Oesterheld e O Eternauta: a dupla pertinência no enfrentamento ao império
Texto: Roberto Baschetti - historiador - Argentina
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Esta é uma comunicação apresentada no 2º. Encontro da “Plataforma 2016 – Florianópolis”, em 23 Maio 2016; uma iniciativa que procurava articular uma composição de partidos progressistas para a eleição municipal daquele ano. Abstraindo-se esta circunstância, penso que estas notas podem ser úteis para pensar as eleições gerais deste ano de 2018, no sentido de buscar uma convergência entre as forças de esquerda, numa perspectiva estratégia, para reposicionar-se diante desta conjuntura golpista.
A. Preliminares
1. Eu não falo aqui na condição palestrante, mas de um companheiro desta articulação em busca de um projeto para a cidade, que possa disputar com êxito a preferência dos cidadãos na próxima eleição.
2. Não tenho a presunção de falar nada além do que é medianamente do conhecimento dos aqui presentes, ativistas, militantes, sindicalistas, professores, dirigentes partidários, mas contribuir para uma análise política, que possa nos dar uma compreensão adequada para a sistematização de tarefas políticas a empreender.
3. Para delinear um horizonte de expectativas temos que partir de um campo de experiências; daí a necessidade de refletirmos sobre nossa trajetória de erros, acertos, fracassos e êxitos ao longo das últimas décadas.
4. Isto implica em integrar a experiência e processar contribuições dos múltiplos figurantes do jogo político e da reflexão teórica do nosso campo ao longo dos últimos períodos e conjunturas.
5. Inicialmente coloquei no título desta fala a palavra “esquerda” para designar este empreendimento político que estamos a deslanchar, mas depois a substitui por “forças progressistas”, mais em sintonia com as ideias que pretendo apresentar, que vão na direção de ampliar nosso campo, persuadir maiores contingentes sociais, obter uma maior audiência para nossas propostas, que se transformem em última instância em votos para nossas candidaturas.
6. Uma primeira recomendação: que nos tornemos mais permeáveis à diversidade de contribuições e experiências que viemos acumulando, sejam provenientes de dirigentes partidários ou sindicais, coordenadores ou animadores de movimentos, teóricos, acadêmicos, militantes, ou apenas eleitores.
Temos que abrir a política, torná-la acessível a muitos, estimular a participação, valorizando cada contribuição na montagem de nossos aparatos e de nossas iniciativas. Digo isto porque muitos se intimidam, ou não se animam de forma alguma, diante do que lhes parece algo reservado a um grupo de iniciados, com suas linguagens meio cifradas, com um suposto conhecimento de entrelinhas indecifráveis do jogo político, prenhe de manhas e artimanhas, distante de um mortal comum.
Temos de integrar e valorizar diferentes âmbitos e habilidades do agir político, sem descriminar ninguém ou nenhum nível, do teórico-ideológico ao organizativo, da elaboração de planos e programas ao trabalho de contatos e articulações, seja com entidades, organizações, grupos de interesse ou figuras relevantes e lideranças expressivas.
Política é por natureza um empreendimento coletivo; a questão é dar forma e consequência a esta agregação de vontades e interesses em conflito pela disputa de projetos alternativos de sociedade.
B. Conjuntura: compreender e se posicionar.
Densa, complexa e critica. Vai nos exigir muito em termos de estudá-la, analisá-la, e nos situarmos dentro dela, para agir com alguma relevância e protagonismo, para fazer avançar nossas posições, nossos interesses, nossos projetos.
Densa: porque há uma quantidade imensa de elementos, de dados, de protagonistas em contínuo deslocamento, se sobrepondo com intensidade e velocidade, produzindo efeitos e consequências previsíveis ou não, desejáveis ou não, controláveis ou não;
Complexa: porque se confrontam forças coletivas, atores individuais, organizações e instituições com diversas agendas, com distintos meios e capacidades para avançar suas estratégias e promover seus interesses, mobilizando apoios, enfrentando resistências ou potenciando seus recursos e possibilidades numa atmosfera política carregada, onde pairam em completa mistura e confusão ideias e objetivos políticos, oportunismos de ocasião, indignações moralistas, obscurantismos variados, e emoções erráticas como raivas, ressentimentos e ódios;
Crítica: porque do cruzamento entre crise estrutural do capitalismo e crise interna, resulta uma ofensiva avassaladora das forças hegemônicas, que encurralam as forças de esquerda, domesticando-as, desmoralizando-as, desarticulando-as, apeando-as de governos e, no limite reprimindo-as, como estamos constatando especialmente na Argentina, Brasil e Venezuela. É um ciclo que parece esgotar-se.
