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Venezuela: revolução e governo

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Por IELA em 22 de maio de 2019

Venezuela: revolução e governo

O imperialismo estadunidense desatou poderosa ofensiva contra Venezuela. O cerco diplomático e econômico aliado a intensa campanha midiática destinada a tornar Maduro um déspota e o regime politico uma ditadura desenvolve-se desde a época de Hugo Chávez, mas ganhou renovada força nos três últimos anos. Não por acaso a Venezuela se tornou um assunto de debate público no Brasil e peça publicitária anti-comunista na última campanha eleitoral em nosso país.
A emergência da Revolução Democrática Bolivariana iniciada com o golpe cívico militar de 4 de fevereiro de 1992 e ampliado com a vitória eleitoral de Hugo Chávez para presidente da república em 1998 representou um raio de luz contra a até então dominante hegemonia liberal em toda a América Latina. 
De fato, a ação político-militar do Movimento Bolivariano 200 (MBR-200) encabeçado por Hugo Chávez Frías contra o governo socialdemocrata de Carlos Andrés Perez rendeu cadeia e exilio a seus membros da mesma forma que garantiria enorme êxito eleitoral seis anos depois nas eleições de 1998. Em perspectiva, é muito claro que aquela ação de vanguarda encabeçada por militares nacionalistas e bolivarianos inicialmente derrotada, terminou para sempre com os sistema do Pacto del Punto Fijo (1958) responsável pela alternância na presidência da republica de governos adecos (Ação Democrática, de orientação social democrata) e copeianos (COPEI, de filiação democrata cristã). Os apologéticos da dominação burguesa em nosso continente – defensores da democracia sem adjetivos – não vacilavam em afirmar a pátria de Simón Bolívar como um oásis democrático num continente que sofria não somente ditaduras militares, mas também regimes sustentados pelo terrorismo de estado. Contudo, a apologia liberal não podia mais ocultar que o sistema político venezuelano estava completamente podre e não gozava de apoio popular, pois quando Hugo Chávez é finalmente libertado não havia mais dúvida que se tornará mesmo atrás das grades o homem mais popular em seu país.
É preciso reter o fundamental: os militares bolivarianos, recrutados todos nas bases do alto comando militar, tinham clareza que o sistema político liberal já não podia garantir vida digna para milhões de venezuelanos afundados na mais abjeta pobreza enquanto a classe dominante desfrutava da renda petroleira garantida ora pela abundancia de dólares derivado da alta dos preços de petróleo no mercado mundial como também das políticas de austeridade aplicadas quando os preços internacionais despencavam e diminuíam a receita do estado. Ademais, tornou-se claro para os bolivarianos que o sistema não mais poderia renovar-se e, de fato, a despeito da ira popular manifesta em sucessivas votações, os mesmos políticos profissionais, vassalos da classe dominante local e completamente vinculados aos interesses de Washington, continuavam comandando a república.
A Revolução Democrática Bolivariana rompeu com aquele domínio de classe e inaugurou uma nova fase da política latino-americana em várias direções, mas há pelo menos 3 aspectos decisivos que um militante socialista não pode ignorar a despeito da grave situação que o país enfrenta nos dias atuais. Em primeiro lugar, ao contrário da hegemonia liberal que dominava o continente, a RDB conciliou uma vez mais no solo latino-americano Revolução e Democracia. No jargão de então – em larga medida alimentado pelo liberalismo de esquerda – se um militante ou força política confessava sua fé na democracia como um valor universal teria, necessariamente, que negar seu antigo compromisso com a revolução social. Da mesma forma, todo aquele que defendia uma estratégia revolucionária de transformação social deveria negar qualquer compromisso com a democracia. Neste contexto, era muito clara a oposição entre democracia e revolução! Ora a RDB, com intensa participação eleitoral e permanente mobilização política convocada pelo presidente Chávez, inaugurou a emergência da democracia participativa e protagônica, enterrando para sempre o bordão liberal da democracia como valor universal sustentada por comunistas ou a “democracia sem adjetivos” defendida pela direita. 
Em segundo lugar, a RDB atualizou em termos concretos uma antiga tradição da esquerda latino-americana que andava desbotada ou simplesmente esquecida: sua necessária vocação anti-imperialista.
Na maior parte dos países latino-americanos a transição das ditaduras ou dos regimes de terrorismo de estado não somente deixara intacto os crimes políticos cometidos pelas classes dominantes locais como também manteve as antigas relações econômicas, política e militares acumuladas pela política externa dos Estados Unidos na região. A RDB rompeu claramente com a tradicional influência do imperialismo estadunidense no governo como também o estrito controle que exercia sobre a política petroleira no país e, em consequência, na OPEP. De quebra, Hugo Chávez iniciou intenso ativismo diplomático com os países árabes que dobrou em larga medida a influência da política externa estadunidense e, em especial, do governo de William Clinton. 
