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Juiz Valois, uma voz na escuridão

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Por IELA em 27 de agosto de 2018

Juiz Valois, uma voz na escuridão

Juis Luís Carlos Valois

“Cumprir a Constituição atualmente é um ato de coragem” – Juiz Luís Carlos Valois
O juiz Luis Carlos Valois, atua na Vara de Execuções penais do Tribunal de Justiça do Amazonas, é mestre e doutor em criminologia e direito penal pela USP, membro da Associação dos Juízes para Democracia (AJD), e porta voz da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), Associação de Agentes da Lei contra a Proibição. Na sua tese de doutorado “O direito penal da guerra às drogas”, publicada pela editora D’lplácido,  mostra os males que o superencarceramento, resultado da guerra às drogas, causam para toda a sociedade. Em suas palavras: “A prisão tem sido a droga que mais mata, a que mais produz violência e a que mais causa insanidade para aqueles com elas relacionados”. Inclusive, no ano passado o seu livro ficou entre os finalistas dos indicados para o 59ª prêmio Jabuti.
No início do ano passado foi convocado pelo Secretário de Segurança Pública do Amazonas, porque os presos exigiam a sua presença para negociar o fim da rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no massacre que acabou com 56 pessoas mortas. Segundo Luiz Carlos Valois, a cena que ele viu era dantesca, “parecia uma contêiner de braços e pernas”. E logo após participar do processo de negociação que pôs fim a rebelião, Luis Carlos Valois, passou a ser ameaçado por membros do PCC, por causa de uma matéria publicada no jornal O Estadão, que trazia informações sobre a operação La Muralla 2, em que o nome do juiz foi citado num diálogo pelo membro da facção FDN (Família Do Norte). No entanto, não existia nenhuma gravação do próprio Luis Carlos Valois.  Em sua defesa,  Valois diz que a Polícia Federal o envolveu na investigação por causa da sua atuação como juiz garantista e questionador da legalidade de algumas prisões.
Em uma entrevista concedida por e – mail, conversamos com Luís Carlos Valois sobre a perseguição que os juízes garantistas sofrem no Brasil, a partir do caso mais recente envolvendo o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, que recebeu uma censura administrativa do TJSP, porque considerou uma prisão ilegal, além dos temas como política de drogas, operação Lava Jato e encarceramento.
Por Henrique Oliveira – Revista Rever
1 – Você faz parte da LEAP, que é uma organização que une os agentes da lei que são contrários a política de guerra às drogas, e essa crítica também é feita por você na sua tese de doutorado “O direito penal da guerra às drogas”. Enquanto juiz, o que te fez perceber que a atual política de proibição das drogas estava equivocada?
A história do meu envolvimento com a militância em favor da descriminalização, e consequente regulamentação (sempre bom ressaltar que a descriminalização é a regulamentação da drogas e que a criminalização é o abandono e a entrega do mercado ao mercado ilícito), das drogas está ligada à minha trajetória acadêmica. No mestrado escrevi sobre sistema penitenciário, sobre prisão, mas há uma dificuldade enorme de se dialogar com a sociedade sobre os males das prisões, as pessoas não conseguem pensar o sistema punitivo sem prisão, e como a proibição das drogas é o principal fator a agravar o sistema prisional, resolvi no doutorado, escrever sobre drogas. O assunto descriminalização das drogas é de diálogo mais fácil. Não importa se a pessoa é de direita ou de esquerda, sendo racional, pensando o melhor para a sociedade sem preconceitos e com bom senso, chega-se logo à conclusão de que a política proibicionista é um equívoco, e assim o diálogo é possível. Não há muita dificuldade em perceber os equívocos da proibição, basta a pessoa estudar sobre a questão. O grande problema é que as pessoas não querem ler, não querem estudar, e se posicionam com base em conceitos morais dos quais não sabem sequer a origem. Eu mesmo só fui entender algo sobre a política de drogas depois de estudar sobre o assunto e, o mais grave, é que eu já era juiz de direito há vinte anos, encarcerando e mantendo pessoas encarceradas em razão do envolvimento com essas substâncias, sem saber nada sobre elas.
2 – Ainda no tema da guerra às drogas, existe um projeto de lei 7024/2017, do deputado federal Wadih Damous (PT –RJ), que visa anular sentenças condenatórias baseadas apenas  no depoimento de policiais. E segundo uma pesquisa realizada em 2016, esse projeto evitaria 74% das condenações por tráfico de drogas no Brasil. Na sua avaliação, quais os motivos que levam os juízes a acreditarem na versão do policial?
