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Ferramentas para compreender o século XXI

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Por IELA em 02 de maio de 2018

Ferramentas para compreender o século XXI

Apoiando-se nos trabalhos dos seus antecessores, Marx inscreve-se na história do pensamento económico. Ele é nada menos que o fundador da macroeconomia moderna.
Num artigo de 1925, Keynes exclamava: “Como posso admitir uma doutrina que consagra como Bíblia, subtraindo-o a toda crítica, um volume de economia política ultrapassado, que não só é falso de um ponto de vista científico como também não tem qualquer interesse, nenhuma aplicação possível no mundo actual? [1] Mais recentemente, Jonathan Sperber, autor em 2017 de uma biografia de Marx [2] , é igualmente categórico: “Encontram-se na obra de Marx poucas coisas que interessem as tendências da economia ou da teoria económica do fim do século XIX ou do século XX”. Mas outros pensam, ao contrário, que as contribuições de Marx não estão ultrapassadas e que permanecem uma referência fecunda para a compreensão do capitalismo contemporâneo. 
Ainda que se situe no prolongamento dos clássicos (de Adam Smith a David Ricardo), a obra de Marx introduz uma ruptura e extrai da sua abordagem crítica conclusões perigosas para a ordem estabelecida. Era preciso portanto passar da economia política à ciência económica e bifurcar para um outro paradigma, por razões claramente expostas por John Bates Clark: “Os trabalhadores, dizem-nos, são permanentemente desapossados do que produzem […] Se esta acusação fosse fundamentada, todo homem dotado de razão deveria tornar-se um socialista e a sua vontade de transformar o sistema económico apenas exprimiria seu sentido de justiça”. Era preciso portanto “decompor o produto da actividade económica nos seus elementos constitutivos, a fim de verificar se o jogo natural da concorrência leva ou não a atribuir a cada produtor a parte exacta de riquezas que ele contribui para criar”. [3] É a teoria da repartição, hoje dominante. 
No livro II de O Capital, Max expõe seus esquemas da reprodução [4] que distinguem duas grandes secções: a secção I que produz os bens de investimento e a secção II que produz os bens de consumo. Ele descreve as condições de reprodução, ou, dito de outra forma, as relações que devem existir entre a produção das empresas e seus mercados. Estas relações exprimem-se em valor de troca, mas Marx insiste também sobre o facto de que a estrutura desta oferta deve corresponder à da procura social em termos de valor de uso. Esta abordagem de Marx é evidentemente inspirada pelo famoso Tableau économique de François Quesnay [5] que era, segundo ele, uma “exposição, tão simples quanto genial para o seu tempo” [6] . 
Florescimento: pela redução da jornada de trabalho 
“A única liberdade possível é que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente seus intercâmbios com a natureza, que a controlem em conjunto ao invés de serem dominados pelo seu poder cego e que efectuem estes intercâmbios dispensando o mínimo de força e nas condições mais dignas, as mais conformes à natureza humana. 
“Mas esta actividade constituirá sempre o reino da necessidade. É para além que começa o desenvolvimento das forças humanas em si, o verdadeiro reino da liberdade que não pode florescer senão fundamentando-se sobre o outro reino, sobre a outra base, a da necessidade. A condição essencial deste florescimento é a redução da jornada de trabalho”. Karl Marx, O capital, livro III, capítulo 48