Finalmente, a ofensiva do governo de Hugo Chávez opunha – de maneira jamais realizada na América Latina – a doutrina Monroe de um lado e o bolivarianismo de outro. Não somente a integração latino-americana ganharia novo impulso com iniciativas cada vez mais ousadas lançadas pelo ex-presidente venezuelano como o inteligente enfrentamento com a potência imperialista era temperado com alianças sólidas no Caribe, na América Central e também no Cone Sul. Não é exagero afirmar que Chávez exerceu incontestável liderança no continente latino-americano e seu exemplo foi também admirado no mundo árabe e africano de maneira bastante fecunda. O bolivarianismo retoricamente sustentado pelas classes dominantes ganhará, finalmente, sua vitalidade original e sua vocação anti-imperial manifesta nas guerras de independência contra o império espanhol. A antiga tradição ganhou feição própria, amparada em poderoso movimento de massas, num novo regime político que alterou substancialmente a correlação de forças em nosso continente.
Os Estados Unidos não cruzaram os braços diante das constantes iniciativas do ex-presidente como tampouco ignoravam o péssimo exemplo do impressionante ativismo das massas na Venezuela para os demais países da região. A potência imperialista logrou então opor, de maneira sutil, a liderança de Chávez sempre considerada nociva, contra o comportamento “civilizado” de Lula no Brasil. Ora, as tentativas de golpe e assassinato do líder venezuelano foram todas derrotadas por intenso ativismo político das massas e da fidelidade da doutrina bolivariana entre os militares. A derrota da ALCA em 2005 mostrou ao mundo que uma concepção bolivariana de integração continental avançava rapidamente na América Latina ainda que sem o mesmo entusiasmo de todos seus membros. Bush amargou imensa derrota estratégica naqueles anos a despeito de pequenas vitórias parciais obtidas contra a ofensiva bolivariana.
Portanto, ninguém pode ignorar que a RDB sempre contou com sistemática oposição estadunidense que em anos recentes adquiriu caráter mais eficaz, especialmente após a precoce morte do líder bolivariano ocorrida em março de 2013. Este reconhecimento não ignora que vários problemas atualmente potencializados já existiam durante os governos de Chávez. As revoluções sofrem derrotas e admitem reveses; as revoluções não mantém eterno rumo ascendente. Após a morte de Chávez o divórcio entre as forças vitais da Revolução Democrática Bolivariana e o governo bolivariano se aprofundou, mas obviamente que o sistema político do país esta longe de assemelhar-se a uma ditadura tal como tentam fazer crer a máquina ideológica e propagandística dos Estados Unidos e seus vassalos na América Latina.
Afinal, qual regime toleraria o ativismo político do embaixador dos EUA em Caracas ou ainda as sucessivas declarações de guerra de lideres oposicionistas como se pode facilmente verificar naquele país?
O nó górdio da RDB tem sido sua incapacidade de superar o caráter rentista do desenvolvimento capitalista na Venezuela, tarefa que se revela uma dificuldade igualmente real para países como o Brasil que já exibiram no passado certo orgulho burguês a partir da força do capital industrial que definha até mesmo diante dos olhos pouco atentos do economista vulgar. Ademais, o país sofreu histórico bloqueio diplomático e especialmente econômico que se aprofundou na administração de Barak Obama quando o presidente estadunidense sancionou em dezembro de 2014 uma iniciativa de lei do senador democrata Robert Menendez com decidido apoio do ultra conservador Marco Rubio do Partido Republicano que determinou sanções contra funcionários bolivarianos acusados pelos Estados Unidos de violar direitos humanos. Desde então, a pressão foi crescente e, como ensina a Historia, não há distinção acentuada entre a política imperialista democrata e republicana quando esta em jogo a influencia e o controle da potencia imperialista na América Latina, considerada sempre pelo poder imperial como área estratégica para sua dominação mundial. No limite, quando necessário, as duas bancadas parlamentares votam democraticamente os bilhões de dólares necessários para sabotar e, sempre que possível derrocar, os governos populares que ousam superam os limites das democracias restringidas que o poder imperial alimenta e sustenta na região. É preciso observar que enquanto Barak Obama tomava tímidas iniciativas para reatar relações com Cuba no mesmo ato aumentava a ofensiva contra a Venezuela; portanto, ninguém pode se enganar sobre o essencial, pois o imperialismo estadunidense indicava claramente que jamais poderia admitir um país petroleiro com enormes reservas mundiais de uma mercadoria estratégica sair completamente da órbita do dólar e de seu domínio politico e militar. 
