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Proletariado digital, serviços e valor

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Por IELA em 28 de agosto de 2019

Proletariado digital, serviços e valor

Foto: Nelson Almeida/AFP

A explosão do trabalho intermitente 
As mais distintas modalidades de trabalho presentes no capitalismo informacional-digital-financeiro, ao contrário de tornarem inoperante a lei do valor, vêm ampliando suas formas de vigência, ainda que frequentemente sob a aparência do não-valor. Um valor torna-se um não- valor para criar mais-valor. Impossibilitado de se valorizar sem realizar alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto, o capital procura aumentar sua produtividade do trabalho, ampliando os mecanismos de extração do mais-valor mediante a expansão do trabalho morto corporificado no maquinário tecnocientífico-informacional e também pela intensificação e diversificação do trabalho vivo, recriando novas formas de exploração e mesmo de superexploração da força de trabalho (Antunes, 2009 e 2018; Sotelo Valencia, 2012). 
Nesse movimento, todos os espaços possíveis tornam-se potencialmente geradores de mais-valor, uma vez que os serviços que foram privatizados fizeram florescer novos mecanismos utilizados pelo capital, mecanismos estes desempenhados pelos trabalhadores e trabalhadoras (contemplando sempre a dimensão de gênero) que atuam nas tecnologias de informação e comunicação (TIC), call center, telemarketing, hotelaria, limpeza, comércio, fast-food, hipermercados, trabalho de care (cuidados) etc., que frequentemente realizam trabalhos intermitentes, temporários, informais, autônomos, desregulamentados, à margem da legislação social protetora do trabalho. 
Um exemplo recente dessas “novas” formas de exploração do trabalho é encontrado na Itália, onde se desenvolveu uma modalidade de trabalho ocasional e intermitente, o trabalho pago a voucher pelas horas efetivamente trabalhadas. Uma vez que o trabalho pago por voucher obrigava o empresariado italiano a pagá-lo pelo salário mínimo legal (por hora trabalhada), esse mesmo empresariado não poucas vezes oferecia mais horas de trabalho excedentes, porém por um valor abaixo do mínimo obrigatório, o que significa uma precarização e uma superexploração ainda maiores do trabalho ocasional e intermitente. Os trabalhadores imigrantes foram, por certo, intensamente atingidos por essa pragmática nefasta que finalmente foi derrotada pelo sindicalismo italiano. Podemos citar também o exemplo do zero hour contract, forma de trabalho que se desenvolveu no Reino Unido e hoje se encontra em praticamente todos os países, ainda que com denominações diferenciadas. Nesse tipo de contrato, não há determinação prévia de horas de trabalho, pois o trabalhador fica à disposição do empresário, esperando sua chamada, independentemente do tempo que permaneça ocioso. E, quando é chamado para realizar alguma atividade (predominantemente de serviços), recebe estritamente pelo que fez e nada pelo tempo que ficou ocioso. E os capitais informáticos globais criaram, assim, uma nova forma de escravidão digital, que não para de se expandir. É por isso que a flexibilização total do mercado de trabalho é por eles exigida. 
O caso mais emblemático é o da Uber, em que trabalhadores e trabalhadoras com automóveis próprios (seus instrumentos de trabalho) arcam com despesas de previdência, manutenção dos carros, alimentação etc., configurando-se como um assalariamento disfarçado de trabalho “autônomo”. E, ao fazê-lo desse modo, as empresas se eximem dos direitos trabalhistas, burlando abertamente a legislação social em diversos países onde atuam. Com o trabalho on-line, que gera uma forte ampliação do tempo disponível para o trabalho, amplia-se ainda mais o que venho denominando escravidão moderna na era digital (Antunes, 2018). 
Por que, então, essas modalidades de trabalho da era digital deixaram de ser a exceção para se tornar a regra no capitalismo da era digital-informacional? Como veremos, esse conjunto de mudanças no universo dos serviços fez com que, em grande parte, estes deixassem de ser improdutivos para o capital e se tornassem geradores de valor e de mais-valor. 
O trabalho nos serviços, produção imaterial e valor 
Devemos a Marx a distinção seminal entre produção material e produção imaterial, particularmente quando o autor apresenta sua hipótese de que, para ser produtivo, não é mais necessário trabalhar manualmente, mas ser parte de um órgão do conjunto do trabalho produtivo, executando qualquer uma de suas funções. Acrescenta ainda que, se a predominância da produção material é válida para o conjunto da produção coletiva, ela não é mais válida para o trabalho tomado isoladamente (Marx, 2013, p. 577). 