Na minha opinião, na medida em que o judiciário vai perdendo legitimidade como poder ele vai se aproximando da atividade puramente repressiva. As inúmeras situações tornadas litigiosas, a criminalização de diversas condutas, a ausência de educação que faz a sociedade perder a capacidade de resolver seus litígios extrajudicialmente, são circunstâncias que, somadas à estrutura medieval do judiciário (ainda chamamos tribunais de cortes e temos palácios), com seus privilégios e altos salários, fazem com que o judiciário não dê conta de toda a demanda que lhe é atribuída, mas sem que este, o judiciário, possa reconhecer a sua impossibilidade, porque dificilmente abdicaria do poder que tem. Essa é a causa da perda de legitimidade, da perda de crédito que o judiciário vem tendo junto à população. E para amenizar essa perda de legitimidade, o caminho político, e isso se dá em todas as esferas do poder, sempre foi o populismo penal. E diante dessa circunstância, o judiciário se confunde com a polícia. O discurso policial, que já é equivocado, porque a polícia não deveria ser isso que ela é hoje em dia, se torna o mesmo do discurso judiciário. Juiz e polícia se tornam um só. O juiz pensa que trabalha para a segurança pública e quer ajudar a polícia. O juiz não acredita na versão do policial, ele avaliza a versão do policial, ele chancela a versão do policial. O juiz criminal, nos processos de droga principalmente, só tem o policial como testemunha, fazendo com que os dois sejam parceiros na condenação.
3 – O juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, foi punido com censura administrativa, após ser denunciado por 23 promotores, porque ele considerou ilegal uma prisão realizada por tráfico de drogas. A também juíza Kenarik Boujikian, foi censurada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, porque soltou 11 pessoas que estavam presas além do tempo determinado pelas prisões provisórias que cumpriam. E até mesmo você foi acusado na imprensa de participar de um suposto esquema no Amazonas para soltar presos. Como é essa tensão existente entre juízes e promotores para que se mantenham as pessoas presas a qualquer custo?
Acho que independe se é do Ministério Público ou do Judiciário. Também há promotores de justiça e procuradores federais extremamente preocupados com as garantias constitucionais e com o Estado de Direito. E muitas vezes esses membros do Ministério Público encontram em juízes o obstáculo para fazerem valer garantias constitucionais. Hoje em dia precisa ter coragem para fazer valer a Constituição Federal. O discurso de que com mais prisões se está resolvendo o problema da segurança pública é muito fácil, muito mais fácil e barato do que construir escolas, pagar melhor professores, implementar uma saúde pública de qualidade e dar saneamento básico para a população, enfim, prender é muito mais fácil. A imprensa entra nesse jogo porque a imprensa é diretamente ligada ao poder financeiro que se favorece com esse discurso, e acaba vendendo mais jornal, mais notícias com prisão do que com a construção de uma escola. O judiciário deveria atuar ao largo dessas questões, mas, como dito, na busca por legitimidade, por apoio popular em seu próprio benefício, acaba seguindo o caminho mais fácil: prende e pronto. Não importa se as prisões são ilegais, se há uma lei, a Lei de Execução Penal, que não é cumprida. A sociedade, enganada por esse discurso mais fácil, é que sai perdendo, perde o órgão que deveria ser o garantidor de seus direitos e perde em progresso, porque o encarceramento é o foco, é o indício de mais criminalidade no futuro.
4 – Muito tem se falado sobre o impacto da operação Lava Jato na fragilização das garantidas individuais, no direito de defesa, no uso indiscriminado das conduções coercitivas e das delações premiadas. E de um lado nós temos pessoas que dizem que a Lava Jato está implantando um regime de exceção, do outro, pessoas que falam que na verdade, a Lava Jato utiliza os procedimentos já consolidados pelo judiciário contra as pessoas que não são do mesmo grupo social que a Lava Jato investiga. Na sua avaliação, o que a Lava Jato vai deixando de herança para o poder judiciário?
Penso que a Lava Jato e todos os procedimentos que você cita, assim como o próprio comportamento do judiciário frente a muitas garantias que vão se relativizando, é resultado tanto da necessidade de ganho de legitimidade, como já falei, mas resultado também da guerra às drogas, na qual o judiciário se alistou como soldado já há algum tempo. Foi a guerra às drogas que primeiro permitiu a invasão de domicílio, principalmente de pobres, sem mandado, foi a guerra às drogas que relativizou a prova testemunhal, foi a guerra às drogas que burocratizou o processo penal. Na verdade, o que você cita da Lava Jato já é consequência disso tudo. A curto prazo, a herança que a Lava Jato deixa para o judiciário é mesmo de força, é de que o judiciário está combatendo a corrupção, trazendo a tão necessária legitimidade. Mas a médio e longo prazo os efeitos não devem ser os melhores, porque a Lava Jato também reforça a ideia de juízes combatentes, de juízes que estão lutando contra a corrupção, ou seja, contra o crime, e juiz não deve combater nada, juiz não deve lutar contra as partes, juiz deve ser juiz, não Batman. Esse modelo de juiz fica reforçado.