Quando aqui indico o crescente divórcio entre a RDB e o governo bolivariano, não ignoro suas graves deficiências; ao contrário, é obvio que a participação das massas e suas organizações tem perdido protagonismo nas decisões estratégicas da economia, do estado e da cultura especialmente após 2013 com a ascensão do presidente Maduro. No entanto, tampouco posso desconhecer que nas batalhas eleitorais e especialmente na última eleição na qual o atual presidente assegurou novo mandato, as forças bolivarianas lograram maioria! Não é em respeito e em defesa da democracia que a ofensiva estadunidense ganhou perigoso perfil com o governo Trump, mas precisamente por seu oposto: a estratégia imperialista quer um governo títere, completamente subordinado aos interesses de Washington, de acordo com as novas exigências da luta de classes na América Latina. A despeito de suas graves limitações na condução da economia e na repartição do excedente produzido pela riqueza petroleira, é precisamente um governo amparado com as energias da RDB quem poderá, em ultima instancia, manter as margens de soberania conquistada duramente até aqui e impedir um banho de sangue contra os setores mais conscientes e organizados do povo em caso de uma derrubada do governo de Maduro.
Neste sentido, tal como em outras épocas, a Venezuela segue operando numa lógica das situações extremas na qual clamar pela negociação e o acordo com a oposição criminosa orientada e dirigida exclusivamente por Washington é mais do que inocência: é suicídio. Nestes anos a ação estadunidense sempre estimulou duas vias possíveis que, finalmente, a vitória de Maduro na ultima eleição cancelou de maneira definitiva. Ora, enquanto Enrique Capriles apostava numa vitória eleitoral nos marcos da constituição bolivariana outro bando da oposição encabeçado por Leopoldo Lopez atuou franca e abertamente para a derrocada do governo pela força. Estes clamavam por uma “saída” para a crise que, em bom português significa a destituição de Maduro pela força da oposição nas ruas. As duas opções foram continuamente estimuladas pela pelas sucessivas administrações da Casa Blranca mas nenhuma das estratégias foi vitoriosa, pois Lopez foi preso em 2014 e, mais tarde, Capriles não logrou maioria eleitoral em maio de 2018, momento em que Maduro ganhou o direito de permanecer mais 6 anos na presidência. Ora, é fácil perceber que neste contexto e com a ascensão de Trump nos Estados Unidos, o interesse na derrocada do governo bolivariano se tornou uma necessidade para a política externa dos Estados Unidos que encontraria uma oposição finalmente unificada em torno de objetivo comum. 
A recente “rebeldia do poder legislativo” contra as demais instituições, encabeçado por um obscuro e medíocre deputado chamado Juan Guaidó, é apenas o corolário de uma trama que combina todos os meios de pressão contra a soberania da Venezuela cujo objetivo é a criação de uma artificial “dualidade de poderes” destinada a subtrair a legitimidade da vitória eleitoral de Maduro. Esta ação é, no essencial, comanda desde Estados Unidos e não por acaso fundos financeiros e reservas em ouro foram confiscadas e disponibilizadas para uso do governo considerado “legitimo” por Estados Unidos e a maioria dos países europeus. As massas que sempre tiveram um imenso protagonismo enquanto Hugo Chávez conduzia o processo foram gradualmente subalternizadas na condução das decisões estratégicas do estado e, especialmente, da economia. Na atualidade as forças armadas jogam papel decisivo no controle do Estado e na condução da economia de tal modo que regulam o uso do excedente petroleiro produzido pelo país.
O bloqueio econômico não é mera retórica do governo, pois produz desabastecimento e contribuiu de maneira decisiva para fomentar a inflação; no entanto, há uma perigosa aliança com o setor financeiro – bancos privados e estatais – que acumulam poderosas reservas em dólares e são igualmente nocivas para uma estratégia de controle inflacionário que castiga as maiorias. Esta aliança no bloco de poder que sustenta o governo de Maduro representa um notável obstáculo para a retomada das forças vitais que originaram a RDB. A manutenção desta sólida aliança com uma burguesia bancária no contexto de uma economia historicamente incapaz de superar o rentismo petroleiro implica num constante ataque aos assalariados nas condições de vida e trabalho. A experiência indica de maneira muito clara que nos períodos em que os preços do petróleo crescem no mercado mundial os governos ganham margem de manobra maior e, em consequência, podem atender demandas populares com maior amplitude a despeito da eficácia das políticas públicas. No entanto, quando o mercado mundial força os preços para baixo a possibilidade de atender as demandas dos trabalhadores – suporte ultimo e decisivo do governo – também diminuem e a disposição de suportar o peso da crise sem protagonismo nas decisões centrais mina a capacidade do governo em manter maiorias sociais e/ou eleitorais.  
