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A Crise Humanitária dos Yanomamis e a Velha-Atual Questão (da Reforma) Agrária

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Por Carlos Walter Porto-Gonçalves em 10 de fevereiro de 2023

A Crise Humanitária dos Yanomamis e a Velha-Atual Questão (da Reforma)  Agrária

Foto: Divulgação Ibama

A Ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Brasil, a Srª Marina Silva, antes de ser nomeada, falava da existência de 1.200 pistas de voo clandestinas só na Amazônia. Hoje, cerca de um mês de empossada, a Ministra nos fala de 2.000 pistas. Quantas atividades ilegais – exploração ilegal de ouro, tráfico de drogas, extração de madeira nobre, entre muitas – se apoiam nessa logística¿ Só na área Yanomami se fala de 20.000 garimpeiros! Quantos trabalhadores estão implicados nessas atividades em toda a Amazônia? A considerar a fala da Ministra Marina Silva sobre o número de pistas de voo clandestinas se contaria em centenas de milhares o número de trabalhadores. Enfim, há uma questão social e política que a sociedade brasileira teima em não enfrentar.

Em meus trabalhos de campo junto a camponeses no Pará nos anos noventa me dei conta que não raro aquelas famílias tinham pelo menos um membro implicado nos garimpos. Portanto, há uma questão ligada à reprodução da família camponesa que indica que a questão (da Reforma) agrária está subjacente à crise humanitária vivida pelos Yanomamis. Não há como resolver essa questão social e política sem Reforma Agrária.

E, agora sabemos, a natureza da questão (da Reforma) Agrária ganha novos sentidos quando se considera que a terra não é somente uma extensão de área concentrada nas mãos de poucos, embora também o seja. A terra implica todo um conjunto de condições de produção- reprodução metabólica da vida (terra-água-fotossíntese) o que torna mais complexa a velha-atual questão (da Reforma) Agrária ao trazer a dimensão ecológica para o centro do debate. E não só a dimensão ecológica se mostra política enquanto questão fundiária como, ainda, se mostra atravessada pela questão étnica e cultural. Enfim, não se trata mais somente de uma questão de terra, que, todavia permanece, mas sim de territórios, ou seja, pelos diferentes sentidos que os diferentes grupos sociais emprestam à terra e à vida através de suas Culturas e seus modos de vida, com suas diversas territorialidades. Não dá mais para continuar reproduzindo a visão colonial que sobreviveu ao fim do colonialismo, enquanto colonialidade do saber e do poder conforme nos ensina Aníbal Qijano.

Desde o final da II Guerra Mundial que os europeus finalmente passaram a se preocupar com o destino de minorias étnico-culturais no interior dos mal chamados estados nacionais, sobretudo diante dos horrores do holocausto contra o povo judeu. O que não estava nos cálculos da soberba colonial eeuurocêntrica é que os negros africanos com seus movimentos de independência se inspirassem na negritude contra a dominação de seus territórios. Ou que os negros estadunidenses vissem guetos não só em Varsóvia, mas também em Detroit ou Nova Iorque e que, portanto,
não afetava somente aos brancos judeus. Os horrores do holocausto foram precedidos pelos horrores do racismo e da escravidão contra os povos africanos e indígenas.

A crise humanitária vivida pelos Yanomamis traz tudo isso à baila e o capitalismo e a colonialidade que o acompanha estão postos em xeque. E, mais ainda, por estar situado na Amazônia o território Yanomami nos  obriga a discutir não só sua importância para a sobrevivência da humanidade e do planeta, o que acaba fazendo prevalecer uma agenda que atualiza a visão colonial, mas, sobretudo nos obriga a pensarmos sobre o modo como demos continuidade ao colonialismo com nossas políticas internas contra a Amazônia e seus povos.

Conceitos coloniais, como o de “vazio demográfico”, continuam dominando nosso imaginário e, com isso, justificando que se ocupe a região esquecendo que ela já é ocupada há, pelo menos, 19 mil anos na Formação Chiribiquete, na Amazônia colombiana, e há 11.200 anos como se constata nas inscrições rupestres do Sítio de Pedra Pintada em Monte Alegre, no Pará. Ou ainda, quando o preconceito colonial acusa que se quer deixar a Amazônia intocada quando, na verdade, a região vem sendo ocupada há mais de 10 milênios e como se alguém pudesse ali viver sem tocá-la. Nenhum povo vive sem saber coletar; sem saber pescar; sem saber plantar; sem saber fazer seus remédios (suas medicinas) ou sem saber fazer suas habitações (suas arquiteturas). Enfim, nenhum povo vive sem saber. No fazer há, sempre, saber. O saber está inscrito nos fazeres e não só escrito como se costuma acreditar.

