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América Latina: Alternativas frente à crise

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Por IELA em 16 de agosto de 2021

América Latina: Alternativas frente à crise

 

Parte de mural de Diego Rivera

Parte 1
“Men at some time are masters of their fates”.W. Shakespeare, Julius Caesar.
I – Ciclos económicos: bem comportados ou “perversos”II – As mudanças exigidas por uma crise estruturalIII – O caso da América LatinaIV – Rotas que preservam o regime capitalistaV – A rota demo-socialistaI – Ciclos económicos: bem comportados ou “perversos”
O capitalismo, ao longo do seu desenvolvimento histórico, juntamente a um crescimento significativo (do PIB por habitante e da produtividade do trabalho), mostra-nos uma trajectória de oscilações no PIB que se repetem reiteradamente. É o denominado curso cíclico do sistema: aos períodos de expansão sucedem-se fases de recessão económica. Este comportamento cíclico é inerente e específico do regime capitalista: não existiu antes e pode-se prognosticar que depois tão pouco terá lugar. Em suma, trata-se de um fenómeno historicamente delimitado. Logo, se é algo próprio do regime capitalista, devemos também supor que se trata de um fenómeno endogenamente determinado.
No curso do ciclo, em termos grossos podem-se distinguir duas fases e dois momentos. A primeira fase é a do auge cíclico, em que os níveis de actividade económica (Investimento, PIB, ocupação, etc) se expandem. A fase desemboca no ponto de crise no qual cessa o crescimento e abre-se um período de recessão. Esta fase de recessão (ou contracção) implica descidas nos níveis de investimento, do PIB, do emprego, etc. Desemboca num ponto em que a descida se detém e chega-se ao ponto de recuperação. Temos então dois pontos ou momento: o que marca o ponto mais alto ou crise e o que marca o ponto mais baixo (ou recuperação). E duas fases, a de auge e a de recessão. A longitude do ciclo mede-se em termos do tempo que transcorre entre o ponto mais baixo inicial e o ponto mais baixo final. A profundidade conforme os níveis de ascensão ou queda da actividade económica.
O ciclo e as crises que o acompanham como parte essencial, não são uma desgraça. Cumprem uma função vital no desenvolvimento do sistema: são funcionais ao capitalismo. Em que radica a funcionalidade das crises?
Para entender bem este aspecto convém recordar dois aspectos elementares: no capitalismo, a produção subordina-se à lógica do capital e esta é uma lógica de valorização: o famoso D-M-D’ de Marx. Por outras palavras, produz-se para obter lucros, para valorizar o capital (maximizar (D’-D)/D ). Se isto não se verifica, a produção simplesmente paralisa-se e há enormes massas de desempregados e tremendos défices no plano do bem-estar material. Em segundo lugar temos que, durante a fase de auge, vão-se dando certos processos que desembocam numa descida da taxa de lucro. Com isso, o investimento afunda e começam a descer os níveis da actividade económica. Convém sublinhá-lo: a descida da taxa de lucro e a crise que a segue não caem dos céus, são engendradas pelo próprio processo de auge e desenvolvimento anteriores. Em suma: é o auge que engendra a crise. Terceiro, a crise abre o período de recessão e nesta fase desdobram-se processos económicos que, ao fim de certo tempo, recompõem as condições de valorização do capital. E quando isto se verifica, chega-se ao ponto de recuperação, o qual abre uma nova fase de auge económico: os capitalistas encontram novamente motivos para investir e com isso volta-se a expandir a actividade económica. Aqui o ponto a sublinhar seria: é a recessão que engendra o ponto de recuperação, pelo mesmo, um novo auge. Esta é a lógica interna do sistema: um auge que provoca a recessão e uma recessão que provoca um novo auge e assim sucessivamente. Em termos metafóricos poderíamos dizer que a crise é a manifestação ou sinal de que se acumulou demasiado lixo nas tubagens do sistema. E que a recessão é a encarregada de limpar essas tubagens e, assim, de por o sistema em novas condições para funcionar dinamicamente. Por isso se fala de funcionalidade.
