, garantindo uma estabilidade atípica, se comparada com seus vizinhos.
Durante o século XIX, fatores internacionais favoreceram a economia chilena. Ao lado do aumento da exportação de peles e do incremento da produção de minérios – prata e cobre – que se expande a partir de 1825 estimulado pela crescente industrialização européia, o trigo chileno encontrará nos EUA o seu grande mercado. A descoberta de ouro na Califórnia, no oeste norte-americano, com a conseqüente migração, colocará o produto chileno na pauta de importações do grande país do norte, em virtude das facilidades de transporte pelo Pacífico e pelo fato de nenhum outro país latino-americano ter as mesmas condições favoráveis. Deste modo, durante um pequeno período, mas muito importante, o Chile transformou-se no fornecedor estratégico de alimentos da costa oeste dos EUA.[2] A conjunção desses aspectos econômicos também favoreceu para a estabilidade política ao país andino.
Os setores econômicos dominantes no Chile eram a grande burguesia financeira e comercial atrelada ao comércio internacional, e as oligarquias agroexportadoras. A Constituição de 1833 e o governo de Diego inauguraram o predomínio da oligarquia conservadora, expressando todo seu caráter autoritário, católico e avesso a novidades. O regime chileno suportou bem aos solavancos provocados pelo assassinato de Portales (1837) e pela guerra contra a Confederação do Peru e da Bolívia. A partir de 1841 e de 1851 ocorre uma lenta liberalização, ligada às transformações na sociedade chilena geradas pelo desenvolvimento mineiro na bacia do Pequeno Norte e o conseqüente surgimento de uma classe de novos ricos, que introduz na capital um estilo de vida menos austero e tradicional.[3] Essa transição do regime conservador para o liberal vai se concretizar em 1871, com a eleição de Zañartu, o primeiro presidente de origem liberal. A liberalização no Chile não significou um processo de democratização amplo, representando apenas uma ampliação do poder restrito aos grupos econômicos e sociais dominantes. A classe dominante chilena dirigiu o país com firmeza, superando crises sérias como a guerra do Pacífico (1879-1883), da qual saiu vencedora, tornando-se um exemplo vitorioso de política oligárquica na conturbada América Latina. A guerra bem sucedida contra o Peru e a Bolívia assegurou para o país as regiões de Tarapacá e Antofagasta, ricas em guano, salitre e outros minerais. A vitória militar surpreendeu o continente, que passou a respeitar e temer o Chile, sendo o país considerado uma espécie de Prússia latino-americana.[4]
No plano político-partidário, a segunda metade do século XIX evidencia o crescente esvaziamento dos setores conservadores. Do Partido Conservador será formado o Partido Nacional, e, mais tarde, elementos mais avançados do Partido Liberal criarão o Partido Radical. O bloco Nacional-Radical-Liberal, a partir de 1881, desempenhou papel importante na vida política chilena, desbancando os conservadores do poder. A oligarquia liberal realizou importante programa de reformas, afastando-se dos conservadores e da Igreja Católica. Na gestão do governo Balmaceda (1886-1891) implementaram-se reformas econômicas que objetivavam resguardar os interesses nacionais. No que dizia respeito ao salitre, riqueza nacional mais importante, Balmaceda defendia o rompimento do monopólio inglês sobre Tarapacá, além de incentivar a constituição de empresas salitreiras nacionais e de obstaculizar o crescimento das empresas de capital estrangeiro. Balmaceda realizou mudanças nos setores administrativo e tributário, fazendo também reformas no Judiciário, na Saúde e na Educação, investindo na modernização das Forças Armadas, promovendo a ocupação e colonização de novas áreas do território chileno. As reformas moderadas de Balmaceda provocaram a ira dos oligarcas conservadores, que contando com o apoio e financiamento do imperialismo, derrubaram o governo reformista, depois de uma violenta guerra civil. Com o fim do governo Balmaceda, encerrou-se o período do predomínio oligárquico na vida política do Chile, iniciando-se o período parlamentarista, onde o Congresso passou a exercer o poder, o que não alterou, no entanto, a correlação de forças na estrutura de poder do país.[5]
O período parlamentarista (1891-1925) foi caracterizado por significativas mudanças na economia, na estrutura social e política do país. Ampliou-se a abertura para os investimentos estrangeiros, principalmente na mineração, tornando o país altamente dependente deste ramo de produção. A industrialização estava subordinada aos interesses do imperialismo, assim como aos interesses das oligarquias mineiras e agrárias, interligados aos da crescente burguesia industrial chilena. Nenhum desses grupos tinha interesse, e no caso da burguesia industrial também faltava força material e política, em defender uma política protecionista que incentivasse uma industrialização ligada ao mercado interno. Essas três forças sociais e econômicas dominaram a política econômica do Chile no século XIX e parte do atual.
