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Estado brasileiro e madeireira não olharam para o juiz

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Por IELA em 27 de dezembro de 2010

Estado brasileiro e madeireira não olharam para o juiz 
Acusados de assassinato de dois sem-terra são absolvidos em Laranjeiras do Sul (PR). Crime aconteceu em 1997, na maior área de ocupação da América Latina, território grilado pela madeireira Araupel
Por Pedro Carrano, de Laranjeiras do Sul (PR) – Brasil de Fato
26.12.2010 – Uma foto de Sebastião Salgado, hoje na memória de militantes de todo o mundo, retrata um sem-terra empunhando a foice e rompendo uma porteira. A cabeça baixa, o rosto coberto pelo boné, ele era seguido por uma multidão. O local da imagem foi a ocupação que reuniu 3340 famílias, em Rio Bonito do Iguaçu (PR). A tomada de parte dos 87 mil hectares do latifúndio aconteceu em 17 de abril de 1996, mesmo dia do massacre de Eldorado dos Carajás (PA), quando 17 trabalhadores sem-terra foram mortos. Apenas a primeira de uma série de tristes coincidências.
Meses mais tarde, em 16 de janeiro de 1997, os agricultores Vanderlei das Neves (16) e José Alves dos Santos (34) foram vítimas de emboscada de milícia privada, na divisa entre a plantação de pinus da fazenda Pinhal Ralo e o cultivo de milho na parte ocupada pelos agricultores. O território era grilado pela empresa madeireira conhecida como Giacomet-Marodin, adquirida da Votorantim, e hoje chamada Araupel. No mesmo dia do assassinato, o governo federal tinha decretado a desapropriação da área.
“A ocupação foi um fato político grande, a empresa pagou apenas R$ 150 de impostos no ano de 1996. Havia denúncias na imprensa. O Lula na época esteve aqui. O repórter Caco Barcellos também”, dimensiona Laurecir, militante do MST. As vítimas foram seis ao todo, duas assassinadas e quatro sobreviventes. As armas usadas eram de calibre 12, 22, 357 e fuzil 762. Na emboscada, ao tentar proteger o rosto, Vanderlei das Neves teve as mãos perfuradas pelos tiros à queima roupa. Todos os disparos vieram da mesma direção, fato reconhecido pela perícia no local do crime.
Os réus, acusados pela chacina, estavam mais velhos quando foram a júri. Ainda que o inquérito do crime tenha sido finalizado em poucos meses, passaram-se oito protelações na Justiça e mais de treze anos de espera. Agora, Jorge Dobinski da Silva (69) e Antoninho Valdecir Somensi (57), funcionários da empresa até hoje, foram a julgamento no dia 14 de dezembro de 2010, na cidade de Laranjeiras do Sul (PR), a partir de denúncia do Ministério Público. A acusação contou com a assessoria do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. Os jurados reconheceram que houve crime contra os sem-terra, mas, por quatro votos a dois, não atribuíram os incidentes aos dois acusados. Ao longo de todo o processo, não houve associação entre a ação de milícias na região e a empresa proprietária dessas grandes extensões de terras.
Jacson Zilio, promotor do Ministério Público que acompanha o caso desde 1997, apontou o tempo como um dos fatores que pesou para que o processo não apontasse os responsáveis dos crimes. “Acho que o resultado é fruto dessa demora, se tivesse uma resposta antes não seria assim (…) O distanciamento da data do fato é algo que acabou nos prejudicando”, analisa.
A absolvição deixa a chacina sem resposta por parte do Estado. De acordo com a organização Terra de Direitos, a impunidade que se verifica no âmbito penal não exclui a chance de outras formas de responsabilização, no âmbito internacional, junto à Organização dos Estados Americanos (OEA).
Logo após o depoimento no júri, no dia 14, José das Neves, vítima e testemunha ocular dos fatos, afirmou ao Brasil de Fato que se manteve na luta pela terra após a morte do filho. Como tantos outros que vivenciaram aquele período, hoje ele é assentado. “Vanderlei tinha um desejo profundo no coração de ter terra. Perdeu a vida, mas nós precisávamos de um pedacinho de terra, por isso não desisti”, afirma. Foi em 1998, um ano depois, que Neves teve acesso à terra prometida. Em uma região do Paraná marcada por ocupações massivas e práticas de pistolagem.
Guardas, seguranças, milíciasÀ época do assassinato dos sem-terra, a imensa área da Araupel era controlada por um corpo de 60 seguranças. Antoninho Valdecir Somensi chefiava vinte deles. De acordo com os depoimentos ao longo do julgamento, os vigilantes prestavam continência para os proprietários da Araupel. Anos antes haviam feito curso de tiro na fazenda e tinham como hierarquia antigos quadros oriundos das forças armadas. A emboscada de 16 de janeiro de 1997 foi o ponto culminante, o terceiro atentado contra os sem-terra após ocuparem a área da Giacometi-Marodin. O que daquela vez resultou em morte. 
