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200 anos de Nuestra América

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Por IELA em 07 de dezembro de 2010

200 anos de Nuestra América
Por Raquel Moysés – jornalista
07.12.2010 – O legado do pensamento de José Martí, é precioso para indagar sobre os rumos que seguem as nações latino-americanas passados 200 anos das lutas independentistas celebradas, neste ano de 2010,  em vários países de Nossa América,   com um amplo programa de atividades. No Brasil, que reservou à data histórica citações irrelevantes, nem mesmo incluindo os festejos no  calendário de efemérides, as afirmações do poeta, escritor e jornalista  José Martí fazem pensar sobre o papel da universidade e seu dever de refletir sobre o passado e fazer a crítica do presente. Martí,  que  morreu lutando pela libertação de sua Cuba, última das colônias espanholas a se liberar do jugo espanhol,  afirmava, em seu vigoroso  “Nuestra América”, de 1891,  que a universidade europeia deve dar lugar à universidade americana: “ A história da América, dos incas para cá, deve ser ensinada minuciosamente, mesmo que não se ensine a dos arcontes da Grécia. A nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa. Nos é mais necessária.”
Não é assim no Brasil, onde as escolas e as  universidades passaram praticamente  ao largo  das discussões sobre as lutas independentistas que  desembocaram  na criação dos estados de “Nossa América”,  como Martí se referia  à América Latina. Raros foram os debates e, mais uma vez, a história de América deixou de ser ensinada minuciosamente, como recomendava o pensador cubano. Na UFSC, o Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/CSE/UFSC) contribuiu para quebrar o  silêncio  acadêmico e  realizou o Seminário 200 anos de Independências na América Latina.   O evento contou  com o apoio do Centro de Filosofia e Ciências Humanas,  Centro Sócio-Econômico, Programa de Pós-graduação em História, Núcleo de Estudos de História da América Latina (NEHAL) e Editora Insular, que deve lançar, no início de 2011, o livro “História da Nação Latino-americana”, de Jorge Abelardo Ramos.
Comemorar o quê?
A primeira conferência durante o seminário foi de Horacio Crespo, da Universidad Autónoma del Estado de Morelos, México. O professor, também do  Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional de San Martín (CEL-UNSAM), Argentina,  falou sobre “A independência hispano-americana no ciclo das revoluções modernas”.  Outro conferencista,  Andrés Kozel, professor da pós-graduação e da graduação em Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM,  que  também atua no CEL – UNSAM,  expôs o tema  “Considerações sobre a tese da independência como balcanização”.
O seminário concluiu com  uma mesa redonda com a participação de   Crespo,  Kozel e Waldir Rampinelli, presidente do IELA. As discussões retomaram aspectos das polêmicas que envolvem a passagem dessa data e dos significados das lutas independentistas que, há dois séculos, com surpreendente simultaneidade,  espraiaram-se do México, no vice-reino da Nova Espanha, a Buenos Aires, no vice-reino do Rio da Prata.
Durante os debates,  onferencistas e participantes   dialogaram sobre uma das perguntas mais presentes nas palestras e comentários:   Há o que comemorar nesses 200 anos de independência das colônias?  Várias intervenções foram no sentido de que há o que celebrar, principalmente o fortalecimento das lutas  dos povos originários que se levantamem batalhas  pela autonomia, o direito à terra, à educação, à saúde, às próprias línguas e cultura ancestrais.
Tais observações faziam referência aos povos da América Profunda, que fincam raízes em  civilizações milenares e  configuram nações reais de Nuestra América,  a despeito da dizimação, da discriminação   e da violência a que foram (e são)  submetidos. Já as críticas principais ficaram centradas na constatação de que as mudanças, nesses dois séculos, são ainda insuficientes,  confirmando a atualidade das advertências dos pensadores  José Martí e  José Carlos Mariátegui,  de que a colônia continuou a viver na república e de que os privilégios da república seguiram sendo os mesmos da colônia.
Expressivas lutas populares
Waldir Rampinelli lembrou  que,   enquanto em toda América hispânica muitos eventos marcaram  os 200 anos das independências das colônias, o  Brasil  observou a distância a passagem dessa data. Ao contrário, por exemplo, da vizinha Argentina, onde, até nas livrarias,  ganharam  lugar de destaque  os   livros que abordam a temática sob variados enfoques teóricos e em distintos campos disciplinares.
Ao indagar sobre a pertinência de festejar as lutas independentistas, o historiador   lembrou que  colônia continuou a viver na República, como advertira   Martí, mas também é evidente que,  na América de hoje, assomam  nacionalismos revolucionários e expressivas lutas populares. Portanto, enfatizou,  enquanto o foco oficial de alguns governos é o de festejar acriticamente, os povos da América Profunda sabem que é preciso preparar a resistência e seguir em luta.  