Quando a recessão cumpre essas funções de limpeza das tubagens, quando recompõe a taxa de lucro e portanto volta a dinamizar a acumulação e o crescimento, fala-se de um “ciclo bem comportado”. Na maioria dos casos conhecidos, foi o que aconteceu. Mas de vez em quando, no lapso de uns 40-50 anos, tais funções não se cumprem bem. A recessão prolonga-se, a recuperação demora mais do que o habitual e quando se verifica é fraca e anémica. Por exemplo, como já se viu em 2014-15 nos EUA e especialmente na Europa após a grande crise de 2007-09, o boom foi de curta duração e gerou um crescimento baixo e irregular, com um desemprego elevado e a ameaça de uma nova recessão num período de tempo anormalmente curto. Neste caso, pode-se falar de um “ciclo perverso ou malcomportado”.
Por trás de um “ciclo perverso” ou “mal comportado” costumam ocultar-se problemas de ordem maior. Estes têm a ver com uma estrutura – “padrão de acumulação”, “estrutura social da acumulação” ou algo semelhante – que já não funciona, que periclitou como ordenamento sócio-económico favorável à acumulação capitalista. A doença é mais grave e não pode ser curada com o puro recurso de uma recessão clássica. Precisa-se de uma cirurgia maior, que permita a ascensão a um novo padrão de acumulação. No momento, não pensamos num salto a uma sociedade pós-capitalista. O ponto é outro: é o próprio capitalismo, respeitando seus traços mais essenciais, que exige uma mudança de ordem estrutural. Se assim são as coisas, temos que uma crise cíclica também aparece como expressão de uma crise estrutural (isto é, de um determinado padrão de acumulação) do sistema.
Nossa hipótese é que a crise cíclica que começou em 2007 e estendeu-se até 2009 ou um pouco mais é também uma crise de ordem estrutural. Daí a pergunta: quais são as estruturas que se devem eliminar? Quais são as de substituição?
Vale a pena notar que uma crise estrutural abre alguns graus de liberdade, mas – de um modo geral – estes são poucos. Por outras palavras, normalmente não existe uma única via de saída, mas também não existe uma multiplicidade de alternativas. Neste caso, podemos falar de “coerção estrutural da mudança histórica”. Por outras palavras: diga-me o que está a entrar em crise e te direi quais são as saídas possíveis: as saídas não são independentes do que entrou em crise. Por exemplo, se um dos problemas centrais tem sido uma péssima distribuição do rendimento que leva a uma procura efectiva insuficiente, a superação da crise pela repressão salarial (a receita neoclássica habitual) apenas agrava a crise. [1] Este mesmo problema, visto de um ângulo mais geral, confronta-nos com uma noção ou hipótese mais abstracta: a mudança social também está sujeita a leis objectivas, e se isto não se cumprir, nenhuma teoria da mudança social poderia ser construída. O que, entre outras coisas, significa também que as estruturas existentes, incluindo as que devem fenecer, abrem certas possibilidades à mudança ao passo que negam outras.
II – As mudanças exigidas por uma crise estrutural
Uma crise de ordem estrutural exige mudanças de ordem maior que afectam não só a potência mundial de onde se desdobra esta crise. As mudanças costumam abarcar o conjunto da economia mundial.
Se olharmos para a experiência histórica conhecida e apontarmos apenas para o núcleo, podemos assinalar as seguintes mutações:
1) Mudanças no padrão de acumulação em vigor na potência mundial dominante.2) Mudanças na correlação de forças existente entre as grandes potências imperiais.3) Mudanças no tipo de nexos que se estabelecem entre o centro e a periferia do sistema. Se se quiser, costuma-se assistir a uma redefinição dos termos de dominação e dependência que tipificam a economia mundial.4) Mudanças no padrão de acumulação (ou nos padrões) em vigor nos países periféricos. No nosso caso, importa a situação da América Latina.
Nestas notas, interessa-nos examinar o ponto 4. Mas antes, e para melhor entender este mesmo aspecto, precisamos fazer uma breve menção às outras dimensões da mudança.
