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Nascido no Chão da Luta

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Por IELA em 15 de junho de 2005

Nascido no Chão da Luta
Por elaine tavares – jornalista no OLA/UFSC
Esta é a história de um artista brasileiro, mas bem que poderia ser uma metáfora da história latino-americana.
15/06/2005 – É uma manhã calorenta de 1982. O menino, mochila nas costas, percorre lentamente os corredores da Rodoviária. Barulho de ônibus, cheiro de cigarro, gente que chega, gente que parte. Ele segue. Coração a mil. Tem medo, mas não demonstra. De repente, encontra o ônibus que procura. É um coletivo simples, desses que fazem as linhas do interior da Bahia. Feio e mal cuidado, como quase todos os que cruzam o país.
Não é um momento qualquer. Pela primeira vez em toda a sua vida, Irley de Jesus Leal, deficiente físico, conseqüência de uma poliomielite, consegue subir a escada do coletivo, sozinho, sem a ajuda de ninguém. Tem 12 anos. Também é a primeira vez que o garotinho nascido em Caravelas sente que pode ir para muito mais longe do que Salvador.
Hoje, sentado à margem da Lagoa do Peri, em Florianópolis, mostrando uma obra sua que está no catálogo de uma importante galeria mexicana, o artista plástico se emociona ao lembrar aquele distante dia de superação. “Eu nunca me senti tão feliz”. São os trabalhos de Irley que emolduram os acampamentos e assentamentos do MST espalhados pelo Brasil. Onde há gente organizada na luta pela terra, lá estão quadros de sua autoria. Nos pequenos e grandes encontros do Movimento, do Rio Grande do Sul ao Pará, também estão os painéis do artista de 34 anos. O reconhecimento desse trabalho, em defesa da reforma agrária, aconteceu em 1998, quando recebeu, do MST, o Prêmio Euclides da Cunha, junto com Sebastião Salgado e Chico Buarque de Holanda.
A Infância
Quando Irley nasceu, o país estava em festa, apesar da mão de ferro do general Médici. Era junho de 1970. A seleção canarinho, em Guadalajara, chegaria ao tri-campeonato. Nas ruas, o povo extravasava emoção. Mas lá, no interior baiano, na casa de Nozinho e Valmira, havia um certo nervosismo. Poucos acreditavam que o garoto, mirradinho, pudesse vingar. Nem Irmã Ângela, que presenciou o nascimento, levou muita fé. A mãe, Valmira, ficou mal depois do parto e o garoto foi levado para a casa dos avós, num sítio a pouco mais de dois quilômetros. Logo nos primeiros meses pegou quase todas as doenças típicas da infância, passando incólume. Foi então que veio a poliomielite e as pernas se atrofiaram. Só que o garoto fraquinho não foi vencido. Sobreviveu, a despeito das previsões.
O sítio da vó Francisca e do vô Zé Rocha foi o cenário de uma infância feliz, apesar da deficiência. “O vô fez um carrinho de mão e nele me levava para passear, para o rio, para todo lugar. Eu andava a cavalo. Meus tios me carregavam para cima e para baixo, brincavam de bola. Havia sempre muitas crianças e ninguém estranhava que eu fosse diferente. Estas são as minhas melhores lembranças”. Irley viveu no sítio até os sete anos, quando então foi levado para a casa dos pais. Era hora de enfrentar a escola. O pai, sapateiro e comerciante, conseguiu comprar uma prótese para dar ao filho. “Mas foi um período difícil para mim. Tive que me adaptar à nova casa, à escola, aos meus pais e ao fato de que tinha de aprender a andar. Periodicamente precisava ir a Salvador e foi só aos 12 anos que consegui me virar sozinho”.
Os encontros
E foi na escola, nas aulas de educação artística, que Irley se descobriu pintor. Gostava de desenhar as coisas bem como elas são, no que os entendidos de arte chamam de “hiper-realismo”. O avô, mais uma vez, foi o grande companheiro. Com paciência, cortava pedaços de madeira, nos quais Irley ia, com tinta guache, eternizando imagens, orgulhosamente penduradas na parede da casa dos avós. Sua primeira encomenda foi feita para uma empregada da casa. Ela levou uns compensados e pediu que ele fizesse quadros. Fez e passou a sentir fome de saber mais. Naqueles dias, a família morava em Teixeira de Freitas, a 12 horas de Salvador, e por aquelas plagas não havia escolas de arte ou qualquer coisa que pudesse ajudar o artista a crescer. “Não tinha nem papelaria. Era fogo”.
Irley não desistiu da busca até que, aos 15 anos, encontrou uma peruana, Robertina Abade, que estava morando num sítio ali perto e dava aulas de pintura. Não perdeu tempo. Fez o curso e começou a aprender novas técnicas, embora mantivesse a sua obsessão pelo hiper-realismo. Tudo tinha que ser reproduzido à perfeição. E foi um quadro do Roberto Carlos que abriu caminho para a profissão. Irley fez a obra para um trabalho na escola. A professora gostou e pediu para ele reproduzir uma foto. Aquele quadro fez chover encomendas. “Eu gosto de retratar rostos, aquela idéia da musa inspiradora, uma coisa meio Monalisa. Eu sou louco por Leonardo da Vinci”.