É certo que não se trata apenas do clássico movimento pendular, que de tempos em tempos na A.L., desloca o pêndulo político-ideológico ora para a direita ou para a esquerda, ora para democracias frágeis, ora para ditaduras abertas ou disfarçadas.
O que temos nos tempos presentes, num olhar mais abrangente, é um esgotamento de maior profundidade dos processos de acumulação e legitimação do capital, evidenciados pela exacerbação das aberrações (do horror) econômico, e pela falência e desmoralização do sistema político representativo.
Este quadro assombroso de estertores macabros das forças hegemônicas, obviamente não se dá num vácuo, nem recobre todas as instâncias por igual do tecido social, mas encontra obstáculos na resistência dos povos, em suas conquistas civilizatórias inabdicáveis, em novas energias coletivas de amplos contingentes que se mobilizam, sob o impulso de novos projetos ou de perenes utopias solidárias ou igualitárias.
Encontramos em toda a parte ações políticas inovadoras, novas forças contestatórias, novas disposições e disponibilidades das jovens gerações, que adentram o palco sem pedir licença, inventando seu próprio enredo, buscando definir seus destinos para mais além do que permite antever velhas molduras institucionais, valores caducos, práticas viciadas de um jogo fraudulento. Porém esta é ainda uma promessa, um esboço de projeto, um ensaio instituinte em busca de um horizonte de viabilidade. Longo caminho pela frente.
Com esta digressão pretendo delinear o grande desafio que temos pela frente, o enorme esforço que teremos que empreender para traduzir esta complexidade para a dimensão local, onde atuamos, para que possamos imprimir alguma consequência a nossa ação.
C. Constatação: sozinhos, enquanto setores progressistas e forças de esquerda na cidade não temos força para ganhar eleições.
O conservadorismo nesta cidade, ao menos nas camadas médias parece que aumentou em vez de diminuir. Não só havia um conservadorismo tradicional, entranhado, mas deve, a ser confirmado por pesquisa sociológica ou quiçá pelas urnas, ter surgido um novo, no bojo das mudanças socioeconômicas e culturais desencadeadas pelo triunfante neoliberalismo das últimas décadas, em todas as latitudes. No que se manifesta como ideologia, o neoliberalismo não atinge apenas os extratos sociais médios, mas é amplamente invasivo das consciências ingênuas e desarmadas de amplas camadas da população. Ainda mais, este conservadorismo, neste massacre ideológico que se abateu sobre o PT/Lula/Dilma, e por extensão sobre toda a esquerda, promovida com enorme êxito pela ferocidade de uma mídia manipuladora, se apresenta nesta conjuntura como um exacerbado reacionarismo, que se manifesta inclusive através das formas pré-políticas da raiva, do ódio e do ressentimento.
Desafio: se as disposições de ânimo, no que tange as questões públicas/políticas de amplos contingentes sociais, estão da forma que descrevi, teremos imenso trabalho para ampliar nossa audiência, transmitir nossas ideias, mensagens e projetos, tornando-as palatáveis, e no limite, aceitas e sufragadas.
Porque uma coisa é certa, para vencer eleições, temos que ir além de nossa própria base social (que, por sinal, em parte tem sido bastante capturada pela direita, pelo clientelismo fisiológico, etc), e também além dos que se tem alinhado politicamente conosco.
Será uma tarefa difícil, hercúlea; basta ver a impermeabilidade absoluta que mentes capturadas pela direita golpista revelam quando lhes argumentamos, ou lhes apresentamos um texto crítico. Estão completamente fechadas para tudo que não lhes foi inculcado pela lavagem cerebral da mídia corporativa-conservadora-golpista; cegadas diante de qualquer racionalidade que ultrapassa suas certezas profundas ou de ocasião.
A questão que se coloca então é como nos tornarmos um interlocutor válido para este eleitorado, que linguagem usar, que discurso enunciar, que posicionamentos explicitar, que projetos e programas apresentar.
Penso que poderíamos nos valer, com a devida transposição contextualizada, de experiências recentes de outras plagas, a de Jeremy Corbyn e Sadiq Khan, respectivamente líder do Partido e prefeito eleito de Londres, ambos pelo Partido Trabalhista, na Inglaterra, a de Bernie Sanders, nos USA, e a de Justin Trudeau, do Partido Liberal, no Canada.
As experiências de esquerda e de centro- esquerda de Corbyn, Sadiq Khan, Sanders e Trudeau, e mesmo uma à direita, a de D. Trump, devem seu êxito a um discurso direto, com linguagem franca, ousada, para além dos esquemas tradicionais de campanha, sobre temas sensíveis, encarados de frente, com propostas avançadas, inovadoras (menos Trump, óbvio), com ampla receptividade, e que estimularam ou desencadearam ampla mobilização e apoio, que estão trazendo uma lufada de ar fresco na política embolorada do establishment.
