Início|Comunicação|Julian Assange no limbo

Julian Assange no limbo

-

Por IELA em 16 de junho de 2020

Julian Assange no limbo

Os bons jornalistas defendem-no, os jornalistas medíocres insultam-no
.Julian Assange dirigia a WikiLeaks em 2010 quando divulgou um vasto conjunto de documentos do governo estado-unidense que revelavam pormenores de operações políticas, militares e diplomáticas americanas. Com extractos publicados pelo New York Times, The Guardian, Der Spiegel, Le Monde e El País, o arquivo permitia uma visão mais profunda das actuações internacionais do Estado dos EUA do que qualquer coisa já vista desde que Daniel Ellsberg deu ao media os Pentagon Papers , em 1971. Mas hoje Ellsberg é celebrado como o santo patrono dos denunciantes ao passo que Assange está trancafiado numa cela na prisão de máxima segurança de Belmarsh , de Londres, durante 23 horas e meia por dia. Nesta fase mais recente dos dez anos de perseguição de Assange pelas autoridades americanas, ele está a combater a extradição para os EUA. Audiências em tribunal para determinar se o pedido de extradição será concedido foram adiadas até Setembro pela pandemia do Covid-19. Nos EUA ele enfrenta uma acusação de hacking em computadores e 17 alegações sob Lei de Espionagem de 1917 . Se for condenado, o resultado poderia ser uma sentença de prisão de 175 anos.
Eu estava em Cabul quando pela primeira vez ouvi falar acerca das revelações da WikiLeaks, as quais confirmava muito do que eu e outros repórteres suspeitavam, ou sabiam mas não podiam provar, acerca das actividades dos EUA no Afeganistão e no Iraque. O tesouro era imenso: cerca de 251.287 telegramas diplomáticos, mais de 400 mil relatórios classificados do exército da Guerra do Iraque e 90 mil da guerra no Afeganistão. Ao reler estes documentos agora fico mais uma vez impressionado pela tortuosa prosa militar-burocrática, com seus acrónimos sinistros e desumanizantes. Matar pessoas é mencionado como um EOF (Escalation of Force), algo que acontecia frequentemente em postos de controle quando soldados nervosos dos EUA ordenavam a parar condutores iraquianos ou faziam complexos sinais de mão que ninguém entendia. O que isto podia significar para iraquianos é ilustrado por breves relatórios militares tais como um intitulado “Escalation of Force by 3/8 NE Fallujah: I CIV KIA, 4 CIV WIA”. Descodificado, ele descreve o momento em que uma mulher num carro foi morta e o seu marido e três filhas feridos num posto de controle nos arrabaldes de Faluja, 64 quilómetros a oeste de Bagdad. O soldado em serviço dos EUA abriu fogo porque ele foi “incapaz de determinar os ocupantes do veículo devido à reflexão do sol vinda do para-brisas”. Um outro relatório assinala o momento que soldados dos EUA dispararam mortalmente sobre um homem que estava “a rastejar por trás da sua posição de franco-atirador (sniper) “, só para descobrir depois que ele era o intérprete da sua própria unidade.
Estes relatórios são as minudências da guerra. Mas colectivamente eles transmitem a sua realidade muito melhor do que a maior parte dos bem informados relatos jornalísticos. Aqueles dois disparos foram repetidos um milhar de vezes, embora raros fossem relatórios a admitir que as vítimas eram civis. Mais habitualmente, os mortos eram automaticamente identificados como “terroristas” apanhados no acto, pouco importando a evidência em contrário. A mais famosa das descobertas da WikiLeaks referia-se a um evento em Bagdad em 12 de Julho de 2007 durante o qual os militares dos EUA afirmaram ter matado uma dúzia de terroristas. Mas o incidente foi filmado pela câmara do helicóptero Apache que havia executado os disparos – e as pessoas alvejadas eram todas civis. Estas matanças ficaram bem conhecidas porque entre os mortos estavam dois jornalistas locais a trabalhar para a Reuters. Também era sabido que tal vídeo existia, mas o Pentágono recusou-se a divulgá-lo apesar do pedido ao abrigo da Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act). Estarrecido pelo que o vídeo revelava acerca do modo como os EUA conduziam a sua guerra ao terror e estarrecido pelos conteúdo dos milhares de relatórios e telegramas que armazenava, um analista júnior da inteligência dos EUA chamado Bradley Manning, que posteriormente mudou o seu género legal e tornou-se Chelsea Manning, divulgou todo o arquivo para a WikiLeaks.