5 – Aqui na Bahia, no mês passado, uma cama de concreto despencou e matou um detento dentro Presídio Salvador, um presídio destinado para presos provisórios, sem julgamento. Em outros estados, o número de pessoas que morrem nos presídios por doenças tratáveis ,como tuberculose e sífilis são altíssimos.  Porém, não vemos o poder judiciário se manifestar sobre esses casos, juízes e promotores fingem não ter responsabilidades alguma. Podemos dizer que estamos aplicando de maneira informal a pena de morte no Brasil?
Com certeza. Aparentemente o que é tido como certo, correto, é que quando a pessoa entra no sistema prisional deixa de ser pessoa, cidadão, ser humano. E isso não importa se é preso aguardando julgamento ou se é preso condenado. Apareceu algemado na TV, as pessoas já dizem: culpado, bandido, criminoso; o julgamento é de somenos importância. Para o descaso com o sistema prisional, por parte do judiciário, a desculpa é sempre que isso é um problema do poder executivo, como se nas considerações do poder judiciário não devesse entrar a realidade como fator.  Nesse ponto a decisão do STF de considerar o estado de coisas do sistema penitenciário foi muito boa, apesar de suas limitações. Foi boa porque temos agora um reconhecimento formal da ilegalidade e da inconstitucionalidade da prisão brasileira. Mas, infelizmente, muitas decisões do STF sobre direitos humanos são como os tratados internacionais e como a Constituição, o judiciário de primeira e de segunda instâncias sabe que existe, mas atua com base em critérios de segurança pública próprios e do senso comum, privilegiando a prisão física, o encarceramento puro e simples, principalmente.
6 – Estamos no período eleitoral, a segurança pública e o papel do sistema de justiça criminal estão no centro do debate dos candidatos e do desejo dos brasileiros, que vivem num país recordista de assassinato, com mais de 60 mil por ano. Analisando o atual cenário e projetando algo para o futuro em torno dos candidatos mais bem colocados, poderá existir algum tipo de mudança na ação do sistema de justiça?
 Simplesmente, não acredito. Aliás nem acho que o assunto segurança pública e sistema de justiça criminal estejam no centro dos debates. São falados de forma circular, pela periferia do assunto. Segurança pública não é mais viatura, não é mais armamento, falar sobre segurança pública é falar sobre a condição de vida da população, condição como um todo. Só o fato de se separar segurança pública da saúde já é uma forma de não se falar de segurança pública realmente. Ganham as fábricas de armas, as concessionárias de carros que vendem viaturas, as fábricas de cimento na construção de prisões,  perde a população.
7 – Você é um juiz que é muito atuante nas redes sociais, está sempre se posicionando sobre os temas que principalmente dizem respeito ao poder judiciário. Como é essa interação com o público, ainda mais para um juiz que diz não acreditar na punição e na cadeia como método para a ressocialização das pessoas, sendo que a sociedade espera de um juiz que ele seja uma pessoa que condene e encarcere?
Bem, eu sou juiz da execução penal, portanto não sou juiz que condena. Tento sempre explicar isso. Aliás, não sou juiz nem que encarcera, porque o juiz da execução penal apenas verifica, de acordo com a lei, o dia que a pessoa presa deve ser solta e solta. Muitos não entendem realmente, um juiz que não prende, só solta, mas tento explicar isso. E quando consigo, quando tenho a oportunidade de falar, explicar a função de um juiz desses, as coisas melhoram. Tanto eu, que não acredito em nenhuma função positiva para a prisão, como qualquer pessoa, todos nós, queremos o melhor para a sociedade. Com o diálogo tudo é possível. Se a pessoa entende que a prisão tem a sua razão de ser, gosto também de ouvir os argumentos, apesar de a maioria deles serem relacionados a sentimentos, a desejos de vingança ou à ideia de que a pena mais grave é intimidadora. De uma forma ou de outra, falo da minha experiência, dos dados sobre as prisões e, não sendo a pessoa totalmente fechada ao debate, podemos discutir, pelo menos, uma melhor forma de falar sobre a prisão, uma forma que seja legal, justa, de acordo com o Estado de Direito, e, portanto, melhor para a sociedade.
 
Henrique Oliveira é colaborador da Revista Rever/Salvador
 
 

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