Programa Pensamento Crítico – A questão da Nação ( E156)
Texto: IELA
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Pablo Verna
Relatos de Juan Nadies
Eu acuso a Julio Alejandro Verna, meu pai, médico e capitão do exército argentino, de genocida!
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Avançar além da historieta pessoal, mais além do drama particular, da família implodida no que a trama se desenrola ponto a ponto, de forma lenta e fragmentada; não se trata de tomar cargo dos segredos de alcova que, tantas vezes, vindo a luz, mobiliza curiosidade e estardalhaço de propaganda e efeitos midiáticos, eis um princípio de conduta que é bastante claro no relato de Pablo Verna, advogado criminal, militante da organização Asemblea Desobediente.
Tampouco se trata de roteiro teatral rodrigueano; o desmantelar a olhos nus das peças de armar que sustentam a clássica tríade edipiana – seus personagens postos à prova dos nove e revelados às entranhas; ou como se tomados em susto e desaviso por um flagra intempestivo que lhes arrancasse das mãos texto, sentido, verossimilhança a romper os acordos de quarta parede; não se trata da exposição pública dos fantasmas íntimos que avassalam a uma vida e que retornam, e retornam, até que se evolem sabe-se lá quando e porquê; não se trata de evocar o desmonte da instituição de matriz pequeno burguesa tangido pelo trauma ou por qualquer condição vitimizada, Paulo Verna rechaça de pronto este viés no que se dispõe a testemunhar em denúncia e juízo contra seu pai.
Todavia, adiantamos, Pablo Verna não titubeia em soletrar, com a ênfase o fôlego a coragem necessárias, sua condição primeira, a de ser filho de um genocida, médico e capitão do exército argentino, Julio Alejandro Verna, vivo e impune, partícipe e cúmplice da política sistemática e planificada de extermínio aplicada pelo terrorismo de Estado argentino durante a última ditadura empresarial militar, entre os anos de 1976 e 1983.
Nos termos de Pablo:
Minha intenção é que o fato de tornar visível e pública a condição de genocida de meu pai, assim como a ação política e militante pelos direitos humanos como filho de genocida não passe a ser uma espécie de telenovela familiar .
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Fora Nora Patrich quem, primeiro, me havia falado dos desobedientes, em fevereiro de 2020. Nora é artista plástica de mancheia, companheira de Roberto Baschetti, e ex militante do peronismo revolucionário na Organização Político-Militar Montoneros. Na ocasião, conversávamos sobre a experiência vivida por ela durante os anos de preparação e execução da contraofensiva montonera em 1978-80. Nora havia permanecido em Cuba e trabalhado como uma das mães sociais responsáveis pela Guardería dos filhos e filhas de militantes que, desde o exterior, haviam retornado a Argentina para reorganizar a luta em armas contra a decadente ditadura em um instante de retomada da resistência massiva sindical desde o final do ano de 1977 . Lembro que Nora me contara que há pouco se formara um agrupamento de filhos e filhas de genocidas que traziam a publico relatos bastante importantes e pertinentes àquele instante histórico que vivia a Argentina.
Depois disto, outra vez morando em Buenos Aires, no dia 15 de novembro de 2023, vou a apresentação e lançamento do livro de Nora, Jirones de mi vida – de Espartaco a Montoneros , e eis que durante as falas de um dos prefaciadores do livro, me desperta a atenção o pronunciamento de Pablo Verna. É que Nora mencionara que lhe era gratificante ter naquela mesa, e nas páginas de seu livro, a presença de alguém que, sem que tivesse consciência do fato, em algum momento de sua vida, esteve do outro lado. Me vejo tomado pela dúvida, o que estaria contando Nora que não sei? Qual seria este outro lado no qual estivera depositado à revelia Pablo Verna?
Vejamos um trecho do prefácio de Pablo:
Foi durante o julgamento ‘Contraofensiva Montonera’ que nos conhecemos, Nora e eu. Não havíamos trocado palavra até o dia em que se leu o veredito, e então houve uma reunião por zoom na que trocamos palavras e sentimentos todas e todos que participamos, e recebi com emoção as expressões de reconhecimento muito afetuosas e valiosas de Nora, o que realmente eu não esperava.
Esta história nos reúne, porém não por casualidade nem simplesmente por força do acaso. Ela foi uma militante montonera e eu sou filho de um genocida, – e ainda mais do que por isso, hoje me sinto um militante dos direitos humanos (o que me torna a vida muito mais plena) -, o certo é que estamos no mesmo lado contribuindo por mais Memoria, Verdade e Justiça.