Na composição interna da economia chilena, a agricultura foi perdendo importância para a indústria mineradora e para a grande finança. Após a Guerra Mundial de 1914-1918, o cobre tornou-se o principal artigo de exportação, e com o enfraquecimento do imperialismo inglês, a exploração do minério estava em mãos de empresários norte-americanos. O surto de industrialização decorrente do conflito mundial, semelhante ao ocorrido nos demais países da América Latina, conjugado com a expansão do comércio e a melhoria dos serviços públicos de infraestrutura, criaram condições para o crescimento da classe operária e das chamadas camadas médias assalariadas (empregados do setor de serviços e funcionários públicos) e não-assalariadas ( profissionais liberais, etc.). Paulatinamente, os setores médios passaram a substituir nos cargos públicos os membros das oligarquias tradicionais, o mesmo acontecendo nas forças armadas, nos partidos políticos, nos negócios e nas profissões liberais. Essa crescente participação dessas camadas médias aumentava seu peso político na vida do país, reivindicando maiores espaços de atuação. Um reflexo desse incremento social e político da “classe média” foi a eleição de Arturo Alessandri, considerado seu representante, em 1920. É também nesse período que se constitui o Partido Comunista Chileno, em janeiro de 1922, que tem suas origens no Partido Socialista dos Trabalhadores, fundado por Luíz Emílio Recabarren, em 1912. A classe operária chilena, basicamente no setor de mineração sob o domínio imperialista, surge antes mesmo da configuração de uma burguesia nacional. As primeiras manifestações operárias de relevância ocorrem nas áreas salitreiras e são reprimidas violentamente pela força pública. Como ocorreu em Iquique, em 1907, região que concentrava mais de 15 mil trabalhadores, com centenas de mortos e feridos.
Nos anos 20, a economia chilena, de alto nível de integração com o mercado mundial em proporções per capita,[6] já dá sinais de enfraquecimento. O salitre do Chile passa a sofrer a concorrência do salitre sintético alemão. A crise social amplia-se: aumenta a inflação, queda do poder de compra dos salários, desemprego, greves operárias e amplo descontentamento da população. A esses fatores soma-se a alta rotatividade ministerial e a corrupção administrativa do governo, evidenciando que o regime parlamentarista estava com os seus dias contados. Os militares violam a ordem constitucional e depõem o presidente em 1924. Sob forte pressão militar, o Congresso aprovou várias leis de caráter social (código do trabalho, seguro social de doença e invalidez). Um contragolpe militar reconduz Alessandri ao governo e uma nova Constituição é aprovada através plebiscito. A nova carta estabelecia a separação entre Estado e Igreja, o regime presidencialista com eleições populares, o fortalecimento do poder executivo e até princípios avançados, como a função social da propriedade e saúde pública.[7]
A crise econômica mundial de 1929 cai como uma bomba sobre a economia chilena, cujo grau de integração ao sistema internacional de divisão de trabalho era maior que a do Brasil, México e Argentina, portanto sendo seriamente abalada. A queda da produção industrial nos países importadores acarretou uma liquidação de estoques e um colapso da produção nos países exportadores. Os países, como o Chile, exportadores de produtos minerais, foram violentamente afetados pela queda dos preços e do volume exportado. Entre 1925-1929, o Chile produzia 18% da produção mundial de cobre, só abaixo dos EUA e o cobre representava 40% das exportações chilenas. Com a crise, as exportações chilenas de minérios caíram em 33%.