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Incas no litoral de SC? “Um turismo enganoso”

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Por IELA em 11 de maio de 2022

Incas no litoral de SC? “Um turismo enganoso”

Fábio Krawulski Nunes foi conferir a Escadaria do Monte Crista após ler a notícia de que o historiador Gleison Vieira encontrou provas de que foi calçada no tempo do império brasileiro

Dois estudiosos do Caminho do Peabiru em S.Catarina, com vários livros e filmes realizados, estão apontando graves erros em um projeto turístico anunciado, há alguns meses, por um grupo de políticos e empresários do nordeste do Estado. Isso porque “foram apresentadas informações que podem levar o público turístico, incluindo crianças e jovens escolares, a terem conhecimentos enganados sobre os atrativos destacados”, dizem os dois.
A preocupação é da jornalista Rosana Bond, de Florianópolis, autora de 5 livros sobre o Peabiru é tida como uma das maiores especialistas brasileiras no tema, e do pesquisador Fábio Krawulski Nunes, de Jaraguá do Sul, grande compilador de historiografia/fontes primárias e dados arqueológicos peabiruanos catarinenses.
Unindo dois oceanos
O milenar Peabiru foi uma rede indígena de caminhos, com cerca de 4 mil km, unindo o oceano Atlântico ao Pacífico, ou vice-versa. Saía (ou chegava) do litoral de SC, PR e SP. Foi tido pelo respeitado professor da UFPR Reinhard Maack, em 1959, como a mais importante via transcontinental (ou interoceânica) da América do Sul pré-colombiana. Passava pelo Brasil, Paraguai, Bolívia, Peru, Argentina e Chile.
Escadaria não é peabiruana nem inca
O principal engano do projeto, que “contamina” todo o resto, dizem Bond e Nunes, é apresentar a chamada Escadaria (de pedras) do Monte Crista/Caminho Colonial Três Barras, no município de Garuva, como trecho de entrada do Peabiru no continente. “Isso é um erro grave”, dizem os dois. E adicionam: o Caminho não entrava por ali e sim comprovadamente pelo rio Itapocu, mais ao sul, no litoral de Barra Velha, conforme a historiografia.
“Sendo pelo Itapocu, portanto é enganoso também apresentar a rota peabiruana indo por Joinville (Baía da Babitonga) e alcançando os Campos do Quiriri”, afirmam Bond e Nunes.
Ambos negam que existam obras incas em Garuva ou Joinville, como vem divulgando o grupo turístico. Os dois se referem a declarações, dadas por membros do projeto à mídia, em setembro e outubro de 2021 (entre outros jornal NDMais, Correio Francisquense, site da Prefeitura de Garuva/Turismo) tais como: “Parte do percurso tem nitidamente a engenharia dos incas”; “Acredita-se que (a trilha catarinense) faça parte do Qhapaq Ñan (rede incaica de estradas) “.
Existem provas do calçamento por brasileiros
“Os lugares envolvidos no projeto turístico de Garuva e Joinville são belíssimos, e por si só valem a pena ser visitados. Portanto, não é preciso criar um turismo enganoso para atrair o público”, lamentam os estudiosos.
Eles informam que existem várias provas documentais de que os trabalhos no Monte Crista/Três Barras não foram feitos por incas e sim por equipes nacionais (tempos do Brasil colonial e imperial). Isso desde a abertura da primeira picada ali, no século XVII, quando o império incaico já fora destruído pela Espanha há mais de 100 anos.
Um informe de 1845 do Inst.Histórico e Geográfico Brasileiro, a respeito desta picada, acaba com toda dúvida: “A subida da serra geral de S.Francisco para os campos de Curitiba nunca teve estrada (…) abriram uma picada pela era do ano 1600”. Nesta época “o império inca nem existia mais”, observa Bond.
A colocação de pedras na Escadaria aconteceu após 1852, quando o presidente da Província de SC João José Coutinho pediu verba ao governo central para fazer a obra, conforme documento achado no Arquivo Nacional/RJ pelo historiador Gleison Vieira (“Porto Barrancos – Berço de Garuva”, G.Vieira, Edit. Letradágua, 2007).  
Sobre a verba, em uma prestação de contas Coutinho menciona duas quantias: 7:745$047 réis e 2:000$000 réis.