(…) Nunca será demais apontar quem são os genocidas. (…) Muitos genocidas que levaram adiante um extermínio em total negação de seus crimes ou no melhor dos casos na contradição de não reconhecer a estes crimes nem dar informação, porém repetindo justificativas absurdas. Militantes do extermínio. Somente em nosso país há mais de mil condenados, muitos processados, muitíssimos impunes. Vivos ou mortos. Nenhum em paz .
Alguns dias depois, pedi a Nora Patrich que me passasse o contato de Pablo Verna – gostaria de entrevistá-lo, conhecer mais de perto o caráter das lutas travadas por estes desobedientes. Comentei com Nora e Roberto que me parecia importante contribuir de alguma forma para que estas vozes, e o que elas pleiteiam e pontuam, fossem conhecidas num país como o Brasil, país em que a extrema direita se mantinha organizada e mobilizada, inclusive, tendo circunstancialmente ganho o espaço de luta tradicional das esquerdas, as ruas e praças públicas. Mas mais do que isto, a este Brasil no qual os militares se mantêm blindados e que ocupam, ainda, inúmeros setores estratégicos da política institucional brasileira.
Mas não seria tão somente este nosso caso específico, imprescindível era nos unirmos para evocar a força do testemunho dos desobedientes a um tempo histórico no qual, mesmo na Argentina, se presenciava o avanço de personagens graves e obscuros tal como Victoria Villarruel. Menos de um mês depois, sob o susto e pavor dos incrédulos, no segundo turno do processo eleitoral, se confirmava a vitória da chapa Javier Milei / Victoria Villarruel à presidência da República.
Quando contactei a Pablo Verna, sua resposta foi imediata. Marcamos a entrevista para o dia 8 de março, às 16 horas, no seu escritório, nas imediações da Estação de metrô Tribunales.
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Propus a Pablo que dividíssemos a entrevista em três partes: a história pessoal – porque era a este recuo que o menino Pablo irá juntar as peças de um quebra-cabeças; a dimensão política de sua militância; e o cenário de avanço representado pela ascensão de Javier Milei, mas sobretudo, o de Victoria Villarruel que certamente está mais articulada com o projeto de reinserção das Forças Armadas como ator político protagonista na Argentina de agora, algo que era impensável há menos de dez anos.
Neste sentido, e como dispositivo estratégico de avanços graduais e contínuos, Villarruel retomava certo debate acerca da violência (em sua concepção generalista e abstrata) dos anos 1970 seguindo a esteira deixada pela teoria dos dois demônios; grosso modo, qual seja senão, a que evoca a condição de um terceiro excluído, a chamada sociedade civil que teria padecido, vítima e indefesa, dos excessos cometidos durante uma guerra suja e por seus atores armados cindidos em duas metades a uma confrontação. Na perspectiva contra insurgente de Villarruel, a violência seria originada pelas bandas terroristas e, por outro lado, em segunda hora e sob o salvo conduto de atuar em reação e resposta, a violência saída de mão, a perda do controle em excessos do setor militar; mas leia-se esta parte do processo como violência de restauração, espécie de boa violência que tramitaria na tentativa de reordenação do tecido social, ou seja, a violência exercida pelas Forças Armadas.
Importante ainda destacar que Villarruel opera também às brechas ou às grietas semânticas das pautas levadas a cabo por organismos de direitos humanos. Se, a seu ver, por um lado, e em revanche, se tratou, desde o período da redemocratização, do acionar esquerdista do aparato judiciário penal em sua função de suposta restauração da verdade e da justiça; se trataria agora, e em contramedida, de fazê-lo atuar de forma indiscriminada e não ideologizada retomando e revirando a tese acerca dos crimes e delitos de lesa-humanidade na direção das ações promovidas pelas organizações revolucionárias, tratadas por Victoria Villarruel como terroristas – ainda que lutassem contra um governo ilegítimo e por um projeto político, social e econômico distinto da condição dependente, periférica e subordinada imposta a Argentina e executada pelo imperialismo e seus sócios internos. E dentre tais sócios executores do trabalho sujo de domesticação da classe trabalhadora organizada e rompimento da espinha dorsal sindical de matriz peronista, estariam as Forças Armadas – espécie de manipanso de adoração de Victoria Villarruel.
Claro está que Victoria Villarruel se esquece desta desmesura de sentido e das distintas valências das forças envolvidas na violência dos anos setenta; assim como também esquece e tergiversa o conteúdo e o caráter do projeto de subalternização e de entrega da riqueza nacional a que justificava tal desmesura da parte destas mesmas Forças Armadas argentinas. Todavia, sigamos com Pablo Verna em seu depoimento. Vejamos o que Pablo dirá acerca de Villarruel.
Fazendo referência ao investigador e sociólogo Daniel Feierstein, Pablo evoca o que seria a terceira etapa do genocídio, a sua última etapa, o silenciamento, a ocultação e a negação .