Ainda que não tenha partido do zero (também se poderia mencionar Steuart [7] ou Sismondi [8] entre as suas fontes de inspiração), pode-se sustentar que Marx é o fundador da macroeconomia moderna. É o que reconhecia a keynesiana de esquerda Joan Robinson, aliás crítica severa de Marx: “Partir de Marx teria poupado [a Keynes] muitos problemas” [9] . Mesmo Paul Samuelson, alvo favorito de Joan Robinson e ele próprio crítico muito cáustico de Marx, assim o reconhecia: “Sem dúvida todos teríamos ganho em estudar as tabelas de Marx mais cedo”. [10] 
A finança vista por Marx 
Mas a mais bela homenagem é a de Wassily Leontief, em 1937: “[Marx] desenvolveu o esquema fundamental descrevendo as relações entre os ramos dos bens de consumo e dos bens de equipamento. Ainda que ele não tenha encerrado o assunto, o esquema marxista constitui sempre uma das raras proposições sobre as quais existe um amplo consenso entre os teóricos do ciclo económico”. E acrescenta: “A análise contemporânea do ciclo económico é claramente tributária da economia marxiana. Sem levantar a questão da prioridade, quase não seria exagerado dizer que os três volumes do Capital ajudaram mais que qualquer outro trabalho a por esta questão no centro do debate económico”. [11] 
Um dos componentes da crise actual é a crença de que a finança seria uma fonte autónoma de valor. O que não tem nada de novo: “Para os economistas vulgares que tentam apresentar o capital como fonte independente do valor e da criação de valor, esta forma é evidentemente uma bênção, pois ela torna irreconhecível a origem do lucro e atribui-o ao resultado do processo de produção capitalista – separado do próprio processo – uma existência independente” (O Capital, Livro II, capítulo 24). 
Desemprego e exército de reserva 
Este tipo de ilusão só é possível se se apoiar sobre uma teoria “aditiva” do valor, onde o rendimento nacional é construído como a soma das remunerações dos diferentes “factores de produção”. A teoria marxista é, ao contrário, subtractiva: as formas particulares de proveito (juros, dividendos, rendas, etc) são punções sobre uma mais-valia global cujo volume é pré-determinado. Não se pode “enriquecer dormindo” senão na base desta punção operada sobre a mais-valia global, de modo que o mecanismo admite limites: os da exploração que é o verdadeiro “fundamental” da Bolsa. A crise assinala portanto o retorno do real, como uma chamada à ordem desta dura lei do valor. 
Desde há quatro décadas, o capitalismo contemporâneo caracteriza-se pela persistência de um desemprego em massa e pela extensão da precariedade. Uma das maneiras de explicar esta situação consiste em invocar a existência de uma taxa de desemprego de equilíbrio, por vezes qualificada de “natural”. Mas a “taxa de desemprego que não acelera a inflação” (o Nairu ) é também aquela que faz baixar a taxa de lucro. Redescobre-se assim “o exército de reserva industrial” de que falava Marx. “A proporção diferente segundo a qual a classe operária se decompõe em exército activo e em exército de reserva, o aumento ou a diminuição da superpopulação relativa, o grau no qual ela se encontra ora “contratada” ora “descontratada”, numa palavra, seus movimentos de expansão e de contracção alternativos correspondem por sua vez às vicissitudes do ciclo industrial, eis o que determina exclusivamente estas variações” (O Capital, livro I, capítulo 25). Tem-se aqui uma descrição bastante fiel das regras de funcionamento de um capitalismo que visa aumentar a taxa de exploração mantendo a pressão exercida pelo desemprego em massa sobre os salários e desconectar a sua progressão dos ganhos de produtividade. 
Um capitalismo mundializado 
O fio condutor da análise de Marx é que “a base” [do modo de produção capitalista] é constituída pelo próprio mercado mundial” (O capital, livro III, capítulo 20). Esta instituição foi prolongada pelos teóricos do imperialismo os quais mostraram que a economia mundial devia ser considerada como um conjunto estruturado de maneira assimétrica. Hoje a mundialização caracteriza-se por mecanismos novos (cadeias de valor mundiais, emergência, etc), mas o facto essencial é a liberdade total dos capitais. 
Um patrão, Percy Barnevik, então presidente do grupo suíço-sueco ABB, em 2001 podia assim definir a mundialização como “a liberdade para o meu grupo investir onde e quando quiser, produzir o que ele quiser, comprar e vender onde quiser e ter de suportar os menores constrangimentos possíveis em matéria de direito do trabalho e de legislação social” (citado por Le Devoir, Montreal, 05/Maio/2001). Esta é exactamente a trajectória encarada por Marx: “As leis imanentes da produção capitalista resultam no entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal”. (O capital, livro I, capítulo 32). 
Uma das tendências mais notáveis do capitalismo contemporâneo é procurar (re)transformar em mercadorias o que não o é ou não deveria sê-lo, em primeiro lugar os serviços públicos e a protecção social. Mas é sobretudo a força de trabalho em si mesma que o capitalismo contemporâneo desejaria reduzir a um estatuto de pura mercadoria. O objectivo das “reformas” do mercado de trabalho é não ter de pagar o assalariado senão quando ele produz valor. Isso implica reduzir ao mínimo e transferir às finanças públicas os elementos de salário socializado, “remercantilizar” as reformas (fundos de pensão) e a saúde (seguros privados), até mesmo fazer desaparecer a própria noção de duração legal do trabalho. 
Este projecto vira as costas ao progresso social, o qual sempre passou pela “desmercantilização” do trabalho. Para Marx, a extensão do tempo livre, tornada possível pelos progressos da produtividade, é a alavanca que deveria permitir que o trabalho não seja mais uma mercadoria e que a aritmética das necessidades sociais se substitua à do lucro. Esta é a perspectiva que ele esboça no fim do Capital (ver caixa). 
Crises sucessivas 
Para funcionar de maneira relativamente harmoniosa, o capitalismo tem necessidade de uma taxa de lucro suficiente e de mercados. Mas uma condição suplementar, que se refere à forma destes mercados, deve ser satisfeita: eles devem corresponder aos sectores susceptíveis, graças aos ganhos de produtividade induzidos, de tornar compatível um crescimento sustentado com a manutenção da taxa de lucro mantida. É deste ponto de vista que se pode analisar a passagem do capitalismo da sua fase “fordista” à sua fase “neoliberal”, caracterizada por este facto empírico [12] :   a taxa de lucro restabeleceu-se, mas não foi seguida nem pela taxa de acumulação nem pela produtividade. 
O impasse actual do capitalismo numa fase depressiva resulta portanto de um afastamento crescente entre a transformação das necessidades sociais e o modo capitalista de reconhecimento e de satisfação destas necessidades. Mas isso implica que o perfil particular da fase actual mobiliza, sem dúvida pela primeira vez na história, os elementos de uma crise sistémica. 
Esta análise remete ao nível mais fundamental da crítica marxista. Segundo Marx, o capitalismo é um sistema injusto (exploração) e instável (crises). Mas é também, passado um certo ponto, um sistema que surge como irracional, devido mesmo a êxitos que lhe permitiram seu modo de eficácia própria (ver caixa abaixo). 
A possibilidade de um outro cálculo económico 
A abordagem marxista da dinâmica longa do capital poderia afinal de contas ser resumida da seguinte maneira: a crise é certa, mas a catástrofe não o é. A crise é certa, no sentido de que todos os arranjos que o capitalismo inventa, ou que lhe são impostos, não podem suprimir duradouramente o carácter desequilibrado e contraditório do seu funcionamento. Mas estes questionamentos periódicos que enxameiam a sua história não implicam de modo algum que o capitalismo se dirija inexoravelmente para a derrocada final. Em cada uma destas “grandes crises”, a opção está aberta: seja o capitalismo ser revertido, seja ele recuperar-se sob formas que podem ser mais ou menos violentas (guerras, fascismo) e mais ou menos regressivas (viragem neoliberal). 
Irracional: a “base estreita” do capitalismo 
“Por um lado, [o capitalismo] desperta todas as forças da ciência e da natureza, assim como as da cooperação e da circulação social, a fim promover a criação de riqueza independente (relativamente) do tempo de trabalho para ela utilizado. Por outro, ele pretende medir as gigantescas forças sociais assim criadas em conformidade com o padrão do tempo de trabalho e encerrá-las nos limites estreitos, necessários à manutenção, enquanto valor, do valor já produzido. As forças produtivas e as relações sociais – simples faces diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem ao capital unicamente como meios para produzir a partir da sua base estreita. Mas, de facto, são condições materiais, capazes de fazer explodir esta base”. Karl Marx, Manuscritos de 1857-1858 (ou Grundrisse )