Pouco tempo depois, a freira que havia presenciado seu nascimento, Irmã Ângela, de volta à cidade, viu seus desenhos e pediu para fazer uma pintura de uma índia, segurando um menino, que ilustraria uma campanha da luta pela terra indígena. Foi seu primeiro encontro com as temáticas de valorização da vida. O trabalho acabou indo para a Itália. Com essa porta aberta, via Igreja, veio a chance de uma exposição na Faculdade local. E, naquela mostra, a esposa de Ademar Bogo, escritor ligado ao MST, viu o trabalho e comentou com o marido. Este andava querendo divulgar as idéias de alguns nomes do socialismo mundial e precisava de alguém que fizesse os retratos em grandes painéis. Daí nasceu a parceria de Irley com o MST. Durante dois anos a vida foi pintar pessoas como Che, Lenin, Marx, Engels, Ho Chi Min e tantos outros. “Desses caras todos eu só conhecia o Che. Ao lado da loja do meu pai havia outra que vendia quadros e eu sempre via aquele cara lá, o Che, e ficava curioso para conhecer sua história. Meu primo comprou um e me contou a história do comandante revolucionário. Depois, com o trabalho no MST, eu fui me aprofundando ainda mais nele e nos demais”.
Os painéis produzidos por Irley estão em cada um dos Estados da Federação, nos assentamentos do MST, em grandes lonas brancas ou nas paredes. São rostos ou cenas de luta e trabalho, com uma beleza e uma riqueza de detalhes impressionantes. “Eu sou muito exigente com meu trabalho. Tudo que pinto é real. As cenas nascem na imaginação, mas os rostos são reais. Eu fotografo multidões, pessoas, ocupações e, depois, vou desenhando aqueles rostos nas cenas que crio. É como se fosse uma foto montagem”.
Há uma grande ternura na fala desse artista que se fez a facão, praticamente sozinho. “Eu ainda quero ser um grande pintor”, diz, baixando os olhos, no seu jeito tímido, embora cheio de ganas de viver. Ele bem que tentou o vestibular para a Faculdade de Belas Artes, mas não passou. Naqueles dias se sentiu muito triste, incapaz, impotente. “Eu sentia que devia isso aos meus pais. Fiquei no chão. Foi o trabalho com o MST que me devolveu a auto-estima. Eu vi que podia fazer, que sabia fazer, e fui fazendo. Hoje eu aprendo assim, nas oficinas, nos encontros com outros artistas e vou crescendo”. No começo do mês de fevereiro ele esteve num encontro de Arte-educadores em Florianópolis e dali nasceu uma idéia para um grande trabalho. “Vou entrar num ritmo de super-produção, fotografando e pintando. Quero produzir imagens sobre como eu vejo o mundo. Eu, andando de quatro pés, me arrastando, eu ando de muletas, pulando, e as imagens aparecem de um jeito diferente pra mim. Vou retratar isso e pretendo levar a exposição por todo o Brasil e para Londres”.
O Baú e o Pincel
Na bagagem desse homem magrinho, mas forte, está sempre presente a máquina fotográfica com a qual ele retrata a vida e busca os detalhes para sua obsessão do real. Gosta de pintar de manhã, quando a luz é melhor. “A noite distorce as cores”. Ouve Renato Teixeira, Almir Sater e sua música preferida é “Brincar de Viver”, do Guilherme Arantes, que cantarola, absorto, como a dizer a si mesmo que é preciso, todo o dia, reaprender a sonhar.
Seu trabalho preferido é um retrato que fez do comandante guerrilheiro, em que ele está rindo de um jeito moleque, irreverente e, logo abaixo, tem a frase: “Quando o extraordinário se torna cotidiano, isso é a revolução”. Assim é a vida para Irley. O extraordinário vai se fazendo cotidiano, revolucionando sua vida. Foi extraordinário andar, ser pintor no interior da Bahia, aprender com os encontros, crescer assim em cada coisa na vida. “Gandhi dizia que de tanto a gente dizer que consegue algo, mesmo parecendo que a gente não pode, a gente consegue. Assim é comigo”.
Irley não tem dúvidas quanto ao futuro. “A minha revolução ainda está em andamento. Tenho muita coisa para conquistar”. E é essa vontade férrea que aparece nos olhos doces do baiano de Caravelas. Nele ainda vive o garotinho que se arrastava até o baú velho da avó, na sala de visitas do sítio, e que se encantou com um pincel vermelho, deixado ali por uma tia que pintava porcelana. O mesmo menino que assoma quando fala que ainda não tem namorada, mas que logo vai dar espaço para o amor, para viver uma nova revolução.
Texto: Elaine Tavares
Colaboração: Fernando Evangelista
Contato com o Artista Plástico
irley_jesus@yahoo.com.br

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