Nas palavras de Pablo Verna:
Se há gente construindo poder, e trabalhando politicamente, se esta gente trabalha para ocultar, silenciar, confundir, negar, é então parte do genocídio. Não com alcances penais, porém sim com alcances sociológicos e históricos, é parte do genocídio em termos sociológicos e históricos. Partindo deste pressuposto, Villarruel é um exemplo muito importante no sentido de perpetuar o genocídio, de cumprir com este objetivo. Victoria Villarruel é o projeto que melhor encarna tal objetivo, e chegando a vice-presidência o potencializa. Porém se deve destacar que eles, há anos, estão presentes com sua página de internet e em outros espaços – que são vários, inclusive trabalhando em um grupo que considero como o mais perigoso, que se chama Puentes para la Legalidad porque eles se fazem como os grandes inocentes da história e dizem coisas tais como ‘não, o que se passa é que o caso de meu papai está mal provado’, e esses são os cavalos de batalha para questionar os juízos. Entravam por este lado, dizendo: ‘os crimes foram aberrantes, porém este juízo a esta pessoa está mal’ e tratam de tentar mostrar, tratam de montar vários cavalos de batalha como este. O que eles queriam era modificar o que se chama de Stardard Probatório – que, no Direito Penal, diz respeito ao rigor necessário de provas de que se necessita para demonstrar algo. E em distintos tipos de delitos o rigor de provas é distinto.
Villarruel segue por um lado que é muito discursivo. Porém o objetivo muito além do aparente é sempre o mesmo, a liberdade aos genocidas e o quanto antes. E se não se alcança a liberdade integral, se avança numa onda de prisões domiciliares, de saídas transitórias, de benefícios que se vai conquistando, de poder estar em sua casa porque estar em casa é muito melhor do que estar no cárcere.
O que eles querem não é apenas a liberdade ou a impunidade, eles querem que depois que se consiga esta impunidade, que se lhes considere heróis da pátria, porque essa é sua forma de pensar .
Se evocarmos aqui os termos de um duelo de narrativas – ancorado, claro está no rigoroso registro dos fatos , há de ser destacado que testemunhos como os de Pablo Verna e seus companheiros de Asemblea Desobediente, assim como os de outro agrupamento tal como Historias Desobedientes: familiares de genocidas por la Memoria, la Verdad y la Justicia são aportes importantíssimos para contrapesar, resistir, se opor, neutralizar e/ou anular os avanços do projeto protofascista encampado por Victoria Villarruel e companhia. Destaque-se que na sanha de promover o confucionismo e a tergiversação, há entidades tais como o Centro de Estudios Legales sobre el Terrorismo y sus victimas (CELTYV), fundada e presidida por Victoria Villarruel .
E a condição urgente urgentíssima destas medidas de contrainformação e propaganda se nos fazem absolutamente imperiosas, no que avançam as ações ultraliberais do governo de Javier Milei sob o tacão de ferro assegurado pelo protocolo repressivo impetrado pela Ministra de Segurança Patrícia Bullrich . Arriscamos dizer que se trata de uma corrida contra a gravidade de um tempo que não para.
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O que fazia seu pai, Pablo? – a pergunta me sai de bate-pronto em certa da larga entrevista de hora e meia. Nada que estivesse fora de um roteiro previamente acordado, mas a forma com que lhe voltei a questão me fez pensar em objetos cortantes, em aparatos de incisão.
O que me contou minha mãe era que ele participava dos sequestros dos companheiros e das companheiras, junto a estas patotas, nesses operativos. É que mesmo quando se estava na missão de sequestro, sempre tinha que estar presente um médico que ia junto no veículo, assim como ia junto também o pessoal de Inteligência. Por exemplo, assim ocorreu no sequestro e assassinato de Armando Croatto e Horacio Mendizábal. Minha mãe contou tudo a uma de minhas irmãs. Havia uma espécie de camionete com formato de furgão e ali estava o médico, que bem pode ter sido meu pai .
Pablo Verna conta ter escutado várias vezes, em casa, a menção a este caso, que seu pai teve que salvar a vida de Mendizábal no Hospital Militar de Campo de Mayo, onde trabalhava. Se se busca informações daquela época sobre o caso, o que nos chega é que se tratou de um enfrentamento entre agentes do Estado e os ‘subversivos’, e que a morte de ambos teria sido a resultante desta troca de tiros. Importante destacar que a época do assassinato ocorrido no dia 19 de setembro de 1979, estava em curso a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cuja primeira delegação havia chegado em solo argentino no dia 06 de setembro, executando os trabalhos até a data de 20 de setembro, dia seguinte ao sequestro e assassinato dos dois militantes de Montoneros . De forma sintética e conclusiva, podemos dizer que se tratava, a este momento, de fazer desaparecer aos desaparecidos, ou ainda, noutra mão desta tática genocida, de construir cenário, enredo, e dispor os personagens a tal quadra narrativa, além, claro está, de todo um dispositivo de propaganda e disseminação a que atendiam de modo integrado os meios de comunicação afiliados ao projeto político econômico levado a cabo por intermédio dos diversos atores e cúmplices do terrorismo de Estado. Aí estava Julio Alejandro Verna, médico, capitão do exército, genocida.
