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A Amazônia é nossa. De quem mesmo?

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Por IELA em 15 de novembro de 2021

A Amazônia é nossa. De quem mesmo?

Foto: www.ecoamazonia.com

 O debate acerca da Amazônia volta à cena com a realização da COP-26, em Glasgow, tal como se dera no final dos anos 1980 e que nos levaria à Rio-92. À época, imagens invocando a “Amazônia em chamas” chegaram a fazer do Planeta Terra a Personalidade do Ano pela Revista Time, em 1988. Naquele mesmo ano, no dia 22 de dezembro, Chico Mendes (1944-1988) era assassinado, ele que fora um dos principais defensores da Amazônia que, com sua liderança, introduzira no debate um ator até então ausente no debate amazônico: os Povos da Floresta. De fato, com o protagonismo dos Povos da Floresta o debate da Amazônia se complexificou. 
Uma das questões mais importantes do debate a respeito da Amazônia diz respeito à soberania territorial da região. A presença no debate dos Povos da Floresta lançará uma nova luz a respeito dessa temática. A começar pelo fato que a Amazônia, desde que se deu o encontro/desencontro colonial, sempre esteve sob disputa internacional pelo controle territorial. Os portugueses, por exemplo, trataram de controlar a foz do Amazonas enquanto os espanhóis controlavam a foz do rio da Prata. Das mais de 200 línguas tradicionais faladas nas Amazônias pouco se comenta e se olvida que nos países que exercem soberania territorial sobre a região predominam cinco línguas, todas coloniais: o espanhol, o português, o francês (Guiane), o holandês (Suriname) e o inglês (Guiana). 
Olvida-se, ainda, no debate que a região é ocupada há 19 mil anos como na Formação Cultural Chiribiquete (na atual Amazônia colombiana) e há 11 mil e 200 anos no Sítio da Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará, na Amazônia brasileira. E, atentemos, a floresta hoje tão debatida, só ocupa a enorme extensão territorial de aproximadamente 8 milhões de Km² depois da última glaciação Würm (13.000 a 18.000 anos A.P.), ou seja, tem 12.000 anos essa abrangência territorial do bosque e da bacia amazônica. Nesse período da glaciação Wurm, segundo a Teoria dos Refúgios (Aziz Ab’Saber), a floresta estava reduzida a alguns sítios restritos (refúgios) e, só depois do recuo da glaciação é que, com o aumento da pluviosidade, a floresta se expandiu ao imenso território que hoje abarca a ponto de exercer um papel importante na dinâmica metabólica do planeta, sobretudo no que diz respeito à dinâmica hídrica com suas implicações climáticas. Assim, a floresta, na extensão territorial hoje conhecida, tem menos de 13 mil anos. Relembre-se que a região já era ocupada antes, pelo menos desde 19 mil anos antes do presente. 
Eis uma das verdades que os Povos da Floresta trazem ao debate. A coevolução entre seres humanos e natureza se desenvolveu ali sem que a natureza permanecesse intocada, como se costuma colocar nos termos do pensamento hegemônico. Para os Povos da Floresta, a natureza jamais foi intocada. Afinal, ninguém vive tanto tempo numa região, seja ela qualquer, sem saber coletar, sem saber pescar, sem saber caçar, sem saber agricultar, sem saber curar-se (inventar medicinas), sem saber se proteger das intempéries (inventar arquiteturas), em suma, sem saber. Enfim, o que os Povos da Floresta demandam é o respeito à sua dignidade enquanto Povos para que se estabeleça um verdadeiro diálogo de saberes.
À época em que Chico Mendes ainda estava vivo o slogan “A Amazônia é Nossa” era brandido à direita a e à esquerda pelos que se diziam contra a internacionalização. Em mais de uma vez pude vê-lo perguntar “Nossa de quem?” completando, em seguida, que a Amazônia estava ocupada por latifundiários que não respeitavam os Povos da Floresta e suas demandas de demarcação territorial. Costumava denunciar que a maior pressão e ameaça contra a Amazônia e seus povos estavam, de um lado, na expansão da mineração, das grandes fazendas de gado e madeireiras que contavam com a conivência do estado que não cuidava devidamente do patrimônio fundiário público e, assim, alimentava a grilagem de terras e, de outro lado, na migração de camponeses pobres expulsos de suas regiões no Sul, Sudeste e Nordeste do país em função de uma política de colonização que substituía a necessária Reforma Agrária.
