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Ambientalismo ingénuo ou ecologia real?

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Por IELA em 02 de julho de 2021

Ambientalismo ingénuo ou ecologia real?

Guillaume Suing

– O caminho soberano para a sustentabilidadepor Guillaume Suingentrevistado por Rafaela Molina Vargas [*]
O semanário boliviano La Epoca , apoiante do MAS , publicou uma entrevista que reflete a necessidade de os atuais movimentos progressistas lutarem contra os partidos ambientalistas pró-imperialistas e ao mesmo tempo comprometerem-se concretamente na via cubana da agroecologia e na difícil luta contra as transnacionais da agricultura.
Guillaume Suing é professor de biologia, membro do Círculo Henri Barbusse de Cultura Operária e Popular e movimento Comunista Rassemblement Communiste (RC). Autor de Evolution: la preuve par Marx. Dépasser la légende noire de Lyssenko (2016); L’Écologie Réelle. Une histoire soviétique et cubaine (2018) e L’origine de la vie, une siècle après Oparine (2020), edições Delga. Também é autor de numerosos artigos sobre as políticas agrárias e energéticas anti-imperialistas e os limites do “ecologismo” ocidental, no blog Germinal Le Journal .
La Epoca (LA): O atual “senso comum” tende a opor o progresso à protecção da natureza. No entanto, esta dicotomia parece mascarar a real contradição Capital / Natureza. Como se explica esta contradição ligada às contradições capitalistas no sistema globalizado actual?
Guillaume Suing (GS): De facto, há uma contradição entre a história do homem e a da biosfera. De certa forma, o homem tornou-se o “jardineiro” do mundo, o que sem dúvida torna difícil encontrar uma harmonia relativa, um reequilíbrio entre a satisfação das necessidades humanas e a indispensável regeneração dos recursos da Terra.
Porém, já que estamos falando de “contradições” e “dialéctica”, devemos olhar mais de perto e entender como a famosa contradição que aparentemente nos opõe a uma “natureza” idealizada e supostamente “em equilíbrio”, esconde muitas questões ideológicas. Na realidade, deparamo-nos com duas contradições muito distintas, cada uma com sua temporalidade.
A primeira é de facto uma contradição profunda da história humana, a do Homo sapiens que explora os recursos naturais procurando, tanto quanto possível, não “determinar” a “natureza”, mas permitir uma reconstituição racional dos recursos gastos. Essa contradição data globalmente do Neolítico (início das grandes domesticações), e não do capitalismo recente, é consubstancial à nossa espécie. É, para falar em termos marxistas, uma contradição de tipo não antagónico. Ou seja, uma contradição que pode ser resolvida sem destruir um dos pólos.
Alguns querem negar a necessidade de repor os recursos ambientais considerados inesgotáveis (destruição do pólo “natureza”), outros querem regressar à Idade da Pedra e ao malthusianismo para limitar a satisfação das necessidades humanas em nome de uma “natureza” antropomorfizada ou mesmo divinizada (destruição do pólo “espécie humana”). Estas duas posições são igualmente reaccionárias, no verdadeiro sentido da palavra, e até reflectem uma tendência potencialmente fascista (fuga em frente “futurista” e niilista ou malthusianismo nostálgico por um passado feudal idealizado).
A segunda contradição é, por outro lado, uma contradição completamente antagónica. É claro que a contradição “Capital / Natureza”, aspecto particular de uma contradição maior, Capital / Trabalho (o trabalho humano incluindo, é claro, o trabalho de gestão do meio ambiente a longo prazo), só pode resolver-se destruindo um dos pólos. Não é crível que o pólo “trabalho Humano” “se suicide” a longo prazo. Esta é a razão pela qual um verdadeiro “ecologismo” só pode ser anti-capitalista, levando em consideração as possíveis derivas ideológicas de um enfoque unicamente “natural”.
Este último, lembremos, é um facto: o imperialismo usa, entre outras coisas, a ideologia “verde” para lutar contra as múltiplas experiências revolucionárias e de independência nacional dos países do sul. É, portanto, o pólo do capital que deve ser destruído para superar esta contradição. Por outras palavras, não se trata de se ficar pelo romantismo ou, pelo contrário, pela “ciência pura” para alcançar esta superação, mas de fazer política… e isto é muito mais difícil!
LA: Na mesma linha, muitos ecologistas detractores da esquerda latino-americana, como Eduardo Gudynas, opõem-se ao suposto extrativismo (ou ao neo-extrativismo) dos governos de Evo Morales, Rafael Correa, etc. Como entender essa crítica ao extrativismo?