Este dado é decisivo, pois na Venezuela as massas aprenderam a lutar como em nenhum outro país do continente. Não existe uma sociedade civil tão politizada quanto a venezuelana na América Latina, razão pela qual as classes subalternas nos grandes enfrentamentos com a classe dominante local em associação com a ofensiva imperialista patrocinada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, sempre encontrou enorme resistência popular. Tal fato permitiu ao governo de Maduro disputar no terreno eleitoral com certa eficácia a despeito da redução de seu percentual eleitoral nos últimos anos. Ademais, a unidade da oposição neste momento revela que as classes dominantes locais não vacilam em jogar sua sorte sem vacilação numa linha de atuação que pretende a derrubada do governo pela ação das ruas amparada agora, como em nenhum outro momento, na decidida e aberta ação dos Estados Unidos contra Venezuela.
A Revolução Democrática Bolivariana, óbvio está, já não possui o mesmo brilho dos primeiros tempos quando Hugo Chávez rompeu a hegemonia então aparentemente insuperável do “neoliberalismo”. No entanto, as novas circunstâncias exigem que aquela vitalidade capaz de dobrar várias iniciativas dos Estados Unidos pode ser atualizada novamente sob o impulso da ofensiva imperialista destinada a tornar a Venezuela um país submetido a sua classe dominante local tão ultra parasitária quanto vassala dos EUA. A eventual derrota do governo bolivariano – pouco provável no momento em que escrevo estas linhas – implicaria em sério revés para as classes subalternas na Pátria Grande e alteraria a correlação de forças em favor do imperialismo estadunidense de maneira radical. A ofensiva ultra liberal que podemos verificar em vários países da região – Brasil e Argentina a cabeça – ganharia notável reforço.  No entanto, a história da RDB revela também que precisamente quando opera na lógica das situações extremas somente o movimento das massas pode assegurar a continuidade de qualquer governo. Este postulado de validez universal é particularmente importante para a Venezuela neste difícil momento e não estaria descartada a hipótese de um renascimento das energias originárias da RDB que desde 1999 contribuiu notavelmente para um novo patamar de lutas em toda a América Latina. Mas esta hipótese – também pouco provável neste momento – implicaria numa radical reorientação do governo de Maduro no sentido de sustentar a soberania nacional arduamente conquistada na soberania popular de um povo que aprendeu a lutar contra poderes aparentemente mais fortes e diante dos quais sempre saiu vencedor. 
Este cenário parece improvável e não poucas vezes também pode parecer estranho para quem analisa o conflito no país vizinho desde uma tradição marcada pela conciliação de classe da qual a duras penas estamos apenas tentando superar. No entanto, assim como podemos aprender em pouco tempo lições que tradicionalmente são aprendidas em logos combates e não poucas derrotas, também as massas na Venezuela podem retomar sua tradição de luta e protagonismo para além dos limites e alianças do atual governo. As crises sempre criam dinâmicas políticas nas sociedades dependentes e periféricas que não podem ser interpretadas e menos ainda solucionadas a partir da experiência dos países centrais. A esquerda latino-americana sofre radical redefiniçao neste momento; o antigo progressismo que despertou tantas esperanças nas duas ultimas décadas (petismo no Brasil, peronismo na Argentina, correísmo no Equador, FMLN em El Salvador) revelou sua completa impotência diante da ofensiva ultra liberal em vários países da região e não demonstra capacidade de renovação. Por outro lado, a guerra de classes impulsionada pelos Estados Unidos requer das forças populares um novo radicalismo político sem o qual será impossível enfrentar com algum grau de eficácia a ofensiva das forças imperialistas em aliança com as classes dominantes locais. O drama político e a agressão que nestes dias se abate sobre a Venezuela não é senão expressão deste cenário no qual estamos todos diretamente implicados e no qual jogamos nosso futuro comum. É, certamente, uma hora de grandes opções. A antiga política orientada pelo calculo destinado a manter posições no interior de sistemas políticos controlados pelas classes dominantes já não funciona, da mesma forma que a acomodação sempre existente nos processo genuinamente revolucionários tampouco é capaz de gerar as forças e energias necessárias para enfrentar ofensiva a insuspeita do imperialismo estadunidense. O mundo se move sob nossos pés. Não resta outra ação senão a consciência de que devemos aproveitar este movimento e dirigi-lo até o fundo e até o fim em favor das maiorias.
 
Publicado originalmente na Revista do PSOL
 

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