A proposição marxiana acrescenta que só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista, isto é, aquele que participa do processo de valorização do capital. Marx cita o exemplo do professor, cuja atividade se encontra fora da esfera da produção material: o professor de uma escola privada é também produtivo, quando atua sob o comando direto do capitalista, dono da “fábrica de ensino”. E lembra que o mesmo professor, quando atua na escola pública, é improdutivo, pois cria somente um valor de uso, ao contrário do primeiro, que gera valor de troca. E isso ocorre porque o professor da escola privada se insere em uma relação social voltada prioritariamente para a valorização do capital (Marx, 2013, p. 578). 
Com isso queremos enfatizar que Marx reconhece a existência de atividades não materiais ou imateriais necessárias para a valorização do capital, mesmo sabendo que a produção material é a forma dominante de produção no capitalismo. Isso remete a um outro ponto central, referente aos significados de trabalho produtivo e improdutivo. 
Em nossa leitura de Marx, o trabalho produtivo 
1) ocorre quando cria mais-valor e valoriza o capital; 2) é a modalidade de trabalho paga por capital-dinheiro, e não por renda. Ao contrário, o pagamento por renda é aquele que caracteriza o trabalho improdutivo, que cria valores de uso, e não valores de troca; 3) é aquele que resulta do trabalho coletivo, social e complexo, e não mais individual. É por isso que Marx afirma que não é o operário individual que se converte no agente real do processo de trabalho em seu conjunto, mas, sim, uma capacidade de trabalho socialmente combinada; 4) é aquele que valoriza o capital, não importando se o resultado de seu produto é material ou imaterial; 5) depende de sua relação social e da forma social como se insere na criação e valorização do capital. É por isso que trabalhos idênticos quanto à sua natureza concreta podem ser produtivos ou improdutivos, dependendo da relação com a criação do valor; 6) tende a ser assalariado, mas o inverso não é verdadeiro, isto é, nem todo trabalho assalariado é produtivo. 
Em contrapartida, o trabalho é improdutivo quando cria bens úteis e não está voltado para a produção de valores de troca. É por isso que o capital suprime todo trabalho improdutivo que é desnecessário, além de realizar a fusão entre atividades produtivas e improdutivas, sempre que possível. 
No Livro II de O capital, Marx indicou importantes hipóteses para compreender as atividades de produção imateriais, especialmente em alguns setores de serviços. Sua principal indicação aparece quando, ao analisar a “indústria de transporte”, o autor demonstra que há nessa atividade o desenvolvimento de um “processo de produção dentro do processo de circulação” (Marx, 2014, p. 231). E essa indicação é central para que ocorra uma melhor intelecção dos serviços (parte deles) como geradores de valor. Como Marx tem uma concepção ampliada de indústria, que inclui vários setores dos chamados serviços, torna-se possível compreender por que há um “processo de produção” no ramo do transporte, armazenamento, indústria do gás, ferrovias, navegação, comunicações etc., mesmo que essas atividades sejam geradoras de produção imaterial. A indústria de transportes, constituindo-se em uma forma de produção imaterial que atua na esfera da circulação, além de ser imprescindível para a concretização da produção material e da efetivação do mais-valor na produção de alimentos, faz vicejar dentro dela um “processo de produção” sem que nada de material seja efetivamente produzido. 
Sabemos que esses exemplos não significam que o mais-valor seja criada fora da produção. Mas, no Livro II de O capital, Marx indica claramente que a produção não se limita à sua esfera material (ainda que esta seja dominante). É por isso que a formulação marxiana também destaca que uma coisa é gerar lucro, outra é criar mais-valor. Ao tratar do comércio no Livro III, Marx desenvolveu a tese de que a atividade comercial, embora seja necessária para a venda do que foi produzido, não gera mais-valor, sendo por isso improdutiva (Marx, 2017, em especial cap. 17, “O lucro comercial”). Ela se apropria de parte do mais-valor gerado na indústria, mas não é responsável por sua criação. Por isso Marx afirma que os trabalhadores do comércio têm similitudes com os demais trabalhadores: é um assalariado como qualquer outro, comprado como capital variável pela burguesia comercial, e não como renda (Marx, 2017, p. 334). Mas acrescenta que há uma diferença fundamental – a mesma existente entre o capitalista industrial e o comercial. Isso porque o proletariado industrial gera mais-valor, o que não ocorre com o assalariado do comércio (Marx, 2017, p. 334). 