[8] A crise de 29 expôs a fragilidade do modelo econômico exportador e dependente, e reorientou a economia no sentido de uma maior intervenção estatal em alguns setores, como nas finanças e na exploração do petróleo, e adotou uma nova política de proteção aduaneira, que deu um novo impulso à industrialização. Nesse aspecto, o Chile vai se destacar, no contexto latino-americano, pelo rápido crescimento industrial no processo de substituição de importações. Se em 1929, a participação do setor industrial no PIB era de apenas 7,9%, bem inferior ao Brasil, Argentina e México, o Chile em 1957, segundo Celso Furtado, será o país latino-americano de maior crescimento de coeficiente industrial.[9] Em decorrência desse processo, é também no Chile onde há a queda mais significativa das importações. Em 1934 foi aprovada a primeira lei de imposto de renda (18%) e com a criação da CORFO (Corporación de Fomento de la Produción) essa taxa é majorada para 33%. O objetivo é dotar o Estado de recursos para a chamada interiorização da indústria do cobre, ou seja, integrar essa indústria, que antes era um enclave, à economia nacional.[10] A CORFO representa o ponto de partida para a segunda fase da industrialização chilena, pois caberá a ela elaborar e executar um plano de eletrificação para o país, criar as bases de produção e refino do petróleo, instalar uma moderna siderúrgica (Huachipato), desenvolver a produção de açúcar de beterraba, promover a produção de papel, entre outros projetos.
Na década de 1930, o Chile passa por uma experiência inédita no continente. Em junho de 1932, a confluência da insatisfação da jovem oficialidade das Forças Armadas com a intensa propaganda das forças socialistas dos trabalhadores e intelectuais gerou o movimento revolucionário liderado pelo Brigadeiro Marmaduke Grove, que proclamou a “República Socialista”, dando início a uma ampla democratização. No plano econômico, o novo governo começou a colocar em prática várias medidas que transformariam as estruturas da sociedade chilena: reforma agrária, nacionalização das minas de salitre, o controle sobre o comércio exterior, imposto sobre as grandes fortunas e pleno emprego. No entanto, o novo governo não dispu­nha de uma sólida base de sustentação social e política, na medida em que o movimento operário e popular organizado era ainda fraco. A posição eqüidistante do PCCh em relação ao governo Marmaduke, consoante com a política sectária do social-fascismo da Internacional Comunista, contribuiu para o enfraquecimento do governo e a sua derrubada mediante golpe militar, que expressava os interesses burgueses e imperialistas.[11]
Também nos anos 30, os partidos populares (o Partido Socialista é fundado em 1933) e organizações de massa (sindicatos, central de trabalhadores e confederações camponesas) canalizaram a insatisfação da classe operária e dos setores da pequena burguesia, levando-os a apoiar os candidatos progressistas do Partido Radical, o que predominou até 1950. A Frente Popular, que elegeu Pedro Aguirre Cerda, em 1938, e a Aliança Democrática, que apoiou a candidatura de González Videla, em 1946, foram exemplos dessa política de coalizão.
Na década de 1950, verifica-se o crescimento do movimento operário e popular. Católicos, comunistas, socialistas, radicais e independentes formaram, em 1953, a CUT – Central Única dos Trabalhadores, de cunho socialista, defendendo a propriedade social dos meios de produção. No plano político partidário, as forças de esquerda rompem com a subordinação à política dos partidos burgueses, apresentando candidato próprio nas eleições de 1951(o socialista Allende) pela Frente do Povo. Em 1956, surge a Frente de Ação Popular (FRAP), que encabeçada por Allende, é derrotada pelas forças de direita representadas por Jorge Alessandri, em 1958. A Democracia Cristã, principal força do reformismo burguês, fundada em 1957, ocupou, nos anos 60, o papel de partido político alternativo para conter o avanço do movimento operário e popular. O PDC reunia camadas médias urbanas, parcela do proletariado e setores cristãos próximos da Ação Social Católica.