O presidente do IELA também destacou a importância que teve, para as lutas independentista,  a  primeira “república de escravos” do mundo,   o Haiti. No entanto, a nação haitiana  completou  200 anos de independência em 2004,  sem ter a memória de suas  lutas motivado  quaisquer celebrações.   Pouco se menciona a importância que teve a nação haitiana para as lutas independentistas, pois  a experiência bem-sucedida de uma revolução de escravos  teve profunda influência na América Latina,  inclusive no Brasil. Naquele período histórico, o fenômeno do haitianismo amedrontava as elites, as quais  temiam que o  exemplo fosse seguido. Quando exilado, o próprio  libertador Simón Bolívar foi acolhido  no Haiti, tendo recebido, do então presidente  Alexandre Pétion,  conselhos,  proteção, ajuda financeira,  armas e até mesmo  uma prensa tipográfica.
Dever da crítica
Horacio Crespo destacou, em sua conferência, que  a universidade tem a obrigação de fazer reflexões críticas, fugindo de visões superficiais e de interpretações conservadoras sobre os acontecimentos. Na sua análise, o professor  da  Universidad Autónoma de Morelos segue a linha de pensamento de autores que circunscrevem  a independência hispano-americana no ciclo das revoluções modernas, distanciando-se de teses que  veem o processo independentista na América como uma grande herança das idéias liberais e como  expressão, portanto,  do  triunfo do liberalismo.  
Crespo faz esse debate a partir de uma visão de inspiração marxista crítica, que atribui  como acontecimento central para as independências  a construção de novos estados  que emergiram no ciclo das revoluções modernas. A partir dessa perspectiva, as lutas independentistas são vistas dentro do processo de  rebelião contra o estado colonial e se circunscrevem no conjunto dos processos gigantescos de reação contra o despotismo centralizador e modernizador do absolutismo borbônico.
O professor esclarece que há cenários diferenciados que precisam ser discutidos quando se analisa as independências na América hispânica. Crespo lembra que se  tratou de  um processo muito desigual, de norte a sul, e que se expressou de modos distintos nas lutas anti-coloniais, na revolução triunfante  dos escravos haitianos, nas rebeliões indígenas.  Um elemento importante a ser considerado foi o modo como se manifestou o movimento dos camponeses  indígenas,   que surpreendeu as  classes crioulas,  envolvidas nas lutas independentistas, mas ainda muito comprometidas com os antigos regimes  coloniais.
Crespo destacou ainda o  papel fundamental das forças dos “terratenientes”, os proprietários de terras,  os  latifundiários. Na  linha de interpretação que segue o professor, o processo das independências na América não teria sido  hegemonizado pelas classes  crioulas, mas pelas classes conservadoras de proprietários de terras, que inclusive controlaram o poder nas novas repúblicas que emergiram das lutas. Para o professor,  a ordem conservadora que persiste nas  repúblicas latino-americanas se deve ao modo como se desenhou  a coalizão para o processo de independências, subordinado em grande medida ao poder dos  proprietários de terras. E, como analisa Crespo, essa condição  não foi passageira, pois a ordem que se consolidou e perdura  no cenário latino-americano  é ainda dominada  por esses   setores mais conservadores.   
O professor também trouxe para o debate a  tese de que  teria  fracassado, na  América,  a construção de estados verdadeiramente modernos. Nas  diferentes interpretações  historiográficas,   há  os que dizem, como Crespo,  que a América Latina é fruto de uma modernidade incompleta, postergada.  Uma modernidade que, porém,  já revelou-se um malogro na  parte do mundo em que   teria se completado.
Diante desse cenário de fracasso, Horacio Crespo é dos que pensam que o caminho talvez esteja em buscar  outro acesso à modernidade, que não essa vigente, baseada em uma ordem não sustentável e, portanto,  já condenada. E para isso, diz o  historiador, é também útil debruçar-se sobre a história e olhar o passado.  Ele adverte sobre a necessidade de não se ficar aprisionados  à memória de um panteão de heróis, mas de se pensar criticamente e propor outros cenários em que a vida possa se desenrolar de outro modo que não este modelo que se revela esgotado.  A procura por essa outra modernidade, para ele, impõe novas tarefas e a capacidade de pensar práticas inovadoras que tragam formulações importantes para fazer assomar  um  tempo novo.
