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Alimentos e descolonização

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Por IELA em 11 de maio de 2022

Alimentos e descolonização

Foto: Arquivo MST

A Rússia e a Ucrânia em conjunto representam 30 por cento das exportações de trigo mundiais. Muitos países africanos, em particular, estão fortemente dependentes deles para os seus abastecimentos alimentares, os quais agora ficam interrompidos por causa da guerra. E esta interrupção continuaria uma que a guerra também está a afetar a área a ser semeada para produzir cereais ali. A Ucrânia sozinha representa 20 por cento das exportações de milho mundiais as quais estão outra vez sob ameaça, pondo em perigo a disponibilidade alimentar em vários países vulneráveis. Além disso, a Rússia é a fonte de fornecimentos de fertilizantes para um certo número de países e a interrupção na sua importação da Rússia terá um novo efeito de escalar os preços alimentares mundiais e reduzir a disponibilidade alimentar.
Em comparação com o princípio do mês de Fevereiro (antes do começo da guerra russo-ucraniana), o preço dos cereais básicos aumentou 17 por cento em 8 de Abril, tornando mais milhões de pessoas vulneráveis à fome; estes números só podem aumentar nos próximos dias. Os países mais vulneráveis estão na Ásia Ocidental e na África, especialmente países como o Iémen, Etiópia, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Nigéria, República Democrática do Congo e Afeganistão. Peritos têm advertido desta possibilidade há algum tempo. Mas apesar de haver muita preocupação sobre as perdas de vidas no atual teatro de guerra, as perdas de vidas muito maiores que o declínio na disponibilidade alimentar ameaça mal atraem a atenção do mundo em geral, especialmente do mundo ocidental.
Contudo, em toda esta discussão há uma questão central que nem mesmo foi levantada:   por que é que alguns países do mundo tornaram-se tão vulneráveis a fomes que qualquer interrupção nos abastecimentos alimentares em qualquer parte imediatamente os ameaça com perdas de vida maciças? Por que, em suma, temos “países vulneráveis à fome”?
A resposta imediata a esta questão seria que se trata de países que foram, eles próprios, afligidos pela guerra. O Afeganistão, Sudão ou o Corno da África tiveram um historial de guerras, que se estendem mesmo até ao presente e a sua vulnerabilidade a fomes aumentou devido as interrupções efetuadas por estes antecedentes. Esta explicação simplesmente não colhe:   guerras neste contexto obviamente devem incluir insurgência interna ou o que é habitualmente chamado de terrorismo. Mas isto levanta duas questões:  primeiro, a própria insurgência não pode ser assumida como sendo um fenómeno vindo do exterior; ela está tão enraizada por dentro e relaciona-se ao fenómeno da pobreza e da não-disponibilidade alimentar que não pode proporcionar uma explicação independente para esta última. E segundo, guerras no sentido mais abrangente, incorporando também insurgência, caracterizam virtualmente todo o terceiro mundo. Por que então há apenas alguns países considerados vulneráveis e não outros?
SOBERANIA ALIMENTAR
A resposta real à pergunta de porque alguns países são considerados vulneráveis e outros não jaz no facto de que estes países sacrificaram a sua “soberania alimentar” às exigências do imperialismo. Após a descolonização, a maior parte dos países do terceiro mundo, os quais haviam testemunhado declínios agudos na sua produção per capita de cereais e na disponibilidade durante o período colonial (um fenómeno subjacente às fomes recorrentes na era colonial) quiseram aumentar a sua produção interna de cereais. Era considerado uma contrapartida essencial da descolonização, e de modo correto, intensificar a produção interna e a disponibilidade de cereais. Isto contudo foi resistido pelo imperialismo, o qual na base de um argumento inteiramente espúrio baseado na “vantagem comparativa” não só “aconselhou” países do terceiro mundo a abandonarem a busca da auto-suficiência alimentar como incorporaram esta exigência dentro da agenda da OMC (que o uso da terra deveria ser determinado pelos sinais do mercado ao invés de qualquer objetivo de alcançar auto-suficiência alimentar).
Agora os países capitalistas avançados têm um excedente permanente de certos grãos, ao passo que simplesmente não podem cultivar (ou cultivar em quantidades adequadas, ou o ano inteiro) todo um conjunto de produtos tropicais ou sub-tropicais, tais como vegetais frescos, frutas, fibras, plantações de cana de açúcar, oleaginosas, bebidas e especiarias. Alterar o padrão de uso da terra no terceiro mundo, o qual é aproximadamente coincidente com as partes tropicais e sub-tropicais do mundo, é portanto duplamente vantajoso para o países capitalistas avançados: primeiro, forçar o terceiro mundo a importar cereais permite à metrópole livrar-se dos seus excedentes alimentares; e segundo, as terras do terceiro mundo dedicadas anteriormente à produção de cereais alimentares são agora libertadas para a produção de outras culturas, nomeadamente aquelas que são exigidas pela metrópole (as quais agora também incluiriam culturas que são destinadas à produção de biocombustíveis).