Portanto, encontram-se, na obra de Marx, ferramentas úteis para a análise do capitalismo contemporâneo. Entretanto, a verdadeira especificidade da abordagem marxista reside sem dúvida na sua crítica da economia política (é igualmente o subtítulo do Capital), que postula a possibilidade de um outro cálculo económico: a humanidade deveria ter como objectivo maximizar (colectivamente) seu bem-estar ao invés de se remeter à maximização (privada) do lucro. 
Mas verifica-se que o capitalismo é um sistema compacto cujas molas fundamentais são invariantes (para além das suas encarnações concretas). Portanto ele é dificilmente reformável, tanto mais porque tende hoje a recriar as condições de um funcionamento “puro” que se opõe frontalmente à satisfação das necessidades sociais e à gestão dos desafios ambientais. Coloca-se então a questão de uma reconsideração radical deste funcionamento. 
1. John Maynard Keynes, “A Short View of Russia”, Nation and Athenaeum, 10 et 25 octobre 1925 ; traduit dans Essais de persuasion , 1931. 2. Jonathan Sperber, Karl Marx, homme du XIXe siècle , Piranha, 2017. 3. John Bates Clark, The Distribution of Wealth. A Theory of Wages, Interest and Profit , 1899. 4. “Action de reproduire industriellement les valeurs consommées”, d’après le Tableau économique (1758) de François Quesnay. 5. François Quesnay, “Analyse de la formule arithmétique du Tableau économique “, Journal de l’agriculture, du commerce et des finances , juin 1766. 6. Karl Marx, dans le chapitre “Sur l’histoire critique” de l’ Anti-Dühring de Friedrich Engels, qu’il a rédigé pour l’essentiel. 7. James Steuart, An Inquiry into the Principles of Political Economy , 1767. 8. Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi, Nouveaux principes d’économie politique. 9. Joan Robinson, “Kalecki et Keynes”, dans Essays in Honour of Michal Kalecki , 1964. 10. Paul A. Samuelson, “Marxian Economics as Economics”, The American Economic Review , Vol. 57, No 2, Mai 1967. 11. Wassily Leontief, “The Significance of Marxian Economics for Present-Day Economic Theory”, The American Economic Review , Vol. 28, No 1, Papers and Proceedings of the 50th Annual Meeting of the AEA, March 1938. 12. Constatação de ordem empírica, habitualmente não quantificada, mas julgada representativa do funcionamento da economia. 
O original encontra-se em www.alternatives-economiques.fr/outils-comprendre-xxie-siecle/00083731 
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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