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O Bravo Mundo Novo da Cultura do Cancelamento

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Por IELA em 07 de maio de 2021

O Bravo Mundo Novo da Cultura do Cancelamento

Em 2020, assistimos à sacralização do tecnofeudalismo – um dos grandes temas de meu livro mais recente, Raging Twenties. A velocidade ultrassônica, o vírus do tecnofeudalismo vem sofrendo mutações e gerando a variante ainda mais letal de uma selva de espelhos, na qual a cultura do cancelamento é aplicada à força pela Big Tech em toda a amplitude do espectro, a ciência é rotineiramente rebaixada e tachada de fake news nas mídias sociais, e o cidadão médio se vê desconcertado ao ponto da lobotomia.  
Giorgio Agamben definiu essa situação como um novo totalitarismo. Alastair Crooke, analista político de primeira linha, tentou uma discriminação minuciosa da configuração mais ampla. Em termos geopolíticos, o Hegêmona recorreria até a uma guerra 5G para manter sua primazia, buscando, simultaneamente, legitimação moral por meio da revolução woke, devidamente exportada para suas satrapias ocidentais.
A revolução woke é uma guerra cultural – em simbiose com a Big Tech e a Big Business – que destroçou aquilo que realmente importa: a luta de classes. As classes trabalhadoras atomizadas, lutando para apenas sobreviver, foram abandonadas e hoje chafurdam na anomia.
A grande panaceia, de fato a “oportunidade” suprema oferecida pela Covid-19, é o Great Reset, a Grande Reinicialização proposta pelo Herr Schwab de Davos: essencialmente a substituição de uma decadente base de indústria manufatureira pela automação, simultânea a uma reordenação do sistema financeiro.
Concomitantemente, há o ilusório sonho dourado de uma economia mundial que irá “se aproximar de um modelo capitalista mais limpo”. Um dos elementos desse modelo é um deliciosamente benigno Conselho para um Capitalismo Inclusivo, em parceria com a Igreja Católica.
Como a pandemia – a “oportunidade” para o Reset – foi de certo modo ensaiada no Evento 201, realizado em outubro de 2019, novas iniciativas já vêm sendo montadas para planejar os próximos passos, tais como o Cyber Polygon, que adverte contra os “principais perigos da digitalização”. Não percam seu “exercício técnico” de 9 de julho, quando “os participantes terão a oportunidade de afiar suas habilidades técnicas de mitigar um ataque dirigido às cadeias de fornecimento em um ecossistema corporativo em tempo real”.
Um Novo Concerto de Potências? 
A soberania é uma ameaça mortal à revolução cultural atualmente em curso. Temos aqui as instituições da União Europeia – em especial a Comissão Europeia – lançando-se a um vale-tudo cujo objetivo é dissolver os interesses nacionais dos estados-nação. E isso, em grande medida, explica o uso, em graus variados, da russofobia, da sinofobia e da iranofobia como armas de ataque. 
O ensaio-âncora de meu Raging Twenties analisa o que está em jogo na Eurásia em termos do Hegêmona se opondo aos Três Soberanos – que são Rússia, China e Irã. Foi nesse quadro, por exemplo, que um volumoso projeto de lei de mais de 270  páginas, a Lei da Competição Estratégica, foi recentemente aprovado no Senado dos Estados Unidos. Essa legislação vai muito além da competição geopolítica, traçando um mapa de percurso para enfrentar a China ao longo de todo o espectro. O projeto fatalmente acabará por ser convertido em lei, uma vez que a sinofobia é um esporte bipartidário no Distrito de Colúmbia.
Os oráculos do Hegêmona, como o perene Henry Kissinger, vêm dando uma trégua em suas estripulias de costume de Dividir para Dominar, para advertir que uma escalada de competição “infindável” pode descambar para uma guerra quente – levando em conta, em especial, a IA e as gerações mais recentes de armamentos inteligentes.
No incandescente front Estados Unidos-Rússia, onde o Chanceler Sergey Lavrov vê uma falta de confiança mútua, para não mencionar uma falta de respeito muito pior que a que havia durante a Guerra Fria, o analista Glenn Diesen observa que o Hegêmona “se esforça ao máximo para converter a dependência europeia na área de segurança em lealdade geoeconômica”.
É isso que está no cerne da saga do tudo-ou-nada: o Nord Stream 2. O Hegêmona faz uso de todas as armas – inclusive a da guerra cultural, onde Navalny, o escroque condenado na justiça, é um dos principais peões – para tirar dos trilhos um acordo energético de importância essencial para os interesses industriais da Alemanha. Simultaneamente, as pressões aumentam contra a compra pela Europa de tecnologia chinesa. 
Enquanto isso, a OTAN – que reina soberana sobre a União Europeia – continua a ser construída como um Robocop global, por meio do projeto OTAN 2030– mesmo depois de ter transformado a Líbia em uma terra arrasada infestada de milícias e de ter sofrido humilhantes palmadas em seu traseiro coletivo no Afeganistão.
Apesar de todo o som e a fúria da histeria sancionadora e das declinações de guerra cultural, o establishment hegemônico não é exatamente cego para o fato de que o Ocidente “vem perdendo não apenas sua supremacia econômica, mas também sua influência ideológica”. 
Por isso, o Conselho de Relações Exteriores – em uma espécie de ressaca bismarckiana – propõe agora um Novo Concerto de Potências para lidar com o “populismo irado” e as “tentações iliberais”, conduzidas, é claro, por esses atores malignos, tais como a “belicosa Rússia”, que ousam desafiar a autoridade do Ocidente”.