A África acedeu a esta exigência imperialista mais rapidamente do que qualquer outra parte do terceiro mundo. E, não surpreendentemente, a lista de “países vulneráveis” está repleta de exemplos africanos. Vamos tomar apenas dois exemplos dentre aqueles que figuram na lista acima mencionada: a Nigéria que é de longe o maior país da África em termos populacionais (com mais de 200 milhões de pessoas) e o Quénia, o qual não há muito tempo atrás estava a ser louvado pela OCDE como uma “história de êxito” da “liberalização”.
De acordo com as estatísticas providenciadas pela Organização Alimentar Mundial (FAO), o índice da produção de cereal per capita bruto para a Nigéria (2014-16 = 100) era 129,37 em 1990; caiu para 101,09 em 2019, uma queda de mais de 20 por cento no decorrer de apenas três décadas. No Quénia, o índice da produção de cereal per capita bruto (2014-16 = 100) mostrou uma queda semelhante próxima dos 20 por cento no mesmo período, de 132,82 em 1990 para 107,97 em 2019. Se remontarmos a 1980 no caso do Quénia, então a queda é ainda mais precipitada, de 155,96 para 107,97, que é mais do que 30 por cento no decorrer de apenas quatro décadas, resultando em dependência substancial de importações, o que torna países vulneráveis às fomes.
A FALÁCIA DAS “VANTAGENS COMPARATIVAS”
Isto também mostra claramente que toda esta conversa da “vantagens comparativas” é completamente falsa. O conceito de “vantagem comparativa” é conceptualmente enviesado:   quando um dos países simplesmente não pode produzir uma das commodities (como era o caso no comércio colonial), a vantagem comparativa não pode ser definida de modo algum. Dito de modo diferente, o comércio de acordo com a “vantagem comparativa”, isto é, de acordo com a noção de que um país deveria exportar o que produz relativamente barato e importar o que não o faz, presume que todos os países produzem todas as commodities antes do comércio. Além disso, quando “vantagem comparativa” decorre de “dotações relativas de fatores” que são eles próprios alteráveis, através da acumulação de capital por exemplo, então o comércio de acordo com a “vantagem comparativa” impede tal alteração e, portanto, congela o padrão de produção em detrimento do país “pobre em capital” e com abundante mão-de-obra. Mas mesmo que ignoremos estas objeções básicas à “vantagem comparativa” e atuemos com base nas suposições promovidas pelos advogados desta teoria, mesmo assim seguir a “vantagem comparativa”, e tornar-se dependentes da importação de uma mercadoria crucial como os cereais alimentares, é suicida para um país. Toda uma série de acontecimentos imprevistos no mundo, sobre os quais um país não tem absolutamente nenhum controlo, pode expor o seu povo à fome.
Esta simples verdade era entendida pela lutas anti-coloniais de toda a parte. Elas tomavam como fato consumado, muito corretamente, que independência significava ser auto-suficiente em termos alimentares, pelo menos a um certo nível mínimo de consumo, não necessariamente dentro de cada país mas pelo menos entre um grupo de países do terceiro mundo constituindo uma “comunidade alimentar” e aspirando a isso. A África contudo foi coagida pelo imperialismo a abandonar este objetivo e infelizmente hoje está a pagar o preço por isto com a ameaça da fome a pairar sobre ela.
A Índia, não obstante o seu primitivo plano pós-colonial de elevar a produção alimentar interna (da qual a campanha “Grow More Food” foi uma expressão), foi apanhada na armadilha da compra de alimentos americanos ao abrigo do esquema PL-480. Só depois das secas agudas de meados dos anos sessenta é que a importância de ser “soberano alimentar” despertou nos nossos governos dominantes e a Revolução Verde, não importa as suas outras lacunas, foi lançada para alcançar este objetivo. Os esforços imperialistas para desfazer a “soberania alimentar” da Índia têm sido implacáveis desde então; e o imperialismo encontrou um tolo no governo Modi, o qual aprovou legislação agrária para retirar o regime de preços mínimos de apoio que constitui o esteio por detrás da “soberania alimentar” indiana. A heroica agitação kisan salvou a situação, e o governo foi forçado a retirar as três leis agrárias. A “soberania alimentar” por enquanto continua; mas o povo deve permanecer tenazmente vigilante para que possa ser preservada.
Publicado e traduzido em resistir.info
 

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