Tomemos o caso dos EUA, a grande potência imperial e dominante. O reordenamento estrutural com que se depara como desafio exige-lhe: a) reduzir significativamente sua taxa actual de mais-valia e, portanto, melhorar drasticamente a distribuição do rendimento em favor dos assalariados. O que, de passagem, também facilitar reduzir a dívida das famílias sem comprimir seus níveis de vida; b) dinamizar fortemente o investimento privado: se actualmente absorve apenas 7% do excedente total, deveria passar a uns 25% ou mais. Trata-se de investimento produtivo, o que supõe que na esfera produtiva se eleve a rentabilidade. Além disso, que na esfera financeira e improdutiva a rentabilidade seja castigada. Ou seja, tem que se dar uma forte transferência da mais-valia apropriada em favor do capital produtivo e contra o do financeiro-especulatilvo; c) tal dinamização da acumulação exige uma oferta tecnológica, de inovações de ordem maior com grande capacidade de arrastamento (as tecnologia “limpas” e poupadoras de energia são um alvo claro e promissor). A qual é difícil de conseguir sem um forte apoio e gasto estatal (directo ou indirecto, via subsídios) em favor da educação, da ciência e da tecnologia (I&D); d) deve-se melhorar drasticamente as contas externasdo país. Mais precisamente, devem-se dinamizar fortemente as exportações e regular o crescimento das importações. A meta mínima deveria ser a de uma balança comercial equilibrada. Ou então, como é próprio de toda potência imperial exportadora líquida de capitais, que tal balança voltasse a ser superavitária. Portanto, desempenhar um papel importante como factor de realização da mais-valia produzida (no sentido Kalecki-Luxemburgo); e) em geral, tais orientações exigem uma activa intervenção estatal em favor da acumulação e do crescimento. O que, certamente, obriga a por de lado as concepções neoliberais (R. Lucas et al) do tipo “toda política económica é não só ineficiente; também impotente”; f) como factor chave de mudança, exige-se uma alteração substancial do bloco de poder. Neste, as posições de comando e hegemónicas devem passar da oligarquia financeira-especulativa para o grande capital produtivo. Neste contexto devemos advertir: boa parte do programa de D. Trump assumia estas exigência, com uma óptica que esgrimia um nacionalismo com alguns ingredientes fascistóides. [2] Mas Trump teve uma oposição implacável – proveniente do “deep state” – e não pôde reeleger-se. [3]
Sobre a segunda dimensão, temos um dado óbvio: com a crise, o mundo unipolar de Bush acabou. Muito provavelmente, os EUA conservarão um papel importante, mas agora e com não pouca boa sorte, como “potência equivalente” ou já em processo de decadência e de ser superada pela China e outras potências emergentes. Este reordenamento económico e político, no âmbito da crise, deveria provocar conflitos inter-imperiais agudos e maiores. Trata-se de redistribuir esferas de influência e, como apontava Lenine (num livro recente sobre a China, também Kissinger), estes deslocamentos costumam exigir uma coerção de tipo militar (guerras). E as guerras, no mundo actual, serão feitas com armas nucleares, que funcionarão com mísseis de idas e de voltas.
Quanto às relações centro-periferia basta dizer que o carácter da crise e dos reordenamentos que coloca abre pelo menos a possibilidade de obter, por parte da América Latina (em relação aos Estados Unidos, que para o nosso hemisfério funciona como centro imperial), uma “dependência negociada” que melhore – para a região – os termos da relação. Naturalmente, que esta possibilidade seja aproveitada ou não e em que grau depende da situação interna de cada país e/ou bloco regional, das forças sociais que assumam o poder do Estado.
III – O caso da América Latina
Retomemos agora a quarta dimensão da mudança estrutural, concentrando nossa atenção na América Latina.
Primeiro há que identificar o que aqui, na região, entra em crise. A resposta é clara: a crise mundial na região deve exprimir-se como crise terminal do padrão neoliberal. Precisemos o que isto significa e o que não significa.