O que os povos amazônidas nos ensinam é que é possível conviver com a floresta durante milênios sem destruí-la e se hoje a humanidade está de fato preocupada com o futuro do planeta, para o que a Amazônia cumpriria um papel decisivo, a primeira coisa a reconhecer é a contribuição do conhecimento desses povos rompendo com a colonialidade do saber e do poder, o que implica (1) a demarcação  imediata de seus territórios e (2) enfrentar a iníqua concentração fundiária que marca a formação social e politica brasileira. Enfim, a questão (da Reforma) agrária se coloca no centro do debate contemporâneo por todas as suas implicações nacionais e globais. Não dá para enfrentar esse debate aceitando a agenda do Primeiro Mundo e seu mercado de carbono fugindo às nossas responsabilidades internas de resolvermos a questão da profunda desigualdade social que nos habita, enfrentado de fato a questão (da reforma) agrária. E não antagonizemos a questão nacional com a questão internacional haja vista que uma implica a outra. A Amazônia sempre foi internacionalizada. Basta observarmos que apesar de ali se falarem mais de 200 línguas nativas as línguas oficiais faladas nos países que exercem soberania a região são todas línguas coloniais (o português, o espanhol, o inglês, o francês e o holandês), o que nos obriga a superar um tipo de nacionalismo xenófobo.

Enfim, não dá para enfrentar os desafios contemporâneos que a crise humanitária entre os Yanomamis e o destino a ser dado aos garimpeiros nos obriga adiando
essa continuidade histórica que marca desde sempre a sociedade brasileira que é a questão (da reforma) agrária. Será que a sociedade brasileira tem conhecimento de causa do tamanho mínimo de uma propriedade para produzir uma commoditty como a soja, face aos custos de produção implicados¿ A concentração fundiária faz parte, necessariamente, desse modo de produção e, assim, continua reproduzindo a essência colonial de nossa formação social com base no latifúndio, na monocultura e na exploração, seja dos homens ou da natureza com modernidade tecnológica. Ou esquecemos que, desde o século XVI exportávamos um produto manufaturado nos engenhos – o açúcar – e não matéria prima, a cana¿ Não havia nada de mais produtivo à época. Somos modernos a 500 anos, da cana à soja! A tecnologia não passa de um mito se não estiver subordinada a valores éticos e morais, como nos ensina Karl Polanyi. No Brasil, a tecnologia mais produtiva dos engenhos foi introduzida junto com a exploração do trabalho escravo. Não há nenhuma incompatibilidade entre modernidade tecnológica e exploração e opressão, enfim, com injustiça social!

A crise humanitária envolvendo os Yanomamis expõe a chaga das iniquidades da sociedade brasileira e enfrentá-la é uma prioridade inquestionável! Mas o destino a ser dado aos garimpeiros nos obriga a enfrentar essa tragédia que acompanha a sociedade brasileira, que é a concentração fundiária, agora complexificada pelo debate étnico-cultural e ecológico enquanto questão territorial. É preciso que deixemos de olhar só para cima, para o que vem das instituições que sabemos são instituídas por grupos e classes sociais e olhemos para o repertório epistêmico e político que nos é oferecido pelo “andar de baixo” que, além dos direitos humanos, propõem os direitos da natureza; em lugar de estados nacionais nos convidam a considerar o estado plurinacional e no lugar do
desenvolvimento nos propõem outras formas de envolvimento, de bem conviver (Sumaq Qamaña, Sumak Kausay) como nos ensinam os povos andinos. Como nos disse Luis Macas, ex-coordenador da CONAIE, em diálogo com Catherine Walsh: “nuestra lucha es epistémico e política”.

Descolonizemo-nos, pois.

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Carlos Walter é  Geógrafo, Professor Titular da Universidade Federal Fluminense, Professor Visitante da Universidade
Federal de Santa Catarina e Coordenador do LEMTO-UFF – Laboratório de Estudos de Movimentos
Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense.

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