Antes de entrarmos na década de 1960, é importante abordar rapidamente a questão agrária e a política do cobre. No campo chileno, entre 1950 e 1960, o minifúndio correspondia a 36,9% das propriedades e a uma área de 0,2% das terras, enquanto que o latifúndio detinha 6,9% das propriedades e 81,3% das terras. O latifúndio no Chile sempre ocupou posição predominante tanto no aspecto de organização da produção quanto como fonte de emprego no campo. O tamanho médio do latifúndio chileno era 1500 vezes maior que o tamanho médio do minifúndio. A concentração de terras era muito grande, de acordo com Celso Furtado: “Se relacionamos o tamanho médio do latifúndio com o do minifúndio, encontramos um coeficiente de concentração no Chile três vezes maior que no Brasil e na Colômbia e cinco vezes maior que na Argentina.” [12] Esse quadro de concentração e a baixa produtividade faziam com que fosse necessário o governo canalizar divisas para a importação de alimentos para suprir as deficiências produtivas da agricultura chilena.
Quanto à política do cobre, o Chile foi prejudicado pelas empresas mineradoras norte-americanas, que, durante a Segunda Guerra e a Guerra da Coréia, praticaram uma política de preços baixos para o produto à revelia do governo chileno, beneficiando os EUA no esforço de guerra. Ficava claro para a classe dirigente chilena e para amplos setores da população que o país não poderia ficar tão vulnerável e à mercê dos interesses estrangeiros. A pressão da opinião pública fez com que o governo procurasse intervir mais diretamente nesse setor. Um acordo entre Chile e EUA garantiu que 1/5 da produção de cobre caberia ao governo chileno, que o compraria a preços de N. York e o venderia a preços mais altos no mercado internacional. Essas transações renderam ao Chile 190 milhões de dólares de lucros, entre 1952 e 1955.[13] Com o objetivo de aumentar a produção foi aprovada, em 1955, uma nova lei que reduzia a carga tributária das empresas e simplificava o sistema fiscal, além de criar o Departamento do Cobre, que mais tarde passará a ser a Corporación Chilena del Cobre.
No início da década de 1960, o quadro político se apresenta com dois campos bem distintos e opostos. De um lado as forças burguesas de direita – liberais, conservadores, radicais e democratas-cristãos, estes representando os setores médios, e de outro as forças de esquerda – socialistas e comunistas. Em 1964, a Democracia Cristã apresenta um programa reformista (Revolução em liberdade) pretendendo resolver os problemas concretos da economia do país (inflação, desemprego, baixa produção agrícola, dívida externa). Nas eleições desse ano, Eduardo Frei do PDC derrota Allende, mais uma vez o candidato das forças de esquerda. O programa da DC está diretamente ligado ao novo quadro político do continente, marcado pela Revolução Cubana, pregando reformas com liberdade, contando com o apoio do imperialismo norte-americano, neste momento engajado no projeto “Aliança para o Progresso”, procurando assim contrapor-se à influência cubana no continente. O governo de Frei, cuja base social é formada por estratos pequeno-burgueses e por grupos de trabalhadores da cidade e do campo, representará os interesses da grande burguesia e do imperialismo.[14]
O governo de Frei (1964-1970) não conseguiu solucionar os problemas da sociedade chilena. Sua política para o cobre só atendeu aos interesses do imperialismo e não conseguiu atingir seus objetivos, que eram aumentar a produção e a integração da indústria mineradora à economia do país. A demagogicamente chamada “chilenização” do cobre, mediante nova lei em 1966, significava a participação do Estado no controle acionário das empresas. O Estado passaria a comprar ações das empresas, para assim ter acesso aos centros de decisão que controlam a oferta do cobre nos mercados internacionais. Na realidade esse processo consistiu em uma tentativa para interessar as grandes empresas e centros financeiros internacionais para o esforço visando aumentar, a médio prazo, a produção de cobre do país. E na concretização desse plano, o Estado chileno, além do grande esforço financeiro, fez concessões em demasia: aval do Estado para empréstimos internacionais e a compra das ações por valor muito superior ao valor contábil do patrimônio das empresas (no caso da Kennecott estima-se que o seu valor real foi quadruplicado).[15]