Crise terminal refere-se à dimensão económica do modelo neoliberal e entendemo-la como incapacidade do modelo para gerar acumulação e crescimento. Além disso, que as possíveis funções histórias que cumpriu – que basicamente giram em torno do aumento da taxa de exploração e da maior sujeição ao capital internacional financeiro – já foram satisfeitas. Mais ainda, que nelas insistir torna-se danoso para o próprio sistema: hoje, a dinâmica do capital não pode ser assente no ideário neoliberal.
Isto não significa necessariamente que haja uma substituição mais ou menos imediata da ordem neoliberal. Para o caso, recordemos o ABC: a economia pode pressionar pela mudança, mas não a decide. A mudança, dada a pressão da economia, torna-se uma questão de variáveis ideológicas e políticas. Se estas não ajudarem a impulsionar a mudança, tal não acontecerá.
Tendo estabelecido a crise terminal do modelo neoliberal, devemos agora examinar as rotas possíveis para fora dele, o seu conteúdo e as suas possibilidades históricas. Começamos por enumerar: 1) a rota que preserva o modelo económico neoliberal ou a rota do pântano; 2) a rota industrializante de natureza autoritária-ditatorial, com um provável conteúdo fascistóide; 3) a rota de i,a industrialização de natureza nacionalista e democrático-burguesa; 4) a industrialização de natureza democrático-popular e socialista. A rota (1) assume a continuação do modelo neoliberal. As rotas (2) e (3) preservam a matriz capitalista, mas implicam modalidades diferentes de capitalismo (entre si e do modo neoliberal). Em ambas cessa o papel hegemónico do capital financeiro especulativo. O caminho (2) não altera substancialmente a relação excedente-produto do modelo neoliberal, mas eleva fortemente a acumulação. A rota (3) reduz a taxa de mais-valia e tenta aumentar (com resultados incertos) a taxa de acumulação. A rota (4) visa ir para além do capitalismo, deveria melhorar fortemente a distribuição do rendimento e também os ritmos de crescimento. [4] 
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[1] Sobre as causas da crise, tema que aqui não abordamos, ver José Valenzuela Feijóo, “La gran crisis del capital. Trasfondo estructural e impacto en México”. UAM, México, 2009. Neste texto recusa-se a ideia de uma crise puramente financeira e argumenta-se que há um fundo real e estrutural que está na base dos mesmos problemas financeiros.[2] Uma análise do programa de Trump, em J. Valenzuela Feijóo, “¿De la crisis neoliberal al nacionalismo fascistoide?”, em especial capítulos I, II, III y IX. UAM-I, Ciudad de México, 2017[3] E tudo parece indicar que nas eleições de 2020 sofreu de uma fraude nada pequena.[4] Uma advertência elementar deve ser feita: a nossa discussão permanecerá a um nível bastante geral. Pela mesma razão, se passarmos à análise desta ou daquela realidade concreta (país ou grupo de países), sempre se encontrarão nuances, traços singulares, etc. Ou seja, será preciso ajustar e modificar nestes ou naqueles pontos a análise do caso.
Parte 2
IV – Rotas que preservam o regime capitalista
A rota do pântano.
Trata-se de uma rota que implica a preservação do modelo neoliberal. Por isso, no fundo não se trata de uma rota pois não abre qualquer saída à crise. Uma situação deste tipo não é uma novidade histórica e verifica-se quando “os de cima já não podem” (condição de toda grande mudança) e além disso “os de baixo tão pouco podem” (pelo que a mudança não emerge). Neste caso, a sociedade cai numa espécie de pântano histórico, de brejo putrefacto no qual a ordem institucional e moral vai-se decompondo cada vez mais e não aparecem actores sociais (i.e., classes e/ou fracções de classe) com a capacidade de visão e de organização para impulsionar o processo de mudança necessário. Por isso, não existe um projecto de país, nacional, capaz de mobilizar a sociedade. De facto, a visão desta, como totalidade orgânica, desaparece da consciência social e política fazendo parecer que só existe o individual, o particular, o parcial, quotidiano e de curto prazo: opera o velho lema do “eu me preocupo comigo e dos demais que Deus se encarregue”. Além disso, faço-o com regras de conduta ad-hoc em que tudo é permitido: a falta de lealdade, a mentira, o roubo, o crime. A longo prazo, uma situação deste tipo não se mantém, mas enquanto isso podem passar-se décadas de história perdida. Na região, muito provavelmente no México, especialmente sob os governos de Salinas, Fox, Calderón e Peña Nieto, assiste-se a uma situação mais ou menos semelhante. [5]
A rota de uma industrialização autoritária e de corte fascistóide
O ponto mereceria um exame muito minucioso. Mas, por razões espaço, limitar-nos-emos a um esboço simples e muito taquigráfico. Como quadro geral de referência supomos um processo de estancamento económico, de parasitismo (só o capital especulativo é premiado), de miséria, desemprego e marginalização crescentes. Ou seja, o que tipicamente resulta do modelo neoliberal.