Em diversos instantes de nossa entrevista, Pablo Verna evoca a condição de inocência que lhe perpassava até que, aos poucos, e ao longo de anos, os pedaços de informações que ia colhendo, aqui e ali, fossem se juntando como a uma trama na que a consciência é o que se faz despertar. E é deste lugar de inocência que irá interpelar a seu pai, tantas vezes, como quando, ainda no que tange ao episódio do assassinato de Armando Croatto e Horacio Mendizábal, lhe volta esta questão:
Mas porque salvar sua vida [se refere a situação de Mendizábal] se lhe matariam depois?
E Pablo lembra da resposta de seu pai:
– Para lhe arrancar informações, é claro, e você acha que se faria isso para quê?
Sigamos com Pablo sua torrente de memórias:
E outra coisa que contou minha mãe é que meu pai havia participado de dois ou três voos da morte. Pelo menos assim ela começou a contar a minha irmã. Inclusive contou que certa vez teve que injetar os anestésicos a uma família inteira antes que eles fossem atirados, com vida, em pleno voo ao Rio de La Plata . Muito provavelmente se tratava de uma mãe, suas duas filhas e o namorado de uma delas. O nome da família é Gofin, o caso consta dos juízos da Contraofensiva. Minha mãe contou isso e impôs a minha irmã silêncio total.
Pergunto a Pablo como sua mãe reagia diante disto, qual era a sua posição face a este inventário de terror, e ele ressaltará o caráter perverso que transcendia a cada instante no cenário de sua casa, inclusive a nomeando como uma militante do extermínio – algo que se pode atestar através de seu depoimento, por exemplo, no que tange a naturalização do que era simplesmente aberrante.
Minha mãe dizia coisas como por exemplo: ‘E o que você queria que fosse feito? Se fazia o que era para ser feito, se tinha que apagá-los da face da terra [refere-se aos ‘subversivos´], se tinha que pará-los de alguma forma’. Esses termos são tremendos e isso era o que se transmitia aos filhos. Lembro-me de uma pergunta inocente que fiz a minha mãe: – Por que ao invés de matá-los, não se lhes expulsava do país e pronto? Ao que ela respondeu: ‘Porém, querido, eles já tinham sido expulsos do país, eles voltaram com documentos falsos, com armamentos’. Mas eu não acreditei nisso, é que havíamos viajado de carro no verão de 1982 ao Brasil, e sabia como todos éramos revistados nas fronteiras. Talvez se pudesse entrar com documentos falsos se muito bem-feitos, mas com armamentos? Isso não me convencia. Estávamos nos referindo ao período da contraofensiva de Montoneros, e minha mãe sabia tudo o que se passou na contraofensiva, coisa que dificilmente uma pessoa com informações comuns poderia saber. Minha mãe contava que quando batia remorsos em meu pai, ele se confessava ao Padre Néstor Sato , na Igreja San Rafael, no bairro Villarreal.
Minha mãe contava que o padre respondia a meu pai da seguinte forma: – Para tais questões, você não deve se sentir culpado, não há nenhum problema nisso, é preferível matar alguns para salvar a cem. (…) Meu pai, certa vez, em uma conversa com minha irmã, entre várias coisas que disse – coisas como: ‘não me arrependo de nada!’ -, contou um fato que se deu no ano de 1979, quando estava na Argentina a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, então eles simplesmente não poderiam mais fazer desaparecer as pessoas, e haviam quatro ‘subversivos’ que tinham que eliminar, e então eles resolvem colocar os quatro em um automóvel, simulam um acidente, e jogam esse automóvel nas águas de um riacho de Escobar, província de Buenos Aires; o detalhe é que a estes quatro, meu pai havia aplicado esse mesmo anestésico dos voos da morte, e ele explicou a minha irmã que eles seguiam respirando porém que estavam paralisados muscularmente e ao cair na água não conseguiam se mover, e a água lhes ia entrar nos pulmões, o que significava que nas autópsias iria constar como afogados, morte por afogamento, e de fato foi assim, se pensou tal coisa, fizeram desta forma. Estas quatro vítimas sabemos quem são, é o único caso do ano de 1979 com tais características, está julgado e condenado nos julgamentos relativos à Contraofensiva, porém, meu pai não foi julgado neste processo. Porém teria que ser. Isso é uma barbaridade da justiça de San Martín em não avançar na investigação, em não o imputar e convocá-lo a uma indagatória por esse caso. Gostaria muito que constasse em letras grandes o nome destes quatro companheiros mortos .