O governo da democracia cristã também tentou resolver o problema da agricultura, implementando uma reforma agrária. A questão agrária era um dos grandes problemas do país, em virtude da incapacidade da agricultura para criar excedentes agrícolas necessários para atender à crescente urbanização do país, preocupando até os setores mais conservadores (a primeira lei de reforma agrária foi aprovada durante o governo conservador de Alessandri, sem efeito, porém, pois foi apenas um compromisso formal no quadro da Aliança para o Progresso). Nas últimas duas décadas, a produção agrícola havia aumentado menos que a população do país, o que significava uma crescente necessidade de importar alimentos. Do mesmo modo, o nível de renda da população camponesa era por demais baixo e diminuía em relação à média nacional.[16] Em 1967, um conjunto de leis desencadearam o processo de reforma agrária : alteração do direito de propriedade, a lei de sindicalização rural e a nova lei de reforma agrária, que autorizava a desapropriação de propriedades mal exploradas ou controladas por sociedades anônimas e das terras irrigadas acima de 80 hectares. O governo democrata-cristão desapropriou, entre 1965 e 1970, 1.408 propriedades com uma área de 3.563.554 hectares, sendo 290 mil irrigados. Com o recente, moderado e lento processo de reforma fundiária, a agricultura chilena não conseguiu aumentar, como se esperava, a produção em tão pouco tempo. Não obstante a timidez da reforma (apenas em terras improdutivas indenizadas), os partidos do campo popular e a CUT fizeram um grande trabalho de conscientização e organização com os camponeses, contribuindo para a criação de cooperativas e de organizações sindicais rurais (Confederação Nacional Camponesa, Associação Nacional de Pequenos e Médios Proprietários Agrícolas e Federação Nacional dos Operários Agrícolas). Todas essas mudanças ocorreram sem grande reação, em virtude da pequena população rural e da queda de força política dos latifundiários. Registre-se que no período entre 1967 e 1969, o movimento popular entra em ascensão, aumentando os números de greves, ocorrendo a primeira greve geral dos camponeses chilenos.
No início dos anos 70, a estrutura social do Chile também se distingue dos demais países da América Latina. A classe operária distribuída entre a indústria, construção, agricultura, transporte e outras atividades representava 46,6% da população. A chamada classe média assalariada englobava 21,7%. A pequena burguesia composta por pequenos proprietários rurais, comerciantes e artesãos reunia 29,1%. A burguesia representava 2,6% da população total do país. Comparando alguns desses dados com países capitalistas avançados, podemos constatar que a contingente operário no Chile era superior ao do Japão (41,7%), da França(44,7%) e ao dos EUA(40,0%). É verdade que, em relação a esses países, no Chile a indústria e a construção empregavam menos trabalhadores. Mas referente à classe média assalariada, suplantava a Espanha(11,1%), a Itália(17,0%) e o Japão (13,7%) em 1971. A pequena burguesia chilena era mais numerosa que a da França (22,2%), da Grã-Bretanha(6,4%) e dos EUA (9,3%).[17] Esses dados comprovam que a estrutura social chilena em muito se diferenciava dos países da América do Sul e se aproximava bastante dos países capitalistas mais avançados, destacando-se o grande peso dos setores médios, aí compreendidos a pequena burguesia e a classe média assalariada.
