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A hipocrisia do liberalismo na periferia capitalista

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Por IELA em 06 de janeiro de 2017

A hipocrisia do liberalismo na periferia capitalista

Marcha pela Liberdade, organizada pelo MBL, é recebida por Eduardo Cunha em Brasília.

Nos últimos anos o discurso liberal ganhou força no país, crescendo sua presença, sobretudo através de movimentos que supostamente não seriam ligados aos partidos tradicionais. Estudantes pela Liberdade, Movimento Brasil Livre, nessa onda, ouviu-se muito falar de “liberdade”. Mas que liberdade é essa?
Nas palavras de José Carlos Mariátegui, em seu clássico “7 ensaios de interpretação da realidade peruana”:
“A liberdade individual é um aspecto do complexo fenômeno liberal. Uma crítica realista pode defini-la como a base jurídica da civilização capitalista (Sem o livre arbítrio não existiria o livre comércio, nem a livre concorrência, nem a livre indústria). Uma crítica idealista pode defini-la como uma aquisição do espírito humano na idade moderna.” (José Carlos Mariátegui, 7 ensaios de interpretação da realidade peruana, 1928).

Ou seja, essa liberdade, dita como individual, é fruto da sociedade burguesa. Aliás, é a base moral que sustenta sua existência. Não por acaso o filósofo-moral Adam Smith fez duras críticas ao mercantilismo. O sistema mercantil, que tanto contribuiu para a acumulação primitiva capitalista, no século XVIII passou a entravar a própria acumulação capitalista inglesa. O capital já andava com suas próprias pernas, não precisava de nenhuma muleta que lhe desse sustentação. Era preciso, portanto, dar fim às restrições mercantis e clamar pela era da liberdade.
A liberdade, portanto, não é um valor universal, que pode ser estendido a todas as épocas e todos os modos de produção da mesma maneira. Mariátegui, por exemplo, deixa isso claro quando analisa a sociedade Inca:
“O homem do Tawantinsuyo não sentia absolutamente nenhuma necessidade de liberdade individual. Assim como não sentia, por exemplo, nenhuma necessidade de liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa pode servir de algo para nós, […] mas os índios podiam ser felizes sem conhecê-la e ainda sem concebê-la. […] Se o espírito da liberdade se revelou ao quéchua, foi sem dúvida em uma fórmula ou, melhor dito, em uma emoção diferente da fórmula liberal, jacobina e individualista da liberdade. A revelação da liberdade, como a revelação de Deus, varia com as eras, os povos, os climas. Consubstanciar a ideia abstrata da liberdade com as imagens concretas de liberdade com barrete frígio – filha do protestantismo, do Renascimento e da Revolução Francesa – é se deixar colher por uma ilusão que depende talvez de um simples, ainda que não desinteressado astigmatismo filosófico da burguesia e de sua democracia.” (José Carlos Mariátegui, 7 ensaios de interpretação da realidade peruana, 1928).

É típico da burguesia dar a suas instituições e moral o aspecto de universal. A elite encontra em sua sociedade o estágio final da evolução humana. Não pode ver nada além do capitalismo, e enxerga todo o passado através dos olhos do capital.
Mas não foi sempre assim. Como destacamos anteriormente, Adam Smith foi um dos maiores críticos do mercantilismo, sistema vigente antes da “era de liberdade” do capital. A burguesia em seu nascimento alimentou vontades revolucionárias, lutando contra a aristocracia e todos os entraves feudais para o seu pleno estabelecimento enquanto classe dominante. Contudo, como destaca Paul Baran, ao chegar ao poder abandonou qualquer objetivo revolucionário. Assumiu aquele estágio como “a estação terminal da História”, e passou a desempenhar um papel estritamente ideológico de justificativa sistêmica.
Na periferia capitalista, o liberalismo sempre esteve longe de qualquer anseio revolucionário. O discurso liberal ingressou na região num momento em que já era dominante nos países centrais. Este processo se deu através do eurocentrismo e colonialismo intelectual vigente, e foram os “bacharéis” de que fala Gilberto Freyre, os filhos de latifundiários, formados nas universidades europeias, que trouxeram os discursos inflamados do liberalismo aos trópicos.
Aqui esse discurso encontrou terreno fértil, sobretudo nas condições precárias da vida da maioria da população. Primeiro porque como destacado por Manoel Bomfim no começo do século XX, “há várias liberdades, [e os liberais] podem estar de acordo com muita gente”, segundo porque aqui, o Estado esteve sempre associado à opressão.
“O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente; e esta feição, com que desde o primeiro momento se apresenta ele às novas sociedades, tem uma influência decisiva e funestíssima na vida posterior destas nacionalidades: o Estado é o inimigo, o opressor, e o espoliador; a ele não se liga nenhuma ideia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança… Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico – tirânico e espoliador.” (Manoel Bomfim, América Latina: Males de origem, 1903)

Parafraseando Marx, quem disse que “É fácil ser liberal a custa da Idade Média”, podemos dizer que é muito fácil ser liberal na periferia. Aqui o Estado assume mais do que em qualquer outro lugar um caráter tirânico, afinal é preciso garantir a exploração capitalista dependente. Portanto, não é difícil culpar o Estado por todos os males de nossas sociedades. Acontece que essa percepção do Estado como opressor na maioria das vezes o enxerga como um ente apartado da sociedade, e não desde uma perspectiva de classe. Aliás, é esse discurso mesmo que o liberalismo tenta reforçar. Contudo, o Estado, no capitalismo, serve aos interesses da classe dominante, portanto, da burguesia. Assim sendo, do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora, é impossível ser contra o Estado capitalista, sem ser contra a burguesia.
A liberdade não adjetivada e, portanto, a liberdade que os liberais defendem, só pode ser entendida em nossa sociedade como a liberdade capitalista, a liberdade para o capital. Essa liberdade significa o “livre” espaço para a atuação do imperialismo, a “livre” negociação entre trabalhadores e capitalistas, o Estado mínimo, ou seja, um espaço ainda maior para os capitalistas atuarem “livremente”.
Essa ideologia identifica também o trabalhador de hoje como um ser livre, pleno de liberdades individuais, e é comum caracterizar o comunismo e os comunistas como inimigos da liberdade. Mas que liberdade é essa que obriga o trabalhador a acordar cedo todo dia, percorrer grandes distâncias em um transporte precário, para chegar ao seu local de trabalho, onde transforma sua força de trabalho em mais-valor para o benefício de outro? Que liberdade é essa em que a imprensa “livre” é controlada por uns poucos grupos econômicos que transmitem a mesma ideologia? A liberdade no capitalismo é basicamente a exaltação do trabalho “livre”; livre de amarras, livre de proteções, livre dos meios de produção e subsistência, livre de moradia. O trabalhador livre para o capitalista é aquele que só tem sua força de trabalho para vender, e nada mais. É livre também para pensar, mas dentro da ideologia dominante, é claro. Eis o homem ideal para o capital. Viva a liberdade! Viva?
 

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