Alguns dias depois de nossa entrevista, Pablo Verna me fará chegar por mensagem de WhatsApp os seguintes nomes:
ALFREDO JOSÉ BERLINER
SUSANA HAYDÉE SOLIMANO
DIANA SCHATZ
JULIO EVERTO SUÁREZ.
Aqui estão dispostos com o destaque solicitado por Pablo .
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Recuemos um pouco no recorte temporal explicitado em nossa entrevista. Pablo conta que quando nasceu, seus pais viviam em um bairro militar no sul do país, na Colônia de Sacramento, a 140 quilômetros de Comodoro Rivadavia. Com três anos, toda a família se desloca para viver em Buenos Aires, a princípio em um edifício em Liniers. Ano e meio depois, em meados de 1978, compram um apartamento em uma região bastante modesta, em San Fernando, bairro norte, em uma zona de edifícios Monoblocks e com favelas nos arredores. Conta também que seu pai, Julio Alejandro Verna, era filho de professores rurais que quando vieram para Buenos Aires, se tornaram diretores de escolas primárias ainda muito jovens e que alçaram a uma boa situação econômica, fato este que permitiu que seu pai levasse adiante a carreira de medicina, especializando-se em traumatologia. Todavia, seu pai desde logo quis ingressar na vida militar. Em 1972, entra para o exército. Àquela ocasião, já se vivia sob uma ditadura empresarial-militar regida pela estratégia de segurança nacional, implantada desde o ano de 1966.
Ao longo de minha infância [nasço em 1973], e adolescência, algo que me causava impressão era o tema quase sempre presente dos comunistas, dos terroristas e dos subversivos. Não que fosse algo onipresente, mas estava posto, era algo que se ia naturalizando por meio do que entendo ser a ação psicológica que era dirigida, no nosso meio, às crianças, aos filhos da ‘família militar’.
Curioso que isso me custou muito tempo para perceber. Ouvíamos coisas como: ‘Se os subversivos chegam a tomar o poder, não vai mais haver natal’. Era algo como ‘não te metas com isso!’, e seguiam com o raciocínio: ‘porque todos os subversivos são comunistas e como os comunistas são ateus, então não vai mais haver natal’. Veja – era o tipo de raciocínio simples e esquemático, porém, o típico esquema que pega uma criança, era uma operação psicológica para crianças de cinco, seis, sete anos. E a partir daí, já se tem os seus inimigos. Entre as recordações que tenho desta época, uma que me parece bastante curiosa diz respeito às maletas que os médicos costumam usar, com estetoscópio, aparelho de tomar pressão etc., meu pai tinha duas, uma preta e outra marrom. Eu gostava mais da preta. Lembro de perguntar a ele: – pai, por que você tem duas maletas? E ele me responde que a maleta marrom lhe havia dado os seus colegas de trabalho. Bem mais tarde é que me caiu a ficha de que esses tais colegas de trabalho eram a patota que fazia os sequestros, os tipos da Inteligência de Estado, e que a maleta marrom – que eu não gostava – eles haviam roubado de um companheiro que foi sequestrado e desaparecido .
Será a primeira vez de inúmeras ao longo de nossa entrevista que Pablo Verna se referirá aos militantes políticos inseridos na luta revolucionária como companheiros. Certa feita, lhe pergunto se para ele, àquela época, seu pai era médico ou militar, se ele andava fardado ou em vestes de civil, e como isto se elaborava na sua cabeça de adolescente em meio ao processo de redemocratização.
Sigamos o fluxo de lembrança de Pablo:
Nós fomos orientados a dizer que ele era médico. Alguns filhos de policiais, por exemplo, tiveram que dizer que seus pais eram vendedores de seguro, ou alguma outra profissão qualquer, ou seja, para os filhos era como se fosse uma distorção absoluta da realidade. No nosso caso, ao menos, tínhamos uma metade que correspondia a verdade, de fato ele era médico. Dizer isso não era propriamente uma mentira, simplesmente tínhamos que dizer uma parte da verdade, e a outra metade tínhamos que calar sobre. E isso começou antes da redemocratização, por volta dos anos de 1977-78. Até então, meu pai entrava e saía do edifício fardado, porém parece que houve algumas ações dos companheiros revolucionários que transcenderam a minha família, e que então se lhes disse que, por questões de segurança, era melhor que ele trocasse a roupa civil pela farda já dentro da repartição militar. Em 1984-85, eu estudava em uma escola pública. Nesse momento se falava dos militares com muito ódio, com muito desprezo. Modo geral, entre as gentes comuns, se tinha muita raiva dos militares que haviam destruído o país. De nossa parte, seguíamos falando que o pai era médico .