Na estrutura do PIB do Chile em 1970, em custos de fatores e preços de 1960, cabia à agricultura, 9,8%, à indústria mineira, 10,3%, ao setor manufatureiro, 25,2%, à construção, 4,2%, aos serviços básicos, 12,0%, e a outros serviços, 38,5%. E na composição interna do setor manufatureiro em 1971, à indústria de bens não duráveis correspondia 57,8%, o setor de insumos e produtos intermediários (química, derivados de petróleo, carvão, borracha, minerais não-metálicos e metalurgia básica) ficava com 33,2% e à indústria de bens de capital e de bens duráveis cabia 9,0% da produção. Esses dados demonstram que a indústria pesada chilena encontrava-se em posição bem inferior em relação ao Brasil (37%) e à Argentina (34,2%), e bem abaixo da média da América Latina (19,2%). No quadro da industrialização latino-americana, o Chile ocupava uma posição intermediária, sendo suplantado por Brasil, Argentina e México.[18]
No que tange à composição interna da classe trabalhadora chilena, a agricultura detinha 21,2% do total de 2.604.000 trabalhadores em 1971. O setor mineiro empregava 2,9%; a indústria, 16,0%; a construção, 5,7%; os serviços públicos, 28,0%; o comércio, 11,6%; o transporte, 6,0%; outras atividades assalariadas, 8,6%.[19] Apesar desses dados não distinguirem as diferenças entre operários e empregados não-produtivos, podemos verificar que os serviços públicos empregavam um grande contingente da classe trabalhadora chilena, a maioria, em termos relativos. Números que confirmam o grande espaço social ocupado pelos setores médios na sociedade chilena. No entanto, unindo os totais referentes aos setores produtivos (setor mineiro, indústria, construção e transporte) chegamos aos 30,6%, superando assim, por pequena margem, o percentual dos serviços públicos.
Voltando ao campo político, o governo Frei aprofundava o seu desgaste em virtude do fracasso de sua política no plano econômico e social. O processo inflacionário é ascendente (1967- 21,9%; 1968- 27,9%; 1969- 40%; e nos cinco primeiros meses de 1970- 20,5%). Em 1968, o serviço da dívida externa consumiu 35,8% do valor total das exportações. As medidas do FMI e do BID (congelamento dos salários, redução dos gastos sociais e desvalorização da moeda) adotadas pelo governo Frei provocaram recessão e desemprego, que chegou a 6% em Santiago e 10% nas províncias. A insatisfação operária e popular aumentava, recrudescendo o movimento grevista. Esse descontentamento se refletiu também nas eleições municipais de 1967, quando a DC teve seu capital eleitoral reduzido de 42% para 36%, enquanto que as forças da FRAP cresciam para 30% do eleitorado, e no pleito suplementar para o Senado, do mesmo ano, em que os candidatos governistas foram vencidos. A derrota política da DC foi expressiva, considerando-se que Frei engajou-se pessoalmente nas eleições, acontecimento inédito na história do Chile. O insucesso da política da DC gerou divisões no partido: uma ala de direita, liderada por Frei, e outra, de esquerda, composta por membros da classe média, que esperavam mudanças mais radicais. Alguns membros dessa fração da DC fundará o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), liderado por Jacques Chonchol, em 1969. O setor mais conservador da classe dominante chilena, a oligarquia agrária-financeira, também estava descontente com o governo da Democracia Cristã, que foi acusado de ser responsável pelo quadro de agitação social, tendo despertado as massas com suas reformas. A extrema-direita começará então uma campanha de desqualificação de Frei e de seu governo.[20]
O quadro político para as eleições presidenciais de 1970 delineava-se com a disputa equilibrada de três forças políticas de considerável peso. A oligarquia agrária-financeira pró-imperialista lançou o ex-presidente Jorge Alessandri, com um programa contra a nacionalização do cobre, alegando o país prescindir da ajuda técnica e financeira dos EUA; contra a reforma agrária, que pelo fracionamento das terras diminuiria a produção agropecuária; defendia o fortalecimento do poder executivo em detrimento do Congresso. A campanha eleitoral dos conservadores foi acentuadamente anticomunista.