Precisamos nos dirigir aos eleitores com a franqueza (e quem sabe a “ingenuidade” de um Eduardo Suplicy), que é aliás a de Corbyn e Sanders, não para dar uma de bom mocismo, mas para se contrapor a um estilo de política viciada, desgastada e desmoralizada. Demonstrando conhecimento e sensibilidade quanto às necessidades e carências mais sentidas do povo, afirmando com clareza e convicção ideias e projetos que possam atendê-las.
Rompendo tradicionais moldes das campanhas políticas, seja aqueles da pasteurização marqueteira, seja aquela da conquista do voto por expedientes miúdos, que vão de articulações de bastidores, esquemas, artimanhas e manhas de composições discutíveis com forças e personagens idem, ou a busca do voto paroquial pelo contato pessoal.
Tudo isto só avançará se formos capazes de estimular, organizar e mobilizar grupos de apoio, que num crescendo se tornem um vibrante movimento que corra junto e paralelamente à campanha e às candidaturas.
D. Mapear as questões da cidade e avaliar nossas forças
Integrar as questões conjunturais (do tempo presente) da cidade numa perspectiva maior, que contemple sua trajetória, suas dinâmicas, sua cultura, seus humores e disposições de espírito coletivo, projetando-as para um futuro que ajudaremos a delinear, a definir e a construir (visão).
E. Eleições e luta política
Sem abrir mão da luta política contra a usurpação golpista federal, o eixo deverá ser a campanha eleitoral. Pois se conquistarmos posições, seja o governo da cidade, seja na Câmara de Vereadores, estaremos mais bem situados e com mais recursos para continuar na luta. Deveremos então atuar de acordo com estas duas dinâmicas, balizando um discurso político nacional com um discurso programático local, alternando as ênfases de acordo com o calendário eleitoral e as necessidades da campanha; sem perder de vista o eixo, que é a captura de votos de setores que nos veem com ressalvas ou reservas. O combate político contra o golpe seguirá também com outros grupos, movimentos, articulações e iniciativas, como aliás já está ocorrendo.
F. Eleitoralismo x principismo
Devemos evitar esses dois equívocos. Nem se compor com qualquer grupo, partido, liderança ou esquema que nos pareça agregar votos em prejuízo de uma coerência ideológica mínima e de uma defensável identidade política; nem cair em seu contrário, numa postura principista, esquerdista, que nos isole e nos mantenha num gueto sem saída, inviabilizando qualquer avanço eleitoral.
Evitar o eleitoralismo não é o mesmo que se fechar a qualquer composição ou acerto com forças fora de nosso campo, mas se for o caso, compor-se a partir de pontos programáticos ou mesmo políticos, sempre de forma aberta e transparente, enunciando e explicando publicamente seus termos.
Assim como evitar profissão de fé em nossos princípios, não significa rifá-los, ou não os ter no horizonte de nossa ação, mas saber enuncia-los como valores civilizatórios, responsáveis por grandes conquistas sociais, como caminho para expandi-los e assegurá-los.
Entre estas duas pontas, eleitoralismo e principismo, uma saída fácil e usual é buscar o meio de campo, uma posição centrista, onde estaria o grosso do eleitorado flutuante, sem claras preferências ideológicas ou lealdades partidárias. Isto pode funcionar às vezes, e mesmo pode nos ser útil neste ano. Mas não deve ser nossa opção estratégica neste momento, até porque este centro, nesta conjuntura polarizada, encolheu e mesmo deslocou-as mais á direita.
Tem-se, na verdade, que considerar duas estratégias e que se dirigem a dois grupos distintos de eleitores, além de nossos próprios:
a) avançar em direção ao centro tradicional em busca de eleitores meio acomodados e descrentes, que embora hoje um tanto polarizados, poderão estar confusos ou ainda mais desiludidos com a situação política, seja a do país ou a local;
b) sintonizar com a energia e o inconformismo dos novos sujeitos da política que entram em cena autonomamente, por fora dos meios e aparatos tradicionais, ajudando-os a canalizar e direcionar seus impulsos inovadores, suas demandas por participação, suas pautas e agendas, e finalmente conseguir sua adesão e envolvimento na campanha;
G. Unidade
Unidade das forças, organizações e movimentos de esquerda.