No que tange a certo experimento de ‘clandestinidade’ a este universo juvenil, Pablo evoca um caso que nos parece bastante sintomático do traço perverso a que ele identifica em sua mãe.
Lembro que meu melhor amigo a estes anos, estou me referindo a 5ª., 6ª. e 7ª. séries do colegial, tinha seu pai desaparecido. Coisa que me inteirei muito anos depois. Ele vivia com sua avó, sua tia, que eram duas velhas resmungonas, mas eram pessoas boas, que cuidavam dele com muito carinho, apesar de ter esse jeito, elas eram destes tipos sempre queixosos. Eu lhe perguntei algumas vezes por seu pai, e o fato era que minha mãe é que me mandava lhe perguntar isso, como se metesse o dedo na chaga aberta, ela sempre foi muito perversa, eu dizia a ela que já havia perguntado isso a ele, e que, inclusive, eu já havia dito a ela o que ele me havia respondido, que seu pai tinha uma fábrica de geladeiras, que trabalhava em Mar del Plata. Era isso o que ele me dizia. E isso era típico dos filhos de pais desaparecidos, se contava coisas deste estilo. Lembro que minha mãe não se conformava e me mandava perguntar outra vez. Anos depois, acho que em 2016 ou em 2018, não me lembro bem a data, eu contactei a este amigo e lhe perguntei: – Se em verdade seu pai era um desaparecido, e ele me respondeu que sim. Minha mãe sempre soube disso.
Mas fazendo esse giro no tempo, você me perguntou sobre o processo de redemocratização, eu tinha cerca de 11 anos, e o tema dos desaparecidos era muito presente nos meios de comunicação. Lembro de uma vez que minha irmã havia voltado da escola e que sua professora havia tocado neste tema. Meu pai reage com insultos, com ódio e com uma violência terrível. Contra a professora que, segundo ele, deveria ser uma esquerdista subversiva, mas também contra Alfonsín. Em minha casa, começou a ecoar a chamada ‘teoria dos excessos’, minha mãe costumava dizer que a coisa tinha escapado das mãos dos milicos, é como se ela estava dizendo que eles tinham se excedido, porém, outra vez, lhe vinha a justificativa: ‘algo tinha que ser feito com esses tipos, eles eram tipos que denunciavam com os dedos de suas próprias mãos aos seus companheiros, eles apontavam as suas casas. Os piores, os mais terríveis eram capazes de morrer na tortura, porém não falavam nada’. Eis o típico raciocínio dos defensores do extermínio em sua contradição básica. Se tratava apenas de justificar, e não importava o que se fizesse, os companheiros seriam culpados se agissem de forma A, de forma B, de forma C, todos eles já estavam condenados de antemão .
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Acontece que o tomar consciência da verdade dos fatos, do que ocorrera à história recente de seu país é algo que se lhe foi desfolhando aos poucos, em pequenas tiras, em conversas regadas por não ditos, por subterfúgios, em tergiversações, entre Pablo e seu pai; algo que se ia pinçando das falas da mãe, algo que vai como que se compondo a partir de um mosaico de dados colhidos aqui e ali, e nunca como que regido pela instantaneidade de um gesto-palavra definitiva; nada se lhe veio de golpe, de forma abrupta, de uma única cajadada. Era necessário romper as amarras do que, desde cedo, se lhe foi atando aos lugares-comuns daquelas narrativas ‘natalinas’, a da construção do inimigo interno e que rondeia as fantasias da infância, os jogos das crianças do bairro militar. Era necessário ingressar, acercar-se, trazer para junto a este ‘irredutível outro’, estranho estrangeiro, meteco periculoso, os subversivos, os comunistas, os que vêm de fora, os que denunciam aos seus colegas, torna-los uns seus companheiros numa coreografia que suplanta suspeitas; por outro lado, como que em reversão dialética, era necessário despregar-se do que lhe era íntimo, próximo em demasia, arraigado nos contornos da casa-corpo, esta tríade primeira de funções geradoras de identidade e sinonímias; era fundamental desmantelar a história privativa encorpando-a dos enredos de que compõe o arco histórico-mundial. É que havia um mundo em grita no elevado da hora dos chacais, e àqueles do entorno de Pablo Verna atendiam a condição de algozes.