GS: A maioria dos povos que pretendem libertar-se do domínio imperialista dos Estados Unidos ou da Europa herdou um modelo económico colonial, centrado na monocultura ou na especialização de matérias-primas para exportação. É assim. Se a esquerda antiliberal busca nesses países uma forma de se libertar do jugo imperialista preservando o meio ambiente, deve armar-se com uma linha política adequada: na época da revolução russa, a jovem União Soviética havia herdado de um modelo feudal a partir do qual seria muito complexo e extremamente difícil de alcançar uma colectivização da terra e uma nacionalização imediata dos grandes meios de produção.
A “Nova Política Económica” (NEP) exigida por Lenine no início da década de 1920, consistia em permitir uma forma controlada de capitalismo agrário, durante alguns anos, para desenvolver as forças produtivas necessárias a uma transição para o socialismo real (que pelo contrário, não era necessário nos países industrializados e ricos do Ocidente, por exemplo). Quer dizer, uma política verdadeiramente revolucionária, não retórica, mas de factos, é necessariamente sinuosa, embora mantendo claramente o seu rumo.
O facto de Evo Morales, por exemplo, ter sabido preservar a agroecologia dos altos planaltos, ao abrigo do agronegócio da agricultura industrializada, ao mesmo tempo que permitiu a curto prazo a sua detenção noutras regiões, foi uma forma de resistir (proteger a riqueza nacional em termos de biodiversidade e agroecologia), ao mesmo tempo que evitava uma declaração de guerra imediata a um inimigo ainda muito poderoso.
O mesmo ocorre com a extracção de lítio: para desenvolver uma agroecologia sustentável, base da soberania alimentar e uma política energética independente e igualmente sustentável, são necessários meios, muitas vezes não muito “visíveis”, mas muito reais.
Em particular, a investigação em agrobiologia é necessária para superar o impasse histórico da “agroquímica” e da agricultura intensiva inspirada por ela e, portanto, universidades e centros de pesquisa caros. É necessário também que os trabalhadores rurais tenham um nível de formação suficiente para aplicar, como “agrónomos do próprio solo”, práticas agroecológicas mais complexas do ponto de vista científico do que as da monocultura intensiva do final do século XX. Portanto, é necessário um sistema educacional poderoso e democrático.
Tudo isso exige, tal como o desenvolvimento de complexas técnicas de extracção, energias renováveis locais, gastos públicos consideráveis, que o sector privado jamais aceitará pagar, pois se trata de investimentos a longo prazo. Isso não pode ser alcançado da noite para o dia e é obviamente a acumulação de forças produtivas que deve preceder (e acompanhar) a realização de uma reforma agrária sustentável e agroecológica de longo prazo, e não o contrário.
Se a extracção do lítio beneficia exclusivamente os predadores imperialistas, esta é uma política reaccionária que deve ser combatida, é evidente. Mas se a extracção do lítio permite, no longo prazo, financiar outro modelo energético e agrícola para o país, o que se poderia chamar de “NEP ecológica”, devemos apoia-la, mesmo que ecologistas “ingénuos” se coloquem do outro lado da barricada, alinhando com todos aqueles que não aceitam que o povo seja sustentavelmente soberano.
Nesse sentido, é claro que a teoria ecológica malthusiana do “decrescimento” é uma forma, útil ao imperialismo, de sabotagem, a qualquer política agroecológica soberana nos países semicolonizados do Sul.
LA: No teu livro “A Ecologia Real”, afirmas que as lutas pela conservação da natureza surgem e prolongam-se nas lutas anti-capitalistas. Em que sentido, Cuba e antes a União Soviética são exemplos históricos disto?
GS: Temos os factos históricos que a propaganda procura ocultar. O primeiro desses factos é que Cuba socialista é agora líder no desenvolvimento da agroecologia. A ONU indicou claramente que é o único país que atingiu a “fase de desenvolvimento sustentável”. Não foi sem esforço, evidentemente. Mas todos os movimentos ambientalistas ocidentais procuram escondê-lo, para continuar a incriminar os “extrativistas” da Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América – Tratado de Comercio de los Pueblos ( ALBA-TCP ).
A realidade é difícil de reconstruir, porque muitas mentiras, calúnias e confusões deliberadas se espalharam sobre Cuba. É claro que a sua conversão à agroecologia data do período especial dos anos 1990. Sem a possibilidade técnica de continuar com a agricultura intensiva que vinha sendo efectivamente aplicada nos seus solos durante décadas de bloqueio, Cuba conseguiu por meio de uma série de políticas proactivas, pôr em prática um modelo que noutros países era apenas teórico. Isso deu-se pelas possibilidades oferecidas pelo próprio sistema socialista: o Estado, que é o dono da terra, pode decretar, sem qualquer tipo de coação por parte dos latifundiários vendidos ao imperialismo, a reorganização dos campos em pequenas unidades cedidas em usufruto livre (sem pagamento de renda) para colectivos de trabalhadores.