Também supomos: 1) Um desprestígio crescente dos partidos políticos tradicionais e dos seus dirigentes. Em geral, grande descrédito da política: “a política é suja, própria de desonestos, de mentirosos e ladrões, fuja dela”. Algo que os media televisivos se encarregam de difundir e propagandear amplamente. 2) Desprestígio e decomposição de partidos de esquerda. Estes esquecem seus ideais anti-capitalistas, subordinam-se ao sistema e operam como verdadeiros criados do grande capital. 3) A burguesia, especialmente a grande, mostra-se como politicamente fraca, incapaz e impotente para impulsionar um projecto de renovação nacional. 4) A dependência e consequente penetração imperial atingem níveis extremos no económico e ideológico. 5) Estende-se cada vez mais um descontentamento generalizado. Mas como este mal-estar e raiva não se processam em termos de consciência de classe (a consciência política dos segmentos médios e populares é praticamente nula), o descontentamento só consegue buscar um novo personagem, necessariamente providencial.
Num contexto como o indicado, dão-se condições para a emergência de líderes “providenciais”, “milagroso”, com um alto poder carismático. Estes podem conseguir um apoio maciço de boa parte das camadas urbanas marginalizada pelo sistema, os “ambulantes”, o lumpen, os pequenos comerciantes, boa parte das novas camadas médias, etc. Em vez de falarem contra o capitalismo, na América Latina tais líderes dirigiriam os seus ataques “contra os ricos e a favor dos pobres”. Certamente dariam ênfase ao “patriotismo e à defesa dos interesses nacionais”. Além disso, na necessidade de uma autoridade firme e repressiva. Esta linguagem é mais compreensível para as camadas atrasadas e despolitizadas da cidade e do campo, além de evitar o possível perigo de um discurso que fale de classes sociais, capitalismo explorador e mesmo socialismo nacionalista, no estilo do que pregavam Mussolini e Hitler.
Se a isto acrescentarmos que a partir da sua impotência política a burguesia pode decidir “abdicar” a favor de tais líderes providenciais, já temos aí todos os ingredientes para a rota autoritária. A qual operaria com alguns elementos do “bonapartismo” descrito por Marx e, sobretudo, com os traços que tipificaram as experiências de corte fascista (na Europa e, parcialmente, na Argentina de Perón). [6] O processo também poderia operar sob direcção militar sem grande apoio popular. Ou seja, seriam militares que implantariam uma ditadura desenvolvimentista.
Em tal contexto, dever-se-ia perfilar uma estratégia económica que: a) impulsionasse uma industrialização muito acelerada com um alto crescimento ocupacional (como nos tempos do Brasil de Kubitschek e dos militares que derrubaram Goulart); b) o processo também iria associado a um férreo controle dos salários e, em geral, da força de trabalho assalariada. Em suma, ditadura contra o trabalho; c) pela distribuição do rendimento que se delineia, o crescimento industrial deve obrigatoriamente apontar para o desenvolvimento da indústria pesada (o Departamento I de Marx) e para as exportações; d) os pontos anteriores podem ser recobertos com uma linguagem “atraente”: transformar o país (ex. Brasil) em “grande potência mundial”. [7] Do ponto de vista económico esta rota também se pode denominar como “caminho à Tugan-Baranovsky”, em recordação das teorias do grande economista russo. Ou seja, durante um período que poderia não ser curto, a acumulação e o crescimento podem ser desligados do crescimento do consumo assalariado.
