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A um ano da morte de Chávez, como definir o bolivarianismo?

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Por IELA em 15 de janeiro de 2015

A um ano da morte de Chávez, como definir o bolivarianismo?

A UM ANO DA MORTE DE CHÁVEZ, COMO DEFINIR O BOLIVARIANISMO?
Por Vanessa Silva – Jornalista

11.03.2014  – Após a morte do líder da Revolução Bolivariana, Hugo Rafael Chávez Frías, o grande desafio que o presidente Nicolás Maduro e o povo venezuelano têm pela frente é a continuidade da transformação social e política iniciada por ele na Venezuela. Dada a amplitude de sua ação política, sua herança é reivindicada não apenas por seus conterrâneos, como por toda a América Latina. Ele resignificou o bolivarianismo e deu novo ânimo à integração regional.
No Brasil, o termo bolivariano é constantemente utilizado na imprensa hegemônica como sinônimo de governos instáveis, “ditatoriais”, populistas e atrasados. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, declarou mais de uma vez, no marco do julgamento da Ação Penal 470, chamado de Mensalão, que o STF não pode virar “um tribunal bolivariano”.
Mas o que realmente é o bolivarianismo pregado por Chávez? Por que, apesar da campanha midiática, o ex-presidente venezuelano é um dos poucos consensos entre a esquerda brasileira? Para aportar elementos a este debate em torno de seu legado, o Diferente, Pero no Mucho realizou uma série de entrevistas com intelectuais e militantes a respeito do bolivarianismo e seu alcance no Brasil e publica duas matérias como resultado desta investigação.
De acordo com o professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Nildo Ouriques, o bolivarianismo é o contraponto à Doutrina Monroe, é a “América Latina para os latino-americanos”. É “a independência completa e definitiva da América Latina das potências imperialistas. (…) é um programa de soberania nacional, unidade latino-americana e fim da desigualdade social”. Surgimento A reivindicação do legado de Simón Bolívar é presente em toda a história venezuelana. Setores da direita e da esquerda tentam se associar à figura do líder que empreendeu a maior luta contra o domínio espanhol na América Latina.
O professor licenciado do Departamento de Economia da PUC-SP, doutor em Integração da América Latina (Prolam) da USP, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e titular da missão deste órgão em Caracas desde setembro de 2010, Pedro Barros, lembra que “com Hugo Chávez, o conceito de bolivarianismo foi redimensionado. Todo o seu movimento político teve em Bolívar sua figura central”.
Barros pontua ainda que “o termo ‘bolivarianismo’ se associou a Hugo Chávez como nunca havia se associado a ninguém. Chávez deu início em 1999 à ruptura latino-americana em relação ao Consenso de Washington”, o que foi considerado como o início do processo para a conquista de uma segunda e verdadeira independência.
O próprio presidente, durante uma fala realizada na Universidade de Sorbornne, em Paris em 10 de outubro de 2001, esclareceu que “Bolívar convocava a união da América do