Quanto estamos na defensiva e sem grandes meios ou recursos, como agora, uma política de unidade se impõe, não apenas como tática eleitoral de curto prazo, mas como uma dimensão estratégica para recompor-se, resgatar nossos valores e projetos sob ataque ou descrença, recredenciando-nos diante da sociedade como ator político legítimo, para finalmente conquistar posições e mandatos. O esforço aqui é valorizar ou priorizar o que nos une e relevar o que nos separa, seja em termos partidários, programáticos ou de candidaturas. A ideia aqui é que em cada conjuntura crítica há um eixo, em torno do qual se movimentam os atores políticos e sociais e que demanda uma tarefa essencial, básica a ser cumprida.
É, pois, necessário que preliminarmente nos entendamos sobre que eixo e que tarefa são estas.
Unidade contra divisão no seio da sociedade. Contra uma política de medo e divisão.
Numa conjuntura com ânimos tão exacerbados, em meio a uma crise econômica que gera insegurança social, numa atmosfera de frustração e incertezas políticas, e de uma manipulada e inculcada cultura de medo, terá êxito uma proposta que reassegure a população que juntos podemos superar este estado e esta condição.
Para isto devemos apostar no que nos une para tornar a cidade mais habitável, uma cidade mais tolerante, mais confiante, que propicie mais acessos à direitos e oportunidades.
Uma mensagem deste tipo não implica num apelo a uma harmonia social ilusória, nem num apelo a uma conciliação política improvável, que reforça o status quo. Mas reconhece as diferenças e as respeita, não desconhece o conflito político, mas procura superá-lo não estigmatizando ou destruindo o adversário, mas construindo um novo e forte consenso.
Uma mensagem deste tipo não é enunciada com um discurso anódino de boas intenções, com a loquacidade vazia em torno de desgastadas palavras de ordem; pelo contrário, demanda vigorosa enunciação, apontando com ousadia e sem concessões o que nos impede ou dificulta de viver numa comunidade mais pacificada e mais esperançosa.
Parto do pressuposto que não devemos apostar nestas eleições numa radicalização de posições, uma vez que estamos “relativamente” em baixa, mais ou menos encurralados sob a pressão de golpistas e de seus apoiadores na sociedade, que não são poucos.
Numa conjuntura assim polarizada e com ânimos exaltados devemos ser os proponentes de uma união e de um novo consenso político-social, nos propondo a superar divergências, desavenças ou desencontros, em nome da cidade, do enfrentando de seus problemas, dos problemas e carências de sua população, visando um melhor futuro. Se não faremos isto, provavelmente o farão nossos adversários.
Para voltar ao exemplo de Sadiq Khan , na Inglaterra, e de Trudeau , no Canadá, ambos venceram combatendo “uma política do medo e da divisão”. A vitória do Prefeito de Londres, a primeira de um muçulmano numa grande capital ocidental, num ambiente carregado de islamofobia, deve-se, segundo suas palavras a que os “Londrinos escolheram esperança sobre o medo e unidade sobre a divisão”.
Como demonstrou também Trudeau: “ uma visão da vida pública otimista, positiva, esperançosa” pode ser uma força de mudança poderosa. Em 78 dias de campanha levou seu partido centrista do último lugar a uma espetacular vitória. Tornou-se vitorioso apenas 4 anos depois de seu partido sofrer a maior derrota de sua história.
H. Agenda e Visão
Uma agenda com pontos centrais e eixos programáticos precisa ser elaborada; é em torno dela que deve girar a campanha. Uma agenda deste tipo deve dar a identidade de nossa proposta e como tal ser reconhecida pela população; poderia ser ou conter algo como propôs o candidato trabalhista Marvin Rees (origens humildes, não-branco) eleito este mês prefeito de Bristol, na Inglaterra, numa extraordinária vitória: ser transparente, inclusivo, repartindo poder e empoderando as pessoas.
Deve-se perceber e atuar em consonância com mudanças políticas em curso; os eleitores não toleram mais imposições, propostas ou agendas de cima para baixo, mas querem construí-las de baixo para cima, apoiando e identificando-se com lideranças que estejam em sintonia com suas aspirações.
Não podemos apresentar apenas um programa bem feito por experts em políticas públicas; os eleitores são motivados não apenas por suas necessidades imediatas, mas também por seus sentimentos em relação a sua cidade, a uma sociedade decente. Indo então um pouco adiante de nossos parâmetros especificamente políticos, temos que redefinir algumas questões, no sentido de que elas se conectem com os padrões de decência e valores básicos dos eleitores.
Também, para além de compromissos de campanha ou programa de ação deveremos apontar para um futuro, delineando os contornos de uma visão de como queremos ver e ter uma cidade mais justa, mais democrática, melhor planejada, mais feliz.
Texto: Roberto Baschetti - historiador - Argentina
Texto: Davi Antunes da Luz
Texto: Elaine Tavares
Texto: Julio Gambina - Argentina
Texto: IELA