O vídeo ainda tem o poder de chocar. Os dois pilotos do helicóptero caçoaram da carnificina na rua abaixo. “Ah, Ah, eu os atingi”, disse um. “Oh sim, olhe para aqueles bastardos mortos”, disse o outro. Eles confundiram a câmara empunhada por um dos jornalistas com um lançador de granadas, apesar de ser improvável que insurgentes armados as ostentassem abertamente em Bagdad com um helicóptero dos EUA a pairar sobre as suas cabeças. Eles dispararam outra vez para o ferido quando um deles, provavelmente o assistente da Reuters Saeed Chmagh, rastejou em direcção a um furgão que parou para resgatá-los. Quando os pilotos são informados pela rádio que haviam morto um certo número de civis iraquianos e ferido duas crianças, um deles disse: “Bem, a culpa é deles por trazerem suas crianças para a batalha”.
Os documentos da WikiLeaks revelaram o modo como os EUA, como a super-potência única, realmente conduzia suas guerras – algo que os establishments militares e políticos viram como uma bofetada para a sua credibilidade e legitimidade. Houve algumas revelações devastadoras, o vídeo do helicóptero dentre elas, mas muitos dos segredos descobertos não eram particularmente significativos ou na verdade muito secretos. E si mesmos eles não explicam ou grau de raiva que a WikiLeaks provocou no governo estado-unidense e nos seus aliados. Isto foi uma resposta ao assalto de Assange ao seu controle monopolista de informação sensível do Estado, o qual eles encaravam como uma escora essencial da sua autoridade. Ao tornar pública tal informação, como fizeram Assange e a WikiLeaks, usaram como arma a liberdade de expressão: se revelações desta espécie ficassem impunes e se tornassem norma, isto mudaria radicalmente o equilíbrio de poder entre governo e sociedade – e especialmente os media – em favor desta última. Foi a determinação do governo dos EUA de defender o seu monopólio permanente, ao invés do suposto dano feito pela divulgação do próprios segredos, que o motivou a perseguir Assange e a procurar desacreditar tanto a ele como à WikiLeaks.
Esta campanha tem sido implacável e tem tido um razoável grau de êxito, apesar do facto de que a maior parte das acusações feitas contra Assange serem comprovadamente falsas. A respeito da divulgação de documentos, havia duas linhas de ataque. Primeiro, Assange e a WikiLeaks eram acusados de revelar informação que punha em perigo ou levava a mortes de americanos ou seus aliados no Iraque e Afeganistão. Segundo, eram acusados de terem prejudicado o Estado dos EUA em geral através de actividades que equivaliam a espionagem, as quais deveriam ser punidas como tais. Muito mais danoso para Assange, contudo, e para todo o projecto da WikiLeaks, foram as alegações de violação feitas contra ele na Suécia, também em 2010. Isto levou a uma investigação do Ministério Público que perdurou aproximadamente dez anos, a qual foi descartada três vezes e três vezes recomeçada antes de finalmente ser abandonada em Novembro último quando o estatuto da prescrição se aproximava, para além do qual nenhumas acusações podiam ser formuladas.
O resultado é que Assange se tornou um pária. Perdido está o facto de que ele a WikiLeaks fizeram o que todos os jornalistas deveriam fazer, que é fazer com que informação importante fique disponível para o público, permitindo às pessoas fazerem julgamentos acerca do mundo em torno delas com base em evidências, em particular acerca das acções dos seus governos. Dado o constante martelar de ataques a Assange vindos de muitas direcções pode ser difícil recordar que em 2010 a WikiLeaks obteve uma grande vitória para a liberdade de expressão e contra o segredo de estado e que o governo dos EUA e seus aliados têm feito todos os esforços para revertê-la.