Uma industrialização democrático-burguesa
Neste caso, o bloco social impulsionador da mudança deveria agrupar o conjunto dos sectores populares (camponeses, marginais urbanos, pequena burguesia independente e assalariada urbana, proletariado industrial e dos transportes, capitalistas médios e pequenos), sob a direcção da burguesia nacional. [8] Entende-se por esta a fracção capitalista que trabalha fundamentalmente para o mercado interno na secção de bens de consumo e que, por regra, não ocupa posições monopolistas. Supõe-se também que seja inimiga do capital financeiro e que busque reservar espaços de investimento estratégico para o capital nacional. Ou seja, regula fortemente a presença de capitais estrangeiros.
Em outros tempos (primeiro terço ou metade do século XX), esta fracção do capital chegou a desempenhar um papel importante em diversos países do terceiro mundo. Esteve por trás de Perón na Argentina, de Vargas no Brasil, de Lázaro Cárdenas no México, de Aguirre Cerda no Chie. Hoje, mais de meio século depois, surgem dúvidas sérias sobre a sua capacidade de liderança e até sobre a sua própria existência. Para o caso pode-se assinalar: i) sua debilidade económica; ii) sua habitual covardia política, sua cegueira e tendência à acomodação com os de cima. Digamos também que em muitas ocasiões esta fracção inicialmente se escuda por trás de movimentos políticos populares com direcção pequeno-burguesa e relativamente radicalizados. Neste caso e em países de capitalismo muito atrasado onde as possibilidades reais do socialismo são mínimas, o que na verdade se verifica é a criação a partir do Estado dessa classe burguesa (este poderia ser o caso do Equador com Correa e da Bolívia com Evo Morales). Quando a direcção é claramente demo-burguesa, a nível declarativo pode-se radicalizar mas na sua eventual gestão pública maneja-se com pés de chumbo e concilia com os piores inimigos, como p.ex. a banca e o capital financeiro especulativo. Os casos de Lula no Brasil, de Alan García no Peru, Tabaré Vazquez no Uruguai e de Michelle Bachelet no Chile são exemplos claros desta capacidade “compromisso sem avançar”.
O modelo demo-burguês na região, além da sua difícil implementação no político, encontraria (ao chegar ao governo) problemas económicos agudos. Como deve redistribuir o rendimento e encontra uma oferta relativamente inelástica, costuma provocar inflação e desequilíbrios na Balança de Pagamentos. Também costuma enfrentar dificuldades para impulsionar o investimento e o crescimento. Estes problemas, ainda que difíceis, podem ser resolvidos uma possibilidade implica radicalizar o processo e activar-estender a intervenção estatal (controle da política monetária e cambial, do comércio exterior, taxas de câmbio múltiplas, investimento estatal, etc). Fenómeno que só se pode verificar no contexto de uma mobilização popular muito vasta, a qual – hélas – também aproximaria bastante a possibilidade de uma rota de superação do próprio capitalismo. A outra possibilidade, que nada resolve, é a do retrocesso: “atirar a esponja” e andar para trás, negociar com o capital estrangeiro e financeiro, aplicar algumas despesas sociais (“apagar fogos”): uma espécie de neoliberalismo moderado com algumas despesas sociais que salvem as aparências. Esta “alternativa” não é hoje invulgar na região. [9]
V – A rota democrática-socialista
Pelos seus anseios, esta é a única rota que procura ir para além do capitalismo. Exige uma ampla coligação popular liderada pela classe trabalhadora industrial. E se chegar ao poder, não se deve acreditar que a ordem socialista possa ser implantada da noite para o dia. Como regra, trata-se de um processo que pode ser longo e sinuoso. Além disso, não se deve esquecer que o próprio socialismo não é senão uma fase de transição, ainda mais longa e conflituosa e que pode perfeitamente acabar no fracasso. Esta conotação transicional gera uma exigência inescapável: que a classe líder do processo funcione com plena consciência dos fins derradeiros que se perseguem.