A Democracia Cristã enfraquecida politicamente, sem a mesma unidade de antes, e com o descontentamento interno com o fraco desempenho do governo Frei, dirigido pela ala direita do partido, apresenta o ex-senador e embaixador do Chile nos EUA, Radomiro Tomic, que, objetivando atrair setores operários e populares, propugnava pela via não capitalista do desenvolvimento do país.[21]
A Unidade Popular, que congregava socialistas, comunistas, católicos do MAPU, liberais dos Partidos Radical e Social-Democrata, e independentes do Movimento de Ação Popular (API), defendia como sua a tarefa de construir uma sociedade socialista com liberdade, pluralismo e democracia – uma proposta sem precedentes na história do movimento operário e popular mundial. A UP reunia as principais forças da esquerda (PC e PS), ficando de fora o novo, pequeno e aguerrido Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR), de inspiração cubana, fundado em 1965. Em seu programa, a Unidade Popular almejava o estabelecimento de um novo Estado com outro caráter de classe e a eliminação do poder do capital monopolista tanto nacional quanto estrangeiro e do latifúndio, para iniciar a construção do socialismo. A transformação proposta visava a formação de uma área de propriedade social, estatal, que reuniria as empresas nacionalizadas da grande mineração de cobre, salitre, ferro e carvão; todo o sistema bancário; o comércio exterior; os serviços de telecomunicações; e os monopólios industriais estratégicos. A proposta de governo da UP defendia o aprofundamento da reforma agrária no campo, onde haveria três tipos de propriedade: estatal, individual e cooperativada. Quanto à política externa, a UP propunha a autonomia política e econômica do Chile; o estabelecimento de relações com todos os países do mundo; denunciava a OEA como um instrumento dos EUA; e a revisão, denúncia ou condenação dos tratados e convênios que limitassem a soberania chilena. No plano político-institucional, propunha uma nova estrutura de poder, construída pela base, através de um processo de democratização e mobilização organizada das massas, onde o poder seja exercido pelos trabalhadores, camponeses e setores progressistas das camadas médias do campo e da cidade; uma nova Constituição legitimaria a incorporação maciça do povo ao poder estatal; a substituição do sistema representativo de duas câmaras pela Assembléia do Povo; a restruturação da Justiça, sendo os membros da Suprema Corte indicados pela Assembléia do Povo; afirmava que as transformações revolucionárias seriam realizadas dentro dos marcos institucionais e que o governo garantiria o exercício dos direitos democráticos e respeitaria as ga­rantias individuais e sociais de todo o povo, sem as restrições impostas pela burguesia, garantindo também à oposição o respeito pleno dos direitos exercidos dentro dos limites legais, – ficando clara a escolha pela via pacífica para a realização das mudanças.[22] Em suma, a UP se propunha a instaurar o socialismo através da transformação gradual da economia, da sociedade e do Estado chilenos. Para o Partido Comunista, força hegemônica da UP, esse programa correspondia às tarefas colocadas pelo caráter da revolução chilena: anti-imperialista, antioligárquica e antifeudal.[23]
Com a burguesia dividida nas eleições presidenciais de 1970 entre o conservador Alessandri, pela direita, e o democrata-cristão Tomic, pelo centro, a frente de esquerda Unidade Popular, encabeçada mais uma vez por Allende, sai vitoriosa. Num universo de 2.962.743 votos válidos, cabendo a Tomic 27,8%, Allende se elege com um terço dos votos (36,3%), derrotando Alessandri, o segundo colocado, que obteve 34,9%.[24] A vitória da Unidade Popular, com cerca de um terço do eleitorado, ocorreu em virtude do crescimento do movimento operário e popular, do apoio das camadas médias e, eleitoralmente decisivo, da divisão das forças burguesas, que avaliavam cada uma poder vencer a esquerda isoladamente.
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