As primeiras tentativa de desacreditar Assange focaram-se em tentar provar que as revelações da WikiLeaks levaram directamente a mortes de agentes dos EUA e informantes. O Pentágono fez um grande esforço para dar substância a esta alegação: estabeleceu um Information Review Task Force dirigido pelo responsável sénior de contra-inteligência, brigadeiro-general Robert Carr, o qual estudou o impacto das revelações e procurou produzir uma lista de pessoas que podiam ter sido mortas por causa da informação contida nos telegramas. Carr posteriormente descreveu a extensão do fracasso da sua task force, em testemunho dado na audição de sentenciamento de Manning em Julho de 2013. Após longa investigação, a sua equipe de 120 oficiais de contra-inteligência não foi capaz de encontrar uma única pessoa, entre os milhares de fontes secretas e agentes americanos no Afeganistão e Iraque, que pudesse ser mostrada como tendo morrido devido às revelações. Carr disse ao tribunal que em certo ponto sua força tarefa parecia estar a obter algo: o Taliban afirmou ter morto um informante dos EUA identificado nos telegramas da WikiLeaks. Era um sinal de desespero por parte dos oficiais da contra-inteligência que ao procurar evidências contra a WikiLeaks eles ficassem reduzidos a citar o Taliban como fonte. E, como admitiu Carr durante o interrogatório da defesa, revelou-se que o Taliban estava a mentir. “O nome do indivíduo morte não estava nas revelações [da WikiLeaks]”. Apesar de tudo isto, o advogado que representa o governo dos EUA nas audiências de extradição de Assange em Londres no princípio deste ano ainda argumentou que Assange havia colocado em risco as vidas de fontes dos EUS no Iraque e no Afeganistão.
Em Cabul, em 2010, pouco após o meu primeiro olhar aos telegramas diplomáticos que a WikiLeaks havia revelado, aconteceu reunir-me com um oficial americano para uma conversa off the record acerca da situação no Afeganistão. Perguntei-lhe o que pensava dos telegramas; ele respondeu perguntando que código de classificação aparecia no topo das páginas que eu via. Quando eu lhe disse, ele foi desdenhoso acerca do grau em que os documentos contivessem realmente segredos mantidos profundamente, apesar da classificação que pudessem ter. Ele explicou que o governo dos EUA não era tão ingénuo para acreditar que informação armazenada numa base dados à qual até meio milhão de pessoas tinha acesso – uma das quais revelou-se ser o soldado Manning – pudesse permanecer confidencial por muito tempo. Conhecida como Siprnet (Secret Internet Protocol Router Network), a base de dados originalmente fora propriedade única do Pentágono mas foi utilizada mais amplamente após o 11/Set, quando ficou claro que partes da burocracia dos EUA tinham informação valiosa que outras partes não sabiam. O Siprnet foi a resposta para o problema da partilha insuficiente: um arquivo electrónico a que muitas pessoas em vários ramos do governo podiam ter acesso, desde diplomatas em embaixadas dos EUA por todo o mundo até pessoal militar de baixa patente como Manning. Em teoria, pelo menos três milhões de pessoas tinha autorização de segurança (security clearance) para utilizar o Siprnet: tudo que era preciso era uma palavra-passe. As medidas de segurança eram limitadas e podiam ser facilmente penetradas. Para a transmissão de dados realmente secretos, tais como comunicações entre adidos militares dos EUA, pelo menos quatro outros sistemas mais refinados estavam disponíveis. O facto de a força tarefa do general Carr, a qual foi capaz de apelar a todos os recursos do Pentágono, ter sido incapaz de descobrir, em todos os oceanos de facto divulgados pela WikiLeaks, o nome de um único indivíduo que tivesse realmente sido morto em consequência pelo Taliban, al-Qaida ou algum outro inimigo dos EUA, mostra que a exclusão de informação pormenorizada do Siprnet foi eficaz.
As acusações que Assange enfrentará nos EUA se for extraditado têm tudo a ver com colocar os EUA e seus informantes em perigo. Mas as percepções públicas sobre ele são amplamente moldadas, de uma maneira ou de outra, por seu status de suspeito de violação. Alguns rejeitam as acusações, que consideram inventadas ou injustas. Outros acreditam que ele deveria ter sido julgado por agressão sexual e que não se pode fazer uma excepção só porque Assange é um avatar da liberdade de imprensa. Entre aqueles que o tem apoiado estão Katrin Axelsson e Lisa Longstaff, duas porta-vozes da Women against Rape, a qual em 2012 publicaram um artigo opondo-se à sua extradição para a Suécia alegando que o processo judicial fora “corrompido” e a justiça “negada tanto aos acusadores como ao acusado”: as mulheres envolvidas foram “destruídas” na internet porque os promotores suecos não conseguiram proteger seu anonimato; Assange estava sendo “tratado por grande parte dos media como se fosse culpado, embora nem tivesse sido acusado”.