Na busca dessa outra realidade, para ele hoje “irrealizável”,  Crespo pensa que  é necessário evitar o  cenário catastrófico do “todos contra todos`”. A razão de seu pessimismo está no fato de não ver  no horizonte atores novos, com força para transpor as dificuldades e fazer as mudanças necessárias. Além do mais porque,  assinala o pensador, a história não é uma elocubração, é uma realidade.
Esperança de um final feliz
O professor Andrés Kozel iniciou  sua conferência destacando que as discussões sobre o tema das independências  não devem se limitar ao atual contexto de celebrações dos 200 anos.  Ao apresentar sua  contribuição para a análise da tese das independências como processo de balcanização, a partir da obra do historiador argentino Jorge Abelardo Ramos,  Kozel lembrou que  as interpretações historiográficas são plenas de pontos de controvérsia e zonas de penumbra,  e assinalou  que, na perspectiva da unidade latino- americana,  a noção de balcanização, discutida na obra de Ramos,  é definida como a  história de um fracasso.
Tal tese, como explica Kozel,  remete a várias  perguntas,  entre elas  a que indaga se de fato existiria uma nação latino-americana e  se, nela,  seria possível incluir o Brasil. Na interpretação de Ramos, a história do único país de língua portuguesa da América é apresentada como  exemplo de uma “não balcanização” ou de uma “balcanização evitada”.  
Kozel, que é profesor em  Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM,   expõe algumas pistas que orientam suas pesquisas sobre a apropriação latino-americana da idéia de balcanização.  A noção, como explica,  apareceu nas primeiras décadas do século XX, como referência aos  processos acontecidos  na península balcânica no contexto da decadência e dissolução do império otomano, imagem que depois foi usada para se referir a outros processos histórico-sociais.
Ao falar  sobre essa ideia como sinônimo de fragmentação, ele também cita o intelectual argentino Manuel Ugarte, que, sem usar a palabra, clamava para a necessidade de os países da  “pátria grande” unirem-se para enfrentar o “perigo ianque”. A ideia ainda aparece, mesmo sem o uso da  palavra específica,  em uma extensa literatura histórica em que, de  modo geral,  a tese da balcanização  assume uma conotação predominantemente melancólico-nostálgica,  assinalando  os prejuízos da perda da sonhada  unidade.
Todavia, assinala Kozel,  a  ideia  de balcanização no contexto latino-americano   emerge de modo especialmete vigoroso na obra do intelectual argentino Jorge Abelardo Ramos (1921-1994), autor de “História da nação latino-americana”, um dos livros mais influentes da  geração do historiador.  De acordo com Kozel, o intelectual que, em  geral,   escreveu suas obras historiográficas sem se ater a um trabalho sistemático sobre fontes e documentos primários, apresenta uma proposta interpretativa inovadora da história, fundada na apropriação do legado marxista-leninista-trotskista e na sua veemente crítica à  obra historiográfica  de Bartolomé Mitre.     Segundo supõe o conferencista, Ramos chegou à formulação de sua versão sobre a tese da balcanização latino-americana exatamente a partir do enfoque anti-mitrista que utiliza para dar conta de explicar o processo rioplatense.
Kozel observa que no livro “História da Nação Latino-americana” Ramos faz uma advertência fulminante ao  afirmar  que ofereceria ao leitor, na verdade,  não  uma História da América Latina, mas apenas uma crônica das lutas que o povo fez para reunir-se em uma nação.   Trata-se, portanto, diz o conferencista, da história de um fracasso, pois a América Latina naquele momento da publicação do livro, ( e ainda hoje), não conseguiu unificar-se como nação. A história de Ramos, porém, não traz uma visão totalmente pessimista, já que o seu relato aponta, no final,  um caminho de esperança que recupera a promessa bolivariana  a partir do horizonte estratégico de uma praxis transformadora.
Kozel esclarece que,   para Ramos,  o drama latino-americano está no fato de  a revolução de independência não ter se traduzido em unidade nacional do continente.  “A distinção que o historiador  faz entre estado e nação está baseada na constatação de que a América Latina se apresenta como duas dezenas de estados balcanizados,  edificados sobre uma ideia truncada de nação, já que esta permaneceu apenas em estado potencial.”
O historiador argentino afirma que  o fracasso do projeto unificador pode ser explicado pela desproporção entre a superestrutura ideológico-jurídica pensada por Simón Bolívar e a infraestrutura econômico-social escravista e semi-servil, controlada por latifundiários, donos de escravos e exportadores de matérias-primas, isolados entre si e vinculados em separado com o mercado mundial.  Localistas e ligados aos interesses das potências, especialmente a Inglaterra, esses setores buscavam estabelecer tarifas e regimes políticos para manter seus privilégios, contribuindo assim decisivamente para o processo de fragmentação da unidade. 