Além disso, pode proibir legalmente o uso de agrotóxicos em todo o território nacional (algo impensável num país capitalista). Da mesma forma, o Estado tem conseguido financiar um sistema educacional de alto nível e desenvolver a investigação em agrobiologia. Por fim, graças ao facto de o Estado estar em contacto directo com os sindicatos camponeses (a ANAP, que faz parte do movimento camponês internacional Via Campesina), tem conseguido mobilizar um grande número de camponeses, que são os actores desta transição agrícola, através de um movimento muito eficaz denominado “Campesino a Campesino” (transmissão de conhecimentos tradicionais entre trabalhadores rurais).
Trata-se de um verdadeiro êxito que permitiu a Cuba produzir mais, e de forma mais diversificada do que antes dos anos 1990, para satisfazer grande parte das necessidades alimentares da população. A cooperação de Cuba com a ALBA-TCP e com outros países como a China, não pôs em causa este modelo, que não é transitório, como podem pensar os críticos anti-castristas. Pelo contrário, ao lado das grandes missões internacionais de médicos cubanos, agora também são enviados agrónomos cubanos em missões para ajudar os camponeses de outros países interessados no desenvolvimento deste modelo agroecológico.
O modelo agrícola de tipo soviético vigente na ilha antes de 1990 foi introduzido por uma URSS pós-Khrushchev, cuja política agrária havia sido modelada, do meu ponto de vista, com um claríssimo “atraso” pela dos Estados Unidos e da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, para a URSS não foi uma política inerente ao sistema socialista, mas pelo contrário uma flexibilização relativamente ao cerco capitalista, que nesta perspectiva, marcou paradoxalmente o início do seu enfraquecimento e da sua dependência das exportações.
A revolução de 1959 em Cuba, embora se demarcasse até certo ponto do “irmão mais velho” soviético ao preservar as tradições agrícolas locais e uma certa protecção voluntarista do seu meio ambiente, não escapou à influência de um modelo agrícola que, na realidade, não era especificamente socialista.
Pelo contrário, a URSS havia desenvolvido dos anos 1920 aos 1950 um modelo baseado numa ciência do solo radicalmente diferente de sua contraparte ocidental altamente reducionista. Os cientistas russos do solo, como Dokuchaev, desenvolveram uma teoria dinâmica da fertilidade do solo, da aclimatação das plantas, da policultura em grande escala e sistemas agroflorestais, que culminou no “grande plano para a transformação da natureza” de 1948.
Este “grande plano” é, em muitos aspectos, uma conquista histórica da agroecologia (obviamente não era chamada assim na época), no sentido de que se tratava de desenvolver a “vida do solo” para que assim se desenvolvesse a vida das plantas cultivadas, ao contrário da doutrina ocidental dos agroquímicos, que procuram substituir-se às propriedades dos solos cultivados. De certa forma, a resiliência e a produtividade daquele modelo, que procurava fertilizar novas áreas não férteis ao invés de saturar quimicamente solos esgotados, colocou a URSS na vanguarda do pensamento sobre a agroecologia extensiva.
Não era uma teoria romântica sobre a beleza da natureza que sustentava tal política, mas sim a consciência de que o meio ambiente, a biodiversidade local, a qualidade dos solos cultivados, constituíam uma parte crucial e fundamental da riqueza nacional e a condição vital, a longo prazo, para a soberania e a auto-suficiência alimentar. A mutação khrushcheviana, foi uma fuga em frente aventureira visando apenas o curto prazo, visivelmente fatal.
De certa forma, o facto de encontrarmos hoje na vanguarda da experimentação agroecológica países como Cuba, a Kerala comunista ou o Vietname (actualmente perseguido pela OMS a pedido dos EUA por terem proibido os produtos da Monsanto nos seus campos), é muito significativo para entender o entrelaçamento entre as contradições Capital / Trabalho e Capital / Natureza.
Com esta análise, Guillaume Suing mostra que o caminho para a sustentabilidade ambiental é indissociável da soberania e das lutas anti-capitalistas, anti-imperialistas e anticoloniais. Da mesma forma, destaca que é fundamental considerar os exemplos latino-americanos, como os de Cuba, e os horizontes que traçam para os nossos povos. Segundo as palavras atribuídas a Chico Mendes: “Ecologia sem luta social é só jardinagem”.O livro L’écologie à la lumiére du marxisme leninisme, de Guillaume Suing, pode ser descarregado aqui (2666 kB).
[*] Rafaela Molina Vargas:   Bióloga, Mestre pela Universidade da Sorbonne, ecosocialista, feminista, membro do Comando Madre Tierra de Bolivia.
Traduzido por Resistir.info

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