Em pleno século XXI, dadas as profundas mutações vivenciadas pelo capitalismo da era digital-informacional-financeira, é decisivo que se ofereça uma intelecção atualizada acerca do papel do trabalho nos serviços para a criação de mais-valor. Já indicamos anteriormente que estamos verificando o nascimento de novas formas de extração de mais-valor, especialmente nos setores de serviços e de produção não material que se expandem contemporaneamente. Isso porque a transformação mais notável da empresa flexível não foi a conversão da ciência em principal força produtiva (Habermas, 1975), mas, sim, a imbricação progressiva entre trabalho e ciência, imaterialidade e materialidade, trabalho produtivo e improdutivo (Antunes, 2018; Antunes e Praun, 2015; Vinícius Santos, 2013; Lojkine, 1995; Mészáros, 2004). 
O crescimento do fenômeno social que Ursula Huws denominou cybertariado (Huws, 2003) e Ruy Braga e eu concebemos como infoproletariado (Antunes e Braga, 2009) é um forte exemplo da ampliação das atividades de serviços, que vêm participando crescentemente do processo de valorização do capital. Cada vez mais integradas nas cadeias produtivas de valor, convertem-se em partícipes decisivos do processo de geração do valor do capitalismo de nosso tempo. Tanto os trabalhos materiais quanto os imateriais, estando cada vez mais inter-relacionados nas cadeias produtivas, tornam-se parte integrante e subordinada à forma-mercadoria (Tosel, 1995; Lojkine, 1995; Antunes, 2018). 
Outro exemplo dessa ampliação da lei do valor nas esferas anteriormente consideradas improdutivas evidencia-se na tendência global de expansão da terceirização em todos os ramos da produção e em particular nos serviços. Isso porque a terceirização é um dos mecanismos vitais do capitalismo para intensificar a exploração do mais-valor e, desse modo, aumentar a valorização do capital em setores que, no passado, eram desprezados. A expansão global de empresas terceirizadas que oferecem amplos “serviços industriais” é exemplar. 
A Foxconn, por exemplo, é uma fábrica do setor de informática e tecnologias de comunicação que vem se expandindo na China e segue o modelo do Electronic Contract Manufacturing, isto é, trata-se de uma empresa terceirizada global que monta produtos eletrônicos para a Apple, Nokia e várias outras transnacionais. Na unidade de Longhua (Shenzhen), onde são montados os iPhones, desde 2010 aumentou muito o número de trabalhadores que cometem suicídio, em sua maioria denunciando a intensa exploração do trabalho a que estão submetidos (Ngai e Chan, 2012; Antunes, 2018). 
Se a hipótese aqui apresentada é pertinente, as consequências sociais e políticas da proletarização no setor de serviços assume grande relevância. Podemos resumi-las na seguinte indagação: os trabalhadores e as trabalhadoras dos serviços são, em última instância, da classe média emergente, são expressão do chamado precariado ou fazem parte do que denominamos o novo proletariado de serviços? É o que veremos a seguir. 
Classe média, precariado ou novo proletariado de serviços? 
Entendemos que os trabalhadores e as trabalhadoras do setor de serviços ( call centers , telemarketing, indústria de software e tecnologias de informação e comunicação, hotelaria, shopping centers, hipermercados, fast-food, grande comércio, entre tantos outros) encontram-se cada vez mais distantes das modalidades de trabalho intelectual que particularizam as classes médias e estão cada vez próximos do que denominamos novo proletariado de serviços. 
Se os segmentos mais tradicionais das classes médias são definidos por sua inserção na produção, na qual realizam trabalho predominantemente intelectual e trabalho não manual (como os médicos, os advogados e outros profissionais liberais), estamos presenciando uma expansão significativa dos assalariados médios, de que são exemplo os bancários, os professores, os assalariados de comércio, supermercados, fast-food, call centers, tecnologias de informação e comunicação etc., e eles vêm sofrendo um crescente processo de proletarização, aprofundando a formulação pioneira de Braverman (1977). 
Como as classes médias, dadas suas oscilações estruturais típicas, se definem também por seus ideários e valores culturais, simbólicos, de consumo (Bourdieu, 2007), seus segmentos mais altos se distinguem da classe média baixa e se aproximam, no plano valorativo, das classes proprietárias. Mas seus estratos mais baixos, ao contrário, tendem, no plano da objetividade, a se aproximar da classe trabalhadora. É por isso que a consciência das classes médias aparece frequentemente como a consciência de uma não classe, ora mais próxima das classes proprietárias (como é o caso de gestores de médio e alto escalão, administradores, engenheiros, médicos, advogados), ora mais próxima das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, quando tomamos os segmentos mais pauperizados. 