Diz Pablo:
Uma vez que eu pude saber o que meu pai fez, pude saber quem é meu pai, e uma vez que eu soube quem era meu pai, eu pude escolher o que eu ia fazer com isso, e uma vez que eu sei o que farei com isso, eu posso chegar a saber quem eu sou. Essa é a razão do quanto me sinto tão bem em denunciá-lo. Eu poderia guardar o horror debaixo do tapete, mas não. Em 2013, eu tive a absoluta certeza e o conhecimento de quais eram os crimes cometidos por meu pai, então me ponho a seguinte questão: Que farei com isso? Entretanto, eu não sabia como proceder e necessitava encontrar um modo (emocionalmente eu sabia que queria fazer a denúncia). Como alguém pode não fazer nada se seu pai fez parte dos crimes de lesa humanidade, seria agir como se aqui não tivesse acontecido nada. Foi quando li uma nota jornalística sobre o caso de Vanina Falco , e aquilo me disparou, me foi como que a resposta a tudo, bateu forte em mim, e resolvi que entre a lealdade a meu pai e a lealdade a humanidade, eu seria leal a humanidade, e que a partir desta resolução eu iria ser leal a mim mesmo. Existe pelo menos 30 mil motivos e o que se tem que fazer é contar tudo o que se sabe aos organismos competentes. Pode ser que não sirva para nada, porém pode ser que seja a chave que faltava para juntar peças que encerram a um quebra-cabeças .
Pergunto a Pablo por que poderia não servir para nada a sua denúncia. Pablo conta das amarras internas a um código penal de matriz liberal-burguesa que está aí, sobretudo e em primeiro lugar, para defender a integridade da família e da propriedade privada. Ele explica que, em 2013, fez a denúncia na Secretaria dos Direitos Humanos e essa Secretaria remeteu sua denúncia ao Juri de Instrução de San Martín e até hoje não deu em nada.
Ele explica:
Existe a proibição do código processual penal artigo 178 e 242 de denunciar e declarar contra um familiar seu, salvo que o delito tenha sido cometido contra a mesma pessoa ou a outro familiar de igual grau ou mais próximo que o denunciante ou o declarante. Explico melhor: ninguém pode denunciar a seu pai por um delito salvo que haja sido cometido contra seu próprio filho ou contra outro familiar de um grau mais próximo, por exemplo, um irmão. Se se é filho e o delito é cometido contra um primo, então não se poderá denunciar, agora por exemplo, se se é primo e o delito é cometido contra um filho, sim, se pode denunciar porque este é um grau de parentesco mais próximo do que seria um primo. Isto se funda em que a Constituição Nacional também estabelece a proteção da família em caráter constitucional. E tais proibições terminam funcionando como um impedimento, um obstáculo para que se cumpra a obrigação de prevenir, de investigar e de sancionar os graves crimes contra a humanidade. E então a denúncia é removida .
– E então, Pablo, seu pai permaneceu solto, seguro, tranquilo?
Solto sim, mas seguro e tranquilo não. Quando em 2017 se forma a agrupação de filhos, filhas e familiares de genocidas, sai uma matéria na emissora Telefe que gerou muitíssima difusão, e então, passados uns três dias, meu pai (com quem já não tinha contato há vários anos) me faz uma ameaça, aliás, uma série de ameaças, e então eu o denuncio em 2018, denuncio todas essas ameaças.
– Que tipo de ameaças te fez teu pai?
Ameaças a minha família. Houve chamadas telefônicas nas que ele dizia ‘olha, você é advogado, todo o que você está fazendo está incomodando a muita gente, tem muita gente que tá puta da vida contigo, gente que não sabe como isso pode acabar’, ou seja, uma ameaça quase como quem não quer demonstrar que está fazendo uma ameaça, uma ameaça muito sutil e disfarçada. Porém o que realmente foi uma ameaça bem clara se deu através de uma série de mensagens de Whatzapp, uma série de chats que ele envia a minha mãe, e em certa parte destas mensagens, em meio a um monte de ignorâncias e barbaridades que ele diz, ele afirma: ‘Você, ele, sua esposa e sua filha são meus inimigos, por outro lado, eu sou o único inimigo dele, disso você se quiser que tire suas próprias conclusões’. Isso foi uma ameaça clara, foi sua ameaça. Minha filha nesse momento tinha 7 anos. Se esta inimizade a que ele estava se referindo fosse ideológica, minha filha não poderia ser sua inimiga, logo, o que ele estava fazendo era de fato uma ameaça. Isso eu disse em minha denúncia e a juíza, em sua sentença, reafirmou o mesmo. Na ocasião, ele foi condenado a um ano de prisão por essas ameaças .
E como Julio Alejandro Verna era réu primário (sic) e a pena era inferior a três anos, tal pena foi comutada por serviços a comunidade. Julio Alejandro Verna continuava solto. Caminhando entre as gentes pelas ruas.