Numa fala à Assembleia legislativa Provincial de SC em 1857 o presidente da Província João José Coutinho aborda as obras de calçamento da Estrada Três Barras(Monte Crista)

Engenharia interessante…do militar Barreto
Mas antes desta construção maior, houve melhoramentos parciais com pedras como o de 1848, comandado pelo militar João Francisco Barreto, de engenharia muito interessante por ter envolvido uma calçada em zigue zague num trecho de subida e implantação de 30 esgotamentos (com pedras) transversais para água (artigo “A Estrada Três Barras e a Integração do Litoral Norte Catarinense com o Planalto de Curitiba”,de Alcides Goularti Filho, Revista Territórios e Fronteiras, Univ. Federal MT, 2019).
Carta ao Rei cita o Itapocu
Segundo Fábio, até que se prove o contrário, com alguma fonte documental primária fidedigna, “tudo isso (propagado pelo grupo turístico) não passa de meros achismos e especulações sobre um outro velho caminho pelo M.Crista/Quiriri”. Diz ele que existem cerca de 30 fontes quinhentistas e seiscentistas citando claramente que a entrada no Peabiru se fazia pelo rio Itapocu.
Entre estas fontes estão a Carta de Pedro Dorantes ao Rei, escrita em Assunção em 1543 (que relata em pormenores como foi a entrada dos 250 homens da expedição peabiruana de Cabeza de Vaca no Itapocu a partir de 2 de novembro de 1541; nesta mesma Carta o próprio Dorantes confirma que Aleixo Garcia, o náufrago de Meiembipe/Florianópolis, descobridor do império inca, havia entrado também pelo Itapocu alguns anos antes).
Outra importante fonte primária é a obra de Ruy Díaz de Guzmán de 1612 (conhecida também como La Argentina Manuscrita), onde se descreve a viagem de Cabeza de Vaca e a do grupo de Mencía Calderón de Sanabria, em 1555, esta saída de S.Francisco e entrando em canoas pelo  Itapocu em direção ao Paraguai.
Passava por S. Bento do Sul (não pelo Quiriri)
Documentos históricos dos anos 1500 indicam que o Peabiru passava por este municipio, e não pelos Campos do Quiriri.
O historiador Amílcar D.de Mello, em sua preciosa coleção de papéis originais (*) informa: “Quem hoje viaja de automóvel (…) entre as cidades catarinenses de Corupá e S.B. do Sul percorre o mesmo Caminho” (o da expedição peabiruana do governador espanhol do R.da Prata e Paraguai, Cabeza de Vaca, em 1541/42).
Amílcar se baseou em 2 relatos do governador: um de 1545 (“Relación General…”) e outro de 1555 (hoje livro “Naufrágios e Comentários”)
Existe também um mapa feito pelo Barão do R. Branco, em 1894, sobre o itinerário de Vaca em SC e PR, que aponta a passagem da trilha milenar pela hoje região de Corupá/S.Bento/ R.Negrinho.
Há ainda uma evidência arqueológica fundamental (confirmando informe de Vaca sobre as primeiras aldeias indígenas, quando ele chegou ao altiplano de SC). Diz Fábio K. Nunes: “Sabemos que no atual S.Bento foram registrados, num estudo editado em 2009, alguns sítios arqueológicos (cerâmico/ lítico) da Tradição Guarani (localidades Sertãozinho/Estrada dos Bugres/Ponte dos Vieira).”
(*) Coleção Expedições – SC na Era dos Descobrimentos Geograficos, Vol. 1. Fpolis, Edit. Expressão, 2005.
IPHAN nega presença inca
Em 2007 foi solicitado ao IPHAN (Inst.do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) um reconhecimento do Caminho do Peabiru na Ponte dos Vieira como sendo associado aos incas. Porém o pedido (do Ministério Público)foi rejeitado nos pareceres técnicos por não existir, até o momento, “nenhuma prova material arqueológica da presença dos incas no território brasileiro”, afirmou o IPHAN. “Muito menos associada com o Caminho do Peabiru”, observou Fábio.  O pedido foi arquivado.
 

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