Assim, esses contingentes mais proletarizados, especialmente no setor de serviços, participam cada vez mais (direta ou indiretamente) do processo de valorização do capital. Os assalariados de call centers, telemarketing, hipermercados, fast-food, grande comércio, escritórios, hotéis e restaurantes encontram-se muito mais próximos desse novo proletariado que se expande em escala global e que tem sido responsável pela deflagração de várias lutas sociais, manifestações e greves no mundo atual. 
Entretanto, se essa constatação nos diferencia daqueles que tendem a caracterizar esses trabalhadores como parte da classe média, também nos separa daqueles que os concebem como parte de uma suposta “nova classe”, a “classe do precariado” (Standing, 2011). 
Nosso trabalho anterior vem enfatizando que, desde a eclosão da crise estrutural do capital (Mészáros, 2002; Chesnais, 1996), amplia-se significativamente o processo de precarização estrutural do trabalho. O aumento da exploração do trabalho, que passou cada vez mais a se configurar como superexploração da força de trabalho, além de aumentar o desemprego, vem ampliando enormemente a informalidade, a terceirização e a precarização, em um processo que atinge não só os países do Sul mas também os países do Norte (Antunes, 2018; Sotelo Valencia, 2016). 
Foi nesse contexto que o cenário social se alterou sobremaneira. Em Portugal, por exemplo, essas lutas se tornaram emblemáticas: em março de 2011, explodiu o descontentamento da “geração à rasca”. Milhares de manifestantes, jovens e imigrantes, homens e mulheres precarizados, desempregados e desempregadas expressaram sua revolta através do movimento Precári@s Inflexíveis. 
Na Espanha deflagrou-se o movimento dos Indignados, jovens que lutam contra as altas taxas de desemprego e a completa ausência de perspectiva de vida: estudando ou não, os jovens são candidatos ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, ao trabalho precário. 
Na Inglaterra, ocorreu um forte levante social que se iniciou depois que um taxista negro foi assassinado pela polícia. Jovens pobres, negros, imigrantes e desempregados se revoltaram e, em poucos dias, o levante atingiu várias cidades. Foi a primeira grande explosão social na Inglaterra (e em partes do Reino Unido) depois da revolta contra o Poll Tax, que selou o fim do governo Thatcher. 
Nos Estados Unidos, floresceu o movimento de massas Occupy Wall Street, que denuncia a hegemonia dos interesses do capital financeiro e suas nefastas consequências sociais: o aumento do desemprego e do trabalho precarizado, que atingiu ainda mais duramente as condições de vida das mulheres, dos negros e dos imigrantes. 
Na Itália, ocorreu o avanço dos novos movimentos de representação do precariado, com a eclosão em Milão, em 2001, do MayDay, que luta pelos direitos e por uma representação autônoma desse amplo e heterogêneo conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, jovens, imigrantes, qualificados e não qualificados [2] . 
Esses exemplos, dentre tantos outros, constituíram a base de um amplo debate, especialmente nos países do Norte, acerca da emergência desse novo contingente da classe trabalhadora. E, dentro desse debate, o mais polêmico foi o que vislumbrou o advento de uma “nova classe”, o precariat (Standing, 2011). Segundo Standing, o precariado é uma classe distinta daquela que se formou durante o capitalismo industrial, herdeiro da era taylorista-fordista. Ele se aproximaria, então, de uma nova classe mais desorganizada, ideologicamente difusa e facilmente atraída por “políticas populistas”, suscetíveis até mesmo aos apelos “neofascistas”. Com esse desenho crítico – ainda que a descrição do autor tenha informações relevantes –, essa nova classe assume contornos de “uma classe perigosa”, em si e para si diferenciada da classe trabalhadora (Standing, 2011, p. 1-25) [3] . 
Nossa formulação caminha em direção oposta àquelas que concebem o precariado como uma nova classe. Entendemos que a classe-que-vive-do-trabalho, em sua nova morfologia, compreende vários e distintos segmentos – diferenciação que não é novidade na história da classe trabalhadora, sempre clivada por questões como gênero, geração, etnia, nacionalidade, migração, qualificação etc. Ao contrário, portanto, de se constituir como uma nova classe, o precariado é um setor diferenciado da classe trabalhadora, em suas heterogeneidades, diferenciações e fragmentações. Nos países capitalistas avançados, os mais precarizados, sejam jovens, imigrantes, negros etc., que compõem o precariat, já nascem sob o signo da corrosão dos direitos e lutam de todos os modos para conquistá-los. 
