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Panamá – ¿Me puedes hablar en español, por favor?

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Por Maicon Claudio da Silva em 10 de março de 2025

Panamá – ¿Me puedes hablar en español, por favor?

A recente viagem que fiz a Cuba incluía uma conexão no Panamá. Nunca havia estado lá, e tampouco sabia muita coisa sobre o país, embora eu já esteja há mais de uma década no caminho dos estudos latino-americanos. De fato, no Brasil é comum certa prepotência nas análises sobre a América Latina. É como se saber um pouco sobre os maiores países da região garantisse automaticamente o poder de versar sobre as histórias particulares dos mais de vinte países que compõem Nuestra América. Aliás, frequentemente as “análises” brasileiras sobre a América Latina não passam de uma “extensão” das análises sobre o Brasil para os demais países da região.

Assim, aproveitando a conexão, decidi ficar por dois dias na Cidade do Panamá. E com intenção de usufruir melhor da viagem, tratei de estudar minimamente a história panamenha. Antes de viajar li dois livros que são essenciais para entender o país no século XX: “Mi General Torrijos” e “La invasión de Panamá”, ambos de José de Jesús Martínez. “Chuchú” Martínez, como era conhecido, foi poeta, dramaturgo, filósofo, piloto de avião, matemático e ex-assessor do General Omar Torrijos, presidente do Panamá de 1968 a 1981.

Ainda que escritos em momentos históricos bem distintos, de certo modo os dois livros se complementam. Se em “Mi General Torrijos”, publicado em 1987, podemos compreender – e até mesmo nos afeiçoarmos – a figura de Omar Torrijos, responsável pela conquista do acordo de nacionalização do Canal do Panamá, pelo asilo a tantos perseguidos pelas ditaduras militares da América do Sul, e também pelo auxílio a movimentos revolucionários centroamericanos, como o nicaraguense, em “La invasión de Panamá”, de 1991, encontramos um texto escrito às pressas, nos meses que se seguiram à invasão dos Estados Unidos ao Panamá, em 20 de Dezembro de 1989, que traz um profundo pessimismo diante não só da invasão e do bombardeio yankee, como também da atuação subserviente da oligarquia e de setores de classe média panamenhos, que desejaram profundamente a invasão. Foi, portanto, com esse panorama histórico em mente, que viajei ao Panamá.

Mas, já na saída do aeroporto tive a prova de que na América Latina nem sempre a História é passado, muito pelo contrário. Isto porque as margens das rodovias e avenidas que levam até o Casco Antiguo da cidade estavam repletas de bandeirinhas do Panamá. Me lembrei que alguns dias antes, o país fora escolhido como o primeiro destino de viagem ao exterior pelo Secretário de Estado de Donald Trump, Marco Rubio. Trump, como se sabe, tem ameaçado retomar o controle estadunidense sobre o Canal do Panamá. E imediatamente imaginei que tantas bandeiras panamenhas provavelmente foram uma tentativa do atual presidente do Panamá, o liberal de direita José Raúl Mulino, de emular certo nacionalismo. Mas acho que a avaliação mais atinada sobre o episódio das bandeiras eu recebi de um motorista de carros de aplicativo. Perguntei a ele se elas estavam nas ruas e praças em função da visita de Marco Rubio. Ele riu, me respondeu que sim, e disse que elas já haviam se tornado um verdadeiro “meme” nacional. Os panamenhos as chamavam de “bandeiras à prova de balas do presidente”. A piada traz, pela ironia, uma avaliação correta. Não existe nacionalismo a meias, ou nacionalismo cosmético. Só existe nacionalismo de fato, onde a defesa da soberania nacional é articulada inclusive do ponto de vista do uso da força. Não ao acaso, o maior trunfo do General Torrijos nas negociações pela soberania do Canal foi justamente a ameaça de destruí-lo. Não uma ameaça retórica, mas sim uma ameaça fundada em condições objetivas de realização.

O nacionalismo “cosmético” do atual presidente panamenho Raúl Mulino, mais do que buscar garantir a soberania sobre o Canal, trata de assegurar minimamente alguma popularidade entre os eleitores. Afinal, a história do Panamá é em grande medida a história do Canal do Panamá, e pelo menos entre 1968 e 1999 – quando o canal finalmente passou para as mãos panamenhas – ela foi a história da luta pela soberania do Canal.

Apesar disso, a história panamenha não é marcada apenas pela luta pela soberania do canal. Em “Mi General Torrijos”, Chuchú Martínez recorda que, por sua condição geográfica e histórica, o Panamá sempre foi um país de serviços. De fato, desde o período colonial o istmo panamenho já se configurava em uma importante rota de comércio entre o Atlântico e o Pacífico, o que inclusive foi objeto da cobiça e ataque de piratas ingleses. A independência do país em 1903 e a construção do Canal interoceânico (inaugurado em 1914), só vieram a acentuar essa característica. A vida panamenha girava em torno do canal e a economia se constituía basicamente de comércios e serviços destinados a atender o enorme contingente de estadunidenses que atuavam no Canal. Ao ponto de a moeda panamenha, o Balboa, ser até hoje atrelada ao dólar, não possuindo cédulas próprias. Essa dualidade na história panamenha, entre a defesa da soberania e o caráter servil da economia e sociedade, segue até hoje, com o adendo de que desde a invasão estadunidense em 1989, a economia panamenha se tornou cada vez mais atrelada ao setor de serviços. Transformado em paraíso fiscal, em terra de cassinos, e destino turístico de estadunidenses, o Panamá se “agringalhou”, como diria Nildo Ouriques.

Um episódio ocorrido na viagem, me fez refletir ainda mais sobre esse contexto. Na minha última noite na Cidade do Panamá, decidi ir a um restaurante de comidas típicas panamenhas, pois queria provar a culinária do país. Um garçom veio me atender. Com feições indígenas marcantes, me chamou de “Sir”. Falei com ele em espanhol, perguntando alguma informação sobre o cardápio. Respondeu-me em inglês. Falei de novo em espanhol mais alguma coisa sobre o cardápio. Ele me respondeu novamente em inglês. Olhei para ele e disse “¿Me puedes hablar en español, por favor?”. Ele, envergonhado, me falou finalmente em espanhol. Fiquei me questionando sobre aquela atitude. Eu já falo espanhol há mais de 10 anos, portanto, a decisão dele de falar em inglês comigo não guardava relação com algum tipo de deficiência da minha fluência na língua de Cervantes. A conclusão a que cheguei é que ele claramente percebeu pelo sotaque ou pela aparência que eu era um estrangeiro, e achou que falando em inglês estaria me agradando. Me lembrei dos livros de Chuchú Martínez, de como ele afirmava que essa economia de serviços panamenha gerava “uma mentalidade de servos, de “waiters” (garçons em inglês)”, como, segundo ele, dizia o General Torrijos.

Torrijos morreu em 1981, em um “acidente aéreo” até hoje sem explicações claras. O projeto de Torrijos foi derrotado definitivamente em 1989, com a invasão estadunidense ao Panamá. Desde então é essa mentalidade de servos, de “waiters”, que tem prevalecido no país. Espero que a recente pressão dos Estados Unidos e as ameaças de Donald Trump reacendam no Panamá a luta por sua soberania, e que as bandeiras do país deixem de virar “meme” para se tornarem símbolos de um combate concreto, em que o “nacionalismo cosmético” dê passagem ao “nacionalismo revolucionário”.

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