A maior parte desses camponeses migrantes ignorava a complexidade metabólica da reprodução da floresta e, ainda que em menor proporção do que o avanço do gado, dos madeireiros, da soja e da mineração, também contribuía para a dilapidação desse enorme patrimônio de diversidade biológica e hídrica. A Amazônia era vista como um vazio demográfico, conceito colonial, que ignorava sua ocupação ancestral. Por isso, matar e desmatar são duas práticas que se complementam. A Amazônia é a região brasileira de maior número de assassinatos no campo desde 1985, ano que a Comissão Pastoral da Terra passou a registrar esse tipo de ocorrência.Sim, a Amazônia tem implicações globais e, assim, tudo que nela se passa é de interesse da humanidade.
No entanto, o sistema interestatal que comanda as relações do direito internacional não deve ignorar o poder de fato que exercem as grandes corporações transnacionais que hoje disputam a exploração da região, seja com base no paradigma fordista produtivista extrativista tradicional, que quer ver a floresta no chão para explorar o solo e o subsolo, seja com base no paradigma da nova revolução biotecnológica  e a financeirização que quer a floresta em pé, mas sob seu controle, seja com a indústria de fármacos, seja com a falácia do mercado de carbono. Chega a beirar o ridículo ver os novos missionários competindo para convencer povos indígenas a aceitarem que suas terrasbosques sejam registradosreduzidos à métrica do carbono para compensar a poluição das grandes corporações, sobretudo dos países centrais que financiam ONGs em suas Missões.
Enfim, não fizessem nada e o bosque e a cultura daqueles povos trariam a mesma contribuição ao planeta e à humanidade. Essas incursões contra esses povos e comunidades, desafortunadamente, têm servido para dividi-las e gerar mais conflitos.
Grande parte do destino da Amazônia está ligado à política dos estados que sobre ela exercem soberania. No entanto, consideremos que a Amazônia é uma região periférica de países periféricos e, assim, seu destino em grande parte é decidido fora dela, como soe acontecer às regiões periféricas, ainda que essa situação de dependência e subordinação conte, não raro, com a servidão voluntária das oligarquias regionais.
Consideremos, ainda, que há um enorme acervo de conhecimentos como patrimônio que esses povos elaboraram durante milênios e que hoje é vivido por centenas de povos indígenas, por populações que se tornaram livres cimarroneando-se/aquilombando-se e por diversas campesinidades que vivem pela floresta e seus rios. Não olvidemos que, em média, um hectare de floresta produz de 40 a 70 toneladas de biomassa/ano, produtividade essa que não é alcançada por nenhum desenvolvimento tecnológico (1 hectare de soja com alta tecnologia e grande consumo de energia fóssil produz, no máximo, 5 toneladas/ano/ha).
No entanto, essa biomassa não é de um único fruto, como quer a monocultura da mente e da terra. Não, um hectare da floresta amazônica tem uma diversidade de espécies maior que toda a região temperada do planeta. Eis outra verdade que esses povos oferecem para um diálogo de saberes horizontal e não hierárquico e colonial como o pensamento hegemônico. 
Assim, nenhum destino que venha a ser dados à Amazônia pode prescindir da palavra e do conhecimento que seus povos detêm. E, mais, esse conhecimento necessita das condições metabólicas de reprodução da vida com que se desenvolveu que como, sabemos, não são condições só biológicas, mas também culturais e, por isso, esses povos e comunidades necessitam do reconhecimento de seus territórios e de suas territorialidades, enfim, que respeitem sua dignidade.  Vida, Dignidade e Território, eis as palavras-chave com que esses povos amazônidas vêm oferecendo a todos nós como outros horizontes de sentido para a vida, diferente da Liberdade, Igualdade e Fraternidade com que a geocultura eeuurocêntrica colonizou o mundo desde o Iluminismo.
Ao contrário dos que se reivindicam a primazia do que seja o exercício da soberania sobre esses territórios, esses povos e comunidades não são nenhuma ameaça à soberania nacional. É o que já demonstraram com a força política que alcançaram particularmente em países como a Bolívia e o Equador onde tiveram condições de trazer ao debate nacional suas perspectivas. Em vez de separatismo falaram de autonomia dentro da soberania territorial dos estados que lhes coube e cabe viver. Propuseram um Estado Plurinacional que, assim, reconhece as múltiplas territorialidades que habitam um mesmo território do estado. Enfim, em vez de separatismo ofereceram a interculturalidade como horizonte teórico-político. Foram ainda esses dois países pioneiros na constitucionalização da natureza como portadora de direitos. Enfim, são outros horizontes de sentido para a vida e a política que nos são oferecidos pelos gruposclasses sociais mais subalternizadosoprimidosexplorados dessa região periférica de países periféricos de um subcontinente periférico que é a Amazônia.  
 

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