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Dos companheiros…
Pablo Verna ousou cruzar o deserto de não-ditos, ousou afrontar a desconfiança dos que, talvez, a princípio, o associassem ao lastro de um passado de filiações ingrato e incômodo. História pregressa contra a qual Pablo não se cansou de lutar, interpelando aos seus, fazendo emergir os monstros depositados no fundo falso dos armários e das zonas de conforto. Mencionamos que foi desde a inocência que tal interpelação foi se montando, até que se lhe catapultasse o peso da consciência dos fatos e das culpas, o inventário dos algozes presentes em cena. Simbolicamente era de mortes o de que se tratava, ao menos a Pablo, a dimensão simbólica da morte do pai, da incisão profunda, sem arranjos e retorno, no corpo da família primeira; Pablo esteve a esta hora e a estes gestos, sempre a frente, palmilhando novos horizontes, sempre. Mas não bastava.
Faltava o outro lado da moeda, o trazer para junto de si o que lhe fora moldado, a revelia, sob as vestes do meteco, do estranho outro, do irredutível inimigo que se constrói e calunia com palavras de baixíssimo calão, os subversivos. Pablo destravou ao reverso o dispositivo de ação psicológica que lhe conformou quando pequeno. Era preciso esvaziar de sentido àquele maquinário de fabulação que fazia do horror e do arbítrio fluxo corrente naturalizado, era preciso olhar profundo a estes outros. Pablo os trouxe para junto de si; Pablo se deu a esta aproximação – num gesto que acentua a dimensão política de sua empreitada. Tornar-se companheiro, fazer-se presente a este trabalho de reconstrução do tecido social que se funda na evocação da memória, na exigência da justiça, e na pavimentação da verdade do que se viveu, doa a quem doer.
São palavras de Pablo:
Comecei a me interessar em saber o que faziam os companheiros, porque faziam o que faziam, como militavam, quais eram seus objetivos, o que buscavam construir, e aí me dei conta que realmente foi o mais maravilhoso que tivemos em nosso país. E se estes seus objetivos tivessem chegado a ser realizados – com toda a amplitude de ambição dos companheiros, sem dúvida teríamos um mundo melhor, muitíssimo melhor. De alguma forma, a história desta luta, não importando o resultado trágico que a tomou de assalto, o legado desta luta está presente em nós no melhor que temos e experienciamos .
Destacaria, ainda, dois pontos.
Um primeiro, que claramente demarca o sentido profissional, mas também político, de sua militância, e que diz respeito ao seu trabalho como advogado criminal: Pablo Verna vem trabalhando na equipe de Pablo Llonto, jornalista, escritor, advogado especialista em direitos humanos que, desde 1985, atua na investigação e imputação dos responsáveis pelos crimes de lesa humanidade na Argentina. Llonto fazia parte da equipe que colaborou com o Centro de Estudos Legais e Sociais no julgamento das Juntas Militares. No caso de Pablo Verna, ele atuou na terceira etapa do julgamento dos crimes cometidos no centro clandestino de detenção, tortura e extermínio Puente 12, sendo a primeira vez em um processo de julgamento de genocidas que um advogado, filho de repressores, participou no interrogatório judicial, em debate oral e público, por crimes de lesa humanidade .
O segundo ponto, mais comezinho, trivial talvez, mas que é um pequeno indicativo deste mergulho obstinado em desvendar e conhecer a este ‘outro’, os companheiros de que fala Pablo. Ao longo destes dias no que me vi envolvido à tarefa de escrever este ensaio, depois de uma semana decupando a entrevista que realizamos – por diversas vezes, escrevia ao zap de Pablo tirando aqui e ali algumas dúvidas. Para além da gentileza e prontidão das respostas, em uma destas consultas, Pablo me contou que estava lendo ao livro de Fernandez Long, um livro de memórias montoneras. Nada que possa surpreender, afinal, recordemos do prefácio de Pablo ao livro de Nora Patrich, Jirones de mi vida – de Espartaco a Montoneros. Destaco, por fim, este trecho do mencionado prefácio.
São palavras de Pablo Verna:
Nora me fala de igual para igual, ela é assim, não impõe nenhuma superioridade. Quem for ler o livro, ou quem a conheça de outro modo bem o sabe, ou saberá. Porém não somos iguais. Nora – e com ela todo o movimento de Direitos Humanos-, com sua mensagem de verdade – em todos os seus aspectos -, nos tem dado a oportunidade de nos aproximarmos a ela e nos liberarmos da entorpecedora ação psicológica e influências recebidas pelas e pelos desobedientes de nossas famílias de origem. Que essa imensa verdade haja sido recebida pelas e pelos desobedientes é algo que – suponho – nunca poderíamos imaginar e nos tem provocado fortíssima emoção. Este encontro nos une hoje não sob qualquer ideia absurda de reconciliação, tampouco de perdão, mas sob uma vontade e um compromisso comum militando nos Direitos Humanos .
Texto: Rafael Cuevas Molina
Texto: IELA
Texto: IELA
Texto: IELA