Na actualidade, as dificuldades desta rota são de ordem maior. Podemos assinalar algumas: a) no presente (2021), a correlação internacional de forças (contrapondo a AL no seu conjunto ao resto do mundo) é muito desfavorável para uma via socialista. Os países que o tentarem encontrarão um duro boicote económico e prováveis agressões militares, como as já sofridas por Cuba e Venezuela. Cabe também apontar: pela frente podemos esperar conflitos inter-imperiais cada vez mais agudos (ex. entre China e EUA), o que abre uma situação, se bem manejada, aproveitável pelos mais fracos. No interior da região sul-americana a situação é bastante movediça: passa-se rapidamente de governos demo-reformistas para outros de extrema-direita (casos do Brasil de Lula e Dilma que desemboca no actual Bolsonaro, ou do Equador de Correa que se move para governos repressivos de extrema direita). Também há movimentos em sentido inverso, os que reflectem o descontentamento popular com a direita e apoiam líderes e/ou partidos reformistas. Além disso, há uma lição que não deveria ser silenciada: os governos de corte reformista (Lula e Dilma no Brasil, Bachelet no Chile) quando se dobram ao poder neoliberal vigente acabam por impulsionar a volta a regimes de extrema-direita. O que também nos adverte: as massas populares manejam-se mais por estados de ânimo do que por interesses políticos genuínos. Ou seja, impera uma falta de consciência política de classe que chega a surpreender; b) na actual América Latina, as forças políticas que se propõem avançar ao socialismo e comunismo ou não existem ou são muito fracas. Inclusive na Venezuela – que a nível oficial declarou que sua meta é o socialismo, ainda que na sua prática efectiva os propósitos socialistas pareça muito adormecidos [10] , não se encontra uma organização ou partido político sólido que combata com força e clareza ideológica (vg. no estilo bolchevique dos russos de 1917 ou dos espartaquistas alemães de Karl Liebnechet e Rosa Luxemburgo. Ainda que estes exemplos, sublinhemos, não devem ser tomados como um apelo à cópia, à repetição boba. Trata-se de recolher o espírito, as grandes diretrizes que impulsionaram esses movimentos) as metas do socialismo e do que deveria seguir-se-lhe; c) existe uma grande falta de clareza sobre as metas socialistas, as relações de propriedade a impulsionar, os mecanismos de gestão económica: plano x mercado, o tipo de Estado, etc. O colapso do campo socialista não gerou uma crítica profunda e eficaz para superar estes fracassos. Pelo contrário, a discussão de um além do capitalismo simplesmente desapareceu da cena histórica; d) no plano ideológico, o neoliberalismo penetrou na consciência pública e criou a imagem de um sistema comunista que, além de sórdido, é historicamente impossível. Para o que o fracasso de experiências históricas como a URSS e China muito contribuíram: dá uma base empírica à posição neoliberal.
Ao já mencionado há que acrescentar o impacto destruidor do neoliberalismo na classe operária. A ocupação cai como percentagem da população e a população operária industrial cresce muito pouco ou inclusive diminui em termos absolutos. Além disso, reduz-se muito o peso dos ocupados na grande indústria: o grosso da ocupação nova dá-se em empresas de tamanho médio ou pequeno. Finalmente, se considerarmos o conjunto dos trabalhadores assalariados, temos que o grosso do crescimento populacional é gerado em sectores improdutivos. Para os nossos propósitos, o ponto a sublinhar seria: a classe operária industrial (vanguarda potencial de um processo de avanço ao socialismo) perde peso económico e político. E junto com isso, aumenta o peso de segmentos assalariados dispersos e difíceis de organizar: a chamada flexibilidade laboral e o trabalho precário que engendra são causas importantes destes processos.