Ramos analisa, em sua obra, os motivos que para ele explicam a   existência dessas  nações inacabadas, que não são feudais porque produzem para o mercado mundial, mas também não são capitalistas, porque sua economia se baseia em um regime servil e escravagista. Além disso, na interpretação do historiador,   as classes dominantes à época da independência não são feudais, pois fazem parte de um capitalismo mercantil funcional à acumulação dos centros verdadeiramente capitalistas, mas também não são capitalistas, pois conservam a psicologia feudal. A posição de Ramos, portanto,   é bastante clara  quando ele afirma  que o capitalismo nacional ainda não triunfou plenamente nessa parte do mundo. É por isso, explica Kozel, que o intelectual e político argentino  apoiou, a seu tempo,  movimentos nacional-populares de orientação industrializadora.
Kozel também observa que o movimento de independência, para  Ramos, assumira um caráter de luta de classes logo no início, já que as classes crioulas se sentiam sufucadas pelo regime espanhol, enquanto as “castas infames” incubavam dois tipos de ódio: contra os crioulos ricos e também contra os espanhóis que os tiranizavam.  Nesse viés interpretativo, Ramos assinala que a  invasão napoleônica apenas opera como catalizador,  já que,  no início,  os crioulos seguiram com grande interesse a luta na Espanha, pois disso também dependeria a unidade ou a separação das colônias. Aos poucos, contudo, os americanos se convenceriam de que mesmo com o triunfo do liberalismo espanhol não se daria  à América igualdade plena,  a partir da idéia de uma nação comum hispano-americana.
Um dos pontos principais da abordagem de Ramos, lembra Kozel,  é de que a revolução nacional não poderia acontecer sem atacar  profundamente a desigual estrutura social latino-americana.  Na sua interpretação, as reivindicações só poderiam se viabilizar  se fossem carregadas de conteúdo social, e daí sua explicação para as primeiras derrotas de Bolívar na fase inicial das lutas, já que ele  se manteve, no principio,  indiferente às “castas infames”. O êxito só foi possível  depois  que Bolívar, ouvindo os conselhos do presidente do Haiti, Petión, agregou às forças  independentistas uma sólida base social, formada por  numerosos escravos e os  “llaneros” (camponeses indígenas).
Kozel apresentou ainda aspectos relacionados à  forma como Ramos interpreta  o casos específico do Brasil, que seria, para ele,  um exemplo de “balcanização evitada”, em grande parte por causa da submissão e servilismo da corte imperial portuguesa, que vivia à sombra do império britânico. Assim, segundo Ramos, o próprio Brasil se torna uma ponta de lança britânica contra o resto da nação latino-americana, a qual também era empurrada pelo mesmo amo imperial contra o Brasil. É a partir dessa ótica que o historiador  explica porque os latino-americanos foram excluídos da intensa vida história brasileira, desconhecendo seus heróis, conflitos, seus pensadores e suas revoluções, que permaneceram enclausurados atrás de suas imensas fronteiras.   
Ao concluir sua conferência,  Kozel assinala que há, todavia,  na obra de Ramos, uma face iluminada pela esperança e  um forte impulso que gravita na direção de um final feliz. Embora apresente o processo independentista  como o espetáculo tragicômico de uma nação despedaçada, que se balcaniza e se organiza em estados nacionais, o historiador argentino  preconiza a possibilidade de reconstrução e reunificação da história a partir de um ângulo novo de um passado comum.
E é na própria  tese da balcanização que se aninha tal  esperança. Porque, como avalia Kozel, dizer que o que devia se produzir – a unidade latino-americana – não aconteceu porque necessitava de bases efetivas, não é muito diferente de dizer que não aconteceu porque não havia condições para que acontecesse naquele momento.  Assim, porque que então julgar como  fracasso o que, por limites estruturais,  não poderia mesmo acontecer?
Ramos aparece, na sua obra, portanto,  como um nostálgico do sonho de  Bolívar e dos projetos confederativos que não se realizaram porque eram ideias acertadas, mas quiméricos, uma vez que eram  inviáveis para as condições dadas naquele momento histórico. O horizonte apontado por Ramos também traz uma contradição  para os leitores dos dias de hoje, uma vez que a sua utopia latino-americanista acaba indo na direção do desenvolvimento modernizador, conduzido por um poder forte e centralizado, capaz de dar conta das tarefas que a frágil ou inexistente burguesia seria incapaz de realizar.   Assim,  a perspectiva da análise de Ramos, como lembra Kozel, certamente provoca grandes e importantes discussões para quem quer seguir na construção do latino-americanismo como autêntica tradição viva e não como mera retórica.
 

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