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Um Agressor do Brasil e do Multilateralismo

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Por IELA em 28 de novembro de 2018

Um Agressor do Brasil e do Multilateralismo

No próximo dia 29, numa escala em sua viagem com destino à reunião do G20 em Buenos Aires, o conselheiro para segurança nacional de Donald Trump, John Bolton, aportará no Rio de Janeiro para ter uma conversa com Bolsonaro. 
A armada Bolsoleone, já abanando alvoroçados rabos, vê essa reunião com um “sub” como uma demonstração de grande prestígio mundial.
Evidentemente, não é. Em primeiro lugar, porque se trata de uma reunião com alguém de segundo escalão. Em segundo, porque Bolton não vem ao Brasil especificamente para ver Bolsonaro. Ele apenas aproveitou sua viagem a Buenos Aires para fazer uma escala no Rio e conversar com o capitão. Em terceiro lugar, porque Bolton é figura extremamente controversa.
Com efeito, embora tenha influência junto a Trump, o “falcão” Bolton não goza de prestígio algum na comunidade diplomática internacional.
Um dos principais propugnadores do destrutivo unilateralismo norte-americano, Bolton sempre viu os organismos internacionais, especialmente os vinculados à ONU, com profundo desprezo. O mesmo desprezo que agora aflora em nosso chanceler pré-iluminista. 
Bolton foi, aliás, o principal responsável da saída dos EUA do Tribunal Penal Internacional. Tendo alcançado esse objetivo, Bolton afirmou que a saída dos EUA do TPI tinha sido o “momento mais feliz” de sua carreira. 
Além disso, ele sempre se destacou por utilizar métodos brutais e desonestos para atingir seus objetivos.
Em 2002, por exemplo, Bolton, sempre obcecado por Cuba, tentou emplacar a tese de que aquele país estava exportando armas biológicas para regimes terroristas. Entretanto, como os analistas para armas biológicas do Departamento de Estado não corroboraram com a tese tresloucada de Bolton, ele tentou derrubar o chefe desses profissionais. Mais tarde, em audiência no Senado, Bolton mentiu sob juramento dizendo que não havia tentado destituir o analista–chefe. Porém, sete profissionais da área o desmentiram.
Mas o que Bolton não conseguiu com Cuba e as armas biológicas ele conseguiu com o Iraque e as armas químicas. 
Com efeito, Bolton foi o grande articulador da destituição do grande embaixador brasileiro José Maurício Bustani da direção da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ).Bustani, um diplomata brilhante, havia sido eleito o primeiro Diretor-Geral da OPAQ, em 13 de maio de 1997, e reeleito para um segundo mandato de quatro anos, em maio de 2001. Em ambos os casos, seu nome tinha sido escolhido por decisão unânime da Conferência dos Estados-Partes da organização. 
Durante a competente gestão de Bustani, o número das ratificações à Convenção aumentou  67%. Ademais, a OPAQ conseguiu, nesse período, realizar mais de 1.100 inspeções em todo o mundo e reduzir o estoque de armas químicas em 1/6.
Sua gestão foi tão boa que até Colin Powell elogiou publicamente seu trabalho.
No entanto, Bustani cometeu um pecado mortal. Ele levou tão a sério seu trabalho que conseguiu atrair o Iraque para a OPAQ e, com isso, submeter aquele país às rigorosas inspeções daquela organização.
Acontece que, na época (2002), os EUA já estavam planejando a invasão do Iraque, usando o pretexto, cínico e mentiroso, de que aquele país dispunha de armas destruição em massa, principalmente armas químicas. Ora, a iniciativa de Bustani jogaria por terra esse pretexto hipócrita, pois as inspeções da OPAQ demonstrariam que o Iraque não dispunha mais dessas armas. 
Bolton, na época Subsecretário para Desarmamento do Departamento de Estado, se encarregou pessoalmente de perseguir e destituir Bustani. Ele viajou à Haia, sede da organização, para articular uma reunião de seu Conselho Executivo, na qual foi apresentada uma moção de desconfiança contra Bustani por fantasiosas e caluniosas “irregularidades financeiras”. A moção foi rejeitada. Contudo, não satisfeito, Bolton conseguiu convocar uma irregular “reunião especial” da Conferência da organização, especificamente para destituir Bustani como Diretor-Geral da OPAQ. 
Usando de todos os meios de pressão disponíveis, inclusive de ameaças, Bolton, dessa vez, conseguiu seu objetivo. Com 48 votos a favor de sua demissão, sete contrários e 43 abstenções, Bustani foi afastado. 
A maioria dos latino-americanos se absteve na votação vergonhosa. Por quê?
Porque o Brasil não defendeu seu embaixador, como deveria e poderia. Não fez as articulações que poderiam ter salvo Bustani. Pressionado pelos EUA, o governo FHC fez questão de anunciar, aos seus pares, que a OPAQ não era “uma prioridade para o Brasil”. 
Assim, o governo da época abandonou seu embaixador à própria sorte. Ante a pressão dos EUA e a posição de Pôncio Pilatos do governo brasileiro, muitos países latino-americanos e africanos, aliados naturais do Brasil, preferiram se abster, na votação da vergonha. 
A oposição brasileira tentou, por uma iniciativa capitaneada pelo então deputado Paulo Delgado (PT/MG), amigo de Bustani, extrair algum apoio do Congresso brasileiro para nosso embaixador, já que o Executivo se negava a apoiá-lo de forma efetiva. 
Paulo Delgado me mostrou alguns e-mails de Bustani, nos quais ele se queixava de ter sido abandonado e descrevia as manobras sujas, capitaneadas por Bolton, para manchar a sua imagem e destituí-lo do cargo. Era algo de embrulhar o estômago. 
Lembro-me que redigi uma moção de apoio a Bustani que o deputado Paulo Delgado apresentou no Plenário da Câmara. Em vão. A base governista se encarregou de enterrá-la. Esse foi um dos episódios mais tristes e vergonhosos da história da diplomacia brasileira. Uma humilhação difícil de esquecer. 
Observe-se que, em julho de 2003, o Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (TAOIT) condenou a demissão de Bustani como ilegal, pois ela fora totalmente irregular e havia contrariado “a independência dos servidores públicos internacionais”. 
Mas Bolton é não apenas agressor do Brasil por ter liderado a demissão ilegal de Bustani. Ele é, sobretudo, um inimigo do Brasil soberano, pois deseja que o nosso país secunde acriticamente a defesa do que ele julga serem os interesses norte-americanos no subcontinente. É também um inimigo do multilateralismo e da construção de uma ordem mundial simétrica e pacífica, algo que beneficiaria muito um país como o nosso.
O sentido da próxima conversa com Bolsonaro é exatamente esse. Ele vem “passar as instruções” para que o Brasil participe ativamente de um jurássico enfrentamento a Cuba e Venezuela. Também instruirá o governo eleito a se afastar da China, nosso maior parceiro comercial, e se alinhar de forma subordinada aos EUA, no grande jogo de poder mundial.
Objetivamente, nada disso interessa, de fato, ao Brasil. Trata-se de uma agenda geopolítica importada, que prejudicará os autênticos interesses nacionais. Se conseguir êxito, Bolton poderá transformar a América do Sul numa região conflagrada, tal qual o Oriente Médio. E, muito provavelmente, acabaria com a soberania do Brasil, já muito fragilizada pelo golpe. Bolton, um “falcão” delirante, controverso na comunidade internacional e em seu próprio país, assim como o presidente a quem serve, sabe que a armada Bolsoleone, primitiva como é, poderá ser útil aos seus designíos políticos e ideológicos. 
Acima de tudo, Bolton e Trump sabem que, com o presidente pré-redemocratização e com um chanceler pré-iluminista, a hora para inserir integralmente o Brasil na órbita geoestratégica dos “falcões” dos EUA é agora. 
Em 2002, no episódio de Bustani, o governo FHC fez papel de Pôncio Pilatos. Será que agora o governo eleito estaria disposto a emular as atitudes de alguém como Joaquim Silvério dos Reis? No momento em que antigos agressores do Brasil são tão valorizados, tudo parece possível.
 

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