Em 12 de Setembro do ano passado, Nils Melzer, o relator especial da ONU sobre tortura e outros tratamentos crueis, desumanos e degradantes, enviou uma carta de 16 páginas ao governo sueco. Tendo empreendido uma revisão pormenorizada dos procedimentos contra Assange, ele concluiu que “desde 2010, o processo sueco parece [ter feito] tudo para manter a não qualificada narrativa de “suspeito de violação” sem que tenha sido feito progresso ou emitidas quaisquer acusações: isto foi “procrastinação processual”. Assange recusou-se a viajar para a Suécia para interrogatório – ele argumentou através dos seus advogados que se deixasse a protecção da embaixada equatoriana inevitavelmente seria extraditado para os EUA – mas os promotores, por sua vez, passaram seis anos a recusar-se viajar para Londres a fim de entrevistá-lo ou efectuar interrogatório por ligação vídeo. A carta também revela trocas de emails entre promotores suecos e o British Crown Prosecution Service, o qual parecia determinado a que o processo sueco continuasse. Em 31 de Agosto, por exemplo, a seguir a informações nos media de que a Suécia estava a considerar abandonar a investigação pela segunda vez, o CPS escreveu ao promotor chefe sueco: “Não ouse pois podia ficar com os pés frios!!”
Melzer descreve uma investigação que foi politizada desde o momento em que, em 20 de Agosto de 2010, duas mulheres, então conhecidas apenas como AA e SW, foram a uma esquadra de polícia em Estocolmo “para perguntar se o Sr. Assange poderia ser obrigado a fazer um teste HIV”. Dentro de horas, “o promotor sueco ordenou a prisão do Sr. Assange e informou o tablóide Expressen que ele suspeito de ter violado duas mulheres”. Ao longo dos nove anos seguintes, quando a investigação foi repetidamente fechada por um promotor só para ser reaberta por outro, a Suécia regularmente indicava que queria interrogar Assange, mas na prática mostrava pouco desejo de fazer isso ou de levar a investigação a uma conclusão. O efeito principal do para-arranca do processo judicial foi manter a ferver a controvérsia sobre o que fez Assange em Estocolmo em 2010. O governo sueco finalmente respondeu à carta de Melzer só para dizer que “não tinha nova observação fazer”; no dia seguinte a investigação foi formalmente encerrada.
Nada disto provavelmente mudará o modo como Assange é encarado. De acordo com a experiência passada, quase nenhum media de referência prestou qualquer atenção às questões de Melzer acerca da condução do caso. Os maiores jornais do mundo, que em 2010 publicaram revelações do WikiLeaks nas suas primeiras páginas, distanciaram-se de Assange logo depois, muitas vezes declarando que ele era uma pessoa difícil de lidar ou que era descuidado no manuseio dos telegramas e relatórios do governo dos EUA. Ele foi acusado de ser “narcisista”, como se isso fosse algo mais do que um viés de carácter, ou como se viéses de carácter – fossem quais fossem – tivessem qualquer influência nas informações que foram reveladas.
Dada a gravidade das questões em causa, o silêncio de jornalistas acerca da detenção de Assange em Belmarsh a seguir à revogação pelo Equador do seu status de asilado é gritante. Havia evidências de uma mudança radical na política de segurança dos EUA, em direcção à posição adoptada por países como Turquia e Egipto, os quais procuraram criminalizar críticas ao Estado e confundir a publicação de notícias que não querem que o público ouça com terrorismo ou espionagem. A crescente supressão da liberdade de imprensa na Hungria e na Índia é frequentemente criticada pelos comentaristas ocidentais. Mas, como destacou Glenn Greenwald no Intercept, os media ocidentais “ignoraram amplamente o que é, de longe, o maior ataque à liberdade de imprensa pelo governo dos EUA pelo menos na última década: a acusação e tentativa de extradição de Julian Assange por alegados crimes decorrentes da publicação do WikiLeaks – em conjunto com os maiores jornais do mundo – dos registos da guerra do Iraque e do Afeganistão e dos telegramas diplomáticos dos EUA”. Eles não podiam encarcerar o editor do New York Times, de modo que ao invés disso perseguem Assange.
Assange e a WikiLeaks mais do que cumpriram plenamente o objectivo principal da colecta de notícias. “O primeiro dever da imprensa”, escreveu Robert Lowe no Times em 1852, “é obter a inteligência mais precoce e mais correcta dos eventos da época e instantaneamente, revelando-os, para torná-los propriedade comum da nação. O homem de Estado colecta suas informações secretamente e por meios secretos; ele retém até a inteligência actual do dia com precauções ridículas”. A imprensa, em contraste, “vive de revelações”. As revelações de Assange em 2010 seguiram exactamente esta prescrição e é por isso que ele corre o perigo de passar o resto da vida na prisão. 
 

Últimas Notícias