Por mais que essa proposta geopolítica venha acolchoada em retórica benigna, a jogada final continua a mesma: “restaurar a liderança dos Estados Unidos” nos termos ditados pelos Estados Unidos. Que se danem a Rússia, a China e o Irã iliberais. 
Crooke evoca exatamente um exemplo russo e outro chinês para ilustrar até que ponto a revolução cultural woke pode nos levar. No caso da revolução cultural chinesa, o resultado final foi o caos fomentado pela Guarda Vermelha, que começou a criar sua própria devastação independentemente da liderança do Partido Comunista. 
E temos então Os Possuídos, de Dostoievsky, que mostra como os liberais seculares da Rússia da década de 1840 criaram as condições para o surgimento da geração de 1860: radicais ideológicos dispostos a atear fogo na casa. Não há a menor dúvida: as “revoluções” sempre devoram suas crias. Geralmente, tudo começa com a elite dominante impondo sobre os demais suas recém-descobertas Formas Platônicas. Lembrem-se de Robespierre. Ele formulou suas políticas de maneira muito platônica – “o gozo pacífico da liberdade e da igualdade, o reino da justiça eterna”, com leis “gravadas no coração de todos os homens”. 
Bem, outros discordaram da visão de Robespierre e todos sabemos o que aconteceu: o Terror. Exatamente como Platão recomendou em As Leis. Portanto, é justo esperar que os filhos da revolução woke um dia venham a ser comidos vivos por seu próprio zelo. 
O cancelamento da liberdade de expressão
Nas atuais circunstâncias, é justo nos perguntarmos em que momento o “Ocidente” começou a dar seriamente errado, no sentido da cultura do cancelamento. Permitam-me oferecer o ponto de vista cínico-estóico de um nômade global do século XXI. 
Se precisarmos de uma data, comecemos com Roma – o epítome do Ocidente – em inícios do século V. Sigam o dinheiro. Foi nesse tempo que a renda das propriedades pertencentes aos templos foi transferida para a Igreja Católica – aumentando assim seu poderio econômico. No final daquele século, até mesmo presentes dados aos templos foram proibidos. 
Paralelamente, uma destruição acelerada estava em curso – alimentada pela iconoclastia cristã, que ia desde esculpir cruzes em estátuas pagãs até converter casas de banho em igrejas. Banhar-se nu? Quelle horreur!
A devastação foi inacreditável. Um dos poucos sobreviventes foi a fabulosa estátua equestre de bronze de Marco Aurélio, no Campidoglio/Monte Capitólio (hoje exposta no museu). A estátua só sobreviveu porque as massas devotas pensavam que o  imperador retratado era Constantino.
A própria trama da vida urbana de Roma foi destruída: rituais, o senso de comunidade, cantos e danças. Temos que nos lembrar que as pessoas ainda abaixam a voz ao entrar em igrejas. 
Durante séculos não se ouviram as vozes dos despossuídos. Uma exceção gritante pode ser encontrada em um texto de inícios do século VI, de autoria de um filósofo ateniense citado por Ramsay MacMullen em Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries.
O filósofo grego escreveu que os cristãos são “uma raça dissoluta em paixões, destruída por auto-indulgência controlada, servis e efeminados em seu pensamento, próximos à covardia, chafurdando em imundície, degradados, conformados e submissos em troca de segurança”.
Se isso soa como uma proto-definição da cultura de cancelamento do século XXI é porque é mesmo. 
As coisas também estavam bem ruins em Alexandria. Uma turba de cristãos matou e esquartejou a deslumbrante Hipátia, matemática e filósofa. Esse episódio de fato pôs fim à era da grande Matemática grega. Não é de admirar que Gibbon descreveu o assassinato de Hipátia com uma notável frase de efeito em Declínio e Queda do Império Romano (“No auge de sua beleza, na maturidade de sua sabedoria, a modesta donzela recusava amantes e instruía discípulos; as pessoas mais ilustres por posição ou por mérito esperavam impacientes por uma visita à filósofa mulher”). 
Sob Justiniano – imperador de 527 a 565 – a cultura do cancelamento perseguiu o paganismo com violência sem limites. Uma das leis promulgadas por ele acabou com a tolerância religiosa universal, que vigorava no Império desde Constantino, em 313. 
Se você fosse pagão, era melhor ir se preparando para a pena de morte. Mestres pagãos – em especial os filósofos – foram banidos. Eles perderam a parrhesia: sua autorização para lecionar (aqui vai a brilhante análise de Foucault).
A parrhesia – frouxamente traduzida como “crítica franca” – é uma questão tremendamente séria: por nada menos que um milênio, foi essa a definição de liberdade de expressão (itálicos meus).
É isso: primeira metade do século VI. Foi então que a liberdade de expressão foi cancelada no Ocidente. 
O último templo egípcio – dedicado a Ísis, em uma ilha ao sul do Egito, foi fechado em 526. A lendária Academia de Platão, com um currículo de nada menos que 800 anos de ensino –  foi fechada em Atenas em 529. 
Adivinhem qual país os filósofos gregos escolheram para o exílio: a Pérsia. 
Bons dias aqueles – em inícios do século II – quando o maior dos estóicos, Epicteto, um escravo frígio liberto, admirador tanto de Sócrates quanto de Diógenes, foi consultado pelo Imperador Adriano e se tornou modelo para um outro imperador, Marco Aurélio. 
A história nos conta que a tradição intelectual grega não desapareceu naturalmente no Ocidente. Ela foi alvo da cultura do cancelamento.
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– Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais. Para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
 

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