Ao “efeito de destruição” que acaba de ser mencionado, em países como a Argentina, Chile, Uruguai e semelhantes acrescenta-se outro: emergem novas camadas de trabalhadores assalariados – no comércio, comunicações, etc – que se bem que objectivamente devam ser qualificados como parte da classe trabalhadora (são assalariados que vendem sua força de trabalho por um dinheiro que funciona como capital), pelos seus valores, estilos de vida e nível de rendimento tendem a auto-encarar-se como “classe média” e não costumam estar dispostas a qualquer mobilização colectiva nem radical. [11]
Nas condições actuais, a classe operária funciona como uma ilhota rodeada de um mar de informais, de pequena burguesia pauperizada, de ambulantes, lumpen e outros. [12] Estes segmentos, pelas suas próprias condições de vida são indisciplinados e muito difíceis de organizar. Sua conduta política costuma ser muito volátil e, como regra, vem determinada por factores puramente emocionais. Organizações políticas como as próprias da classe operária não os atraem (na realidade, nenhum tipo de organização costuma atraí-los) e apresentam um problema sério: o de como incorporá-los ao bloco popular. Até agora, a única solução ou mecanismo visível é pela via do poder carismático de grandes líderes. Tal parece ser o caso de López Obrador, Chávez, Correa, Ollanta Humala e Evo Morales. Também, com outros alcances, o de Lula (um hábil ex-operário, desde sempre ao serviço do capital). O problema que isto provoca é conhecido: a personalidade do líder arrasta as próprias organizações, impede-as de solidificarem-se e evita – espontânea, inconscientemente – a consolidação de uma direcção colectiva.
O panorama descrito não é para saltar de alegria. Mas não devemos esquecer: a) enquanto existir o capitalismo sempre existirá a necessidade da sua negação; b) em época críticas podem-se produzir (a experiência histórica assim o mostra) grandes saltos em frente nas forças sociais e políticas que impulsionam metas anti-capitalistas; c) se a esquerda deixa de actuar e de acumular forças, nunca chegará o dia em que possa sintetizar, em seu favor, esta ou aquela crise estrutural. Se hoje não pode decidir, amanhã poderá – com a condição de que saiba hoje acumular forças.
Certamente, a pergunta do milhão que emerge é como acumular as forças necessárias. Pretender aqui dar uma resposta adequada é impossível, além de que seria necessário concretizá-la ao nível do país particular. Só podemos tentar – com o sério risco de cair no óbvio – enumerar algumas directrizes básicas. Seriam elas:
1) Organizar os trabalhadores nos seus centros de trabalho e criar Poder Popular.
Trata-se de impulsionar uma organização eficaz e congruente com os fins de curto, médio e longo prazo da classe. Considerando dois tipos de lutas reivindicativas: a) as que buscam melhorar a condição operária sem romper a ordem capitalista: reduzir e controlar o comprimento e a intensidade da jornada de trabalho; melhorar os salários; melhorar condições de segurança e de salubridade para os trabalhadores, etc; b) as metas de ordem superior e que apontam para a criação de Conselhos Operários de Fábrica, com os quais o trabalhador (como colectivo) começa a decidir alguns aspectos da gestão económica da fábrica ou grupo de fábricas. Aqui já se trata da educação, através das práticas do caso, que a classe operária precisa para lutar pelo Poder Político geral (o Estado). Ou seja, começar a criar e manifestar um Poder Popular real, cada vez mais amplo e mais sólido. Em tudo isso, a chave esta em desenvolver a capacidade política (organização e consciência) da classe. Por outras palavras, é necessário que a classe trabalhadora se assuma como classe dominante, em potência ou de facto.
2) Recuperar o ideal, a “utopia” entendida não no seu sentido mais literal (=algo belo mas impossível) mas como um “sonho realizável”: como um mundo melhor que não só é desejável, mas também possível. Um mundo em que “o livre e pleno desenvolvimento de cada qual é uma condição para o livre e pleno desenvolvimento dos demais”. Ou melhor: que o homem, que o trabalhador, se torne mestre do seu destino. Esta recuperação, que também deve ser recriação, é fundamental para: i) todo propósito hegemónico da classe; ou seja, para ter a capacidade de atracção e de direcção sobre o mais vasto bloco popular; ii) dar fo

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