Por outro lado, os setores da classe trabalhadora mais tradicionais, herdeiros do welfare State, lutam para impedir o desmoronamento ainda maior de suas condições de trabalho. Esses dois polos fundamentais da mesma classe-que-vive-do-trabalho, em sua aparente contradição, parecem ter seu futuro indelevelmente ligado: o jovem precariado, em suas lutas, quer o fim da precarização completa que o avassala e sonha com um mundo melhor. Os trabalhadores mais tradicionais, mais organizados sindical e politicamente, herdeiros do welfare State, por sua vez, querem evitar uma degradação ainda maior e se recusam a converter-se nos novos precarizados do mundo. 
Como a lógica destrutiva do capital é múltipla em sua aparência, mas una em sua essência, esses polos vitais do mundo do trabalho sofrerão uma derrota ainda maior, se não forem capazes de se conectar solidária e organicamente. Como entendemos a precarização como um processo, que pode tanto se ampliar como se reduzir, ela será resultado da capacidade de resistência, organização e confrontação da classe trabalhadora. Se esses dois segmentos forem capazes de construir laços de solidariedade e sentido de pertencimento de classe (Bihr, 1998), conjugando suas lutas cotidianas, eles poderão se contrapor com mais força e organização à lógica do capital, que é profundamente adversa ao trabalho. 
E aqui o papel do novo proletariado de serviços é emblemático. Sua aglutinação como parte constitutiva e crescente da classe trabalhadora ampliada, como parte integrante de suas lutas, de seus embates e resistências, terá grande importância nas lutas do conjunto da classe trabalhadora. 
Por fim, dada a conformação desigual e combinada da (nova) divisão internacional do trabalho, são necessárias algumas mediações, quando se trata de definir o precariado. E a primeira delas é dada pela clivagem Norte e Sul. Na periferia, o proletariado nasceu eivado da condição de precariedade. Basta lembrar que, no Brasil e em vários outros países da América Latina (para não falar dos Estados Unidos), cuja história é marcada pela existência do escravismo colonial, o proletariado floresceu a partir da abolição do trabalho escravo, de modo que sua condição de precariedade não é a exceção, mas um traço constante desde a origem. 
Como no Sul não se desenvolveu nenhum tipo persistente de aristocracia operária, o proletariado sempre se confundiu com a condição de precariedade, e suas diferenças internas nunca foram tão acentuadas como no Norte. Aqui, ao contrário, historicamente se desenvolveu a aristocracia operária e posteriormente o proletariado herdeiro do welfare State. O advento recente do precariado tornou-se um traço expressivo de diferenciação que, entretanto, não encontra simetria com o proletariado do Sul. Na periferia, as clivagens dentro da classe trabalhadora não têm a intensidade dos países centrais, de modo que falar em “uma nova classe” torna-se um equívoco ainda maior. 
Se parece plausível, então, reconhecer empiricamente a emergência recente do precariado como um dos polos mais precarizados da classe trabalhadora nos países centrais, na periferia ele é algo diferenciado, uma vez que é parte constitutiva do operariado desde suas origens, ainda que, no presente, ganhe novas configurações. Seja denominado precariado, seja denominado parte do novo proletariado de serviços, é constituído de trabalhadores e trabalhadoras que frequentemente oscilam entre a heterogeneidade em sua forma de ser (gênero, etnia, geração, qualificação, nacionalidade etc.) e a homogeneidade que resulta de sua condição precarizada, desprovida de direitos e de regulamentação contratual. 
As formas de intensificação do trabalho, a burla dos direitos, a superexploração, a vivência entre a formalidade e a informalidade, a exigência de metas, a rotinização do trabalho, o despotismo dos chefes, coordenadores e supervisores, os salários degradados, o trabalho intermitente, os assédios, os adoecimentos e as mortes indicam um forte processo de proletarização e de explosão desse novo proletariado de serviços que se expande em escala global, diversificando e ampliando a classe trabalhadora. 
E, se há uma nova morfologia do trabalho, é necessário constatar também o advento de uma nova morfologia das formas de organização, representação e luta da classe trabalhadora. E o mundo atual tem sido um excepcional laboratório para se compreender essa nova era das lutas sociais. 
Notas
[1 Este capítulo é parte de nosso projeto de pesquisa junto ao CNPQ (“O uno e o múltiplo: desenhando a nova morfologia do trabalho”) e apresenta algumas teses desenvolvidas em O privilégio da servidão (São Paulo, Boitempo, 2018). [2] Ver o site San Precario: www.precaria.org/ [3] Ver outras críticas a essa concepção em Global Labour Journal (2016). 
 
[*] Ricardo Antunes é Sociólogo, professor da Universidade Estadual de Campinas, Brasil.  O presente texto é a apresentaçao de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (IV) – Trabalho digital, autogestão e expropriação da vida, livro de diversos autores coordenado por Ricardo Antunes e lançado agora pela editora Boitempo . 
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
 

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