“Nunca tive orientação sobre o uso de armas”, alegou Somensi durante o julgamento, embora tenha reconhecido que usava uma arma por conta própria. O estopim foi lançado no dia 15 de junho de 1996, quando o posto dos seguranças foi tomado pelos sem-terra e sete guardas foram desarmados por membros do movimento. As armas foram entregues à polícia.
A situação a partir dessa data se agravou, apontou o Ministério Público e a acusação. A situação era tensa, de acordo com a exposição do MP, tratava-se de uma área grande de terras, a segunda maior fazenda do sul do Brasil, e havia uma “estrutura militarizada de defesa”.
Um jovem agricultor, presente entre o público que assistiu ao julgamento, trabalhou por um ano em empresa terceirizada pela Araupel. Antes de 1997, ele relata que havia controle não só sobre os funcionários, mas sobre as pessoas que entrassem no território da empresa. Esse e outros agricultores da região apontam que a Araupel tem histórico de assassinato de posseiros e caçadores. Cemitérios clandestinos dentro da propriedade são atribuídos a assassinatos, ao passo que a empresa, em vídeo institucional, atribui o cemitério ao fato de possuir locais de moradias de funcionários no seu território, que fica distante da cidade mais próxima. 
Apenas trabalhadores entre os réus – Latifúndio participou apenas indiretamente do julgamento A morte do jovem Vanderlei das Neves e José Alves dos Santos é o segundo caso de assassinato de trabalhadores rurais sem-terra que vai a júri no Paraná, em contraste com o alto número de assassinatos no campo. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, entre 1998 e 2009, houve assassinato de 19 trabalhadores rurais sem-terra.
A organização de direitos humanos Terra de Direitos revela que existem dois assassinatos ocorridos há mais de cinco anos em fase de inquérito policial. Outros dois assassinatos aconteceram há mais de dez anos e os acusados ainda não foram julgados.
A realização do julgamento e a repercussão política dos fatos, quase 14 anos depois, pode ser considerada uma vitória. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que prestou assessoria à acusação, pondera este contexto. “Da região sul, o Paraná é o estado que possui fazendeiros mais reacionários. No Paraná, vigorou durante muitos anos a UDR. E, no Paraná, se cometeu um dos maiores crimes contra os trabalhadores rurais, basta a gente lembrar o caso Teixeirinha (uma perseguição implacável contra esse agricultor), e também a chacina da Giacometi-Marodin (…) Fazer realizar o júri, nessas circunstâncias do processo, já é sim uma vitória. O resultado em si foi adverso por várias circunstâncias”, declara Greenhalgh, elencando o falecimento de uma testemunha, o impedimento do delegado à época depor no tribunal, e as oito remarcações do júri. 
Neste e noutros casos de assassinatos não foi possível acusar a companhia ou os donos da propriedade onde aconteceu o conflito pela terra. São casos como o do assassinato do militante Valmir Mota de Oliveira, o Keno (34), na área da transnacional Syngenta (outubro de 2007), atacados pela segurança privada contratada formalmente pela empresa suíça. Os seguranças, e também os sem-terra, são acusados pela justiça.
“Tecnicamente é impossível responsabilizar penalmente uma empresa, em qualquer caso. São as pessoas que respondem pelos crimes. Para que se pudesse responsabilizar os donos da empresa seria necessário que algum funcionário delatasse, o que não ocorreu”, explica Fernando Prioste, advogado da organização Terra de Direitos, que prestou assessoria à acusação, no julgamento em Laranjeiras do Sul.
Trata-se de um terreno desigual, onde os movimentos sociais muitas vezes são criminalizados, e os júris alcançam os seguranças, os capatazes e os pistoleiros, porém não os proprietários da terra. A criminalização, no final das contas, atinge apenas trabalhadores, ainda que em lados opostos. É a reflexão de Cláudio de Oliveira, do setor de direitos humanos do MST, para quem “o Poder Judiciário é conservador dentro da organização do Estado. Na medida em que os movimentos populares passaram a fazer política e ter atuação dentro do poder Executivo e Legislativo, o Judiciário foi uma válvula de escape para a criminalização na tentativa de impedir a atuação dos movimentos sociais no cenário da política”, defende. 
Em que pese a impunidade para as mortes, uma liderança do MST da região sugere que indiretamente o latifúndio esteve no banco dos réus. “Se não há condenação, vamos ver o latifúndio passar ileso e se sentindo com mais moral. A única questão é que isso não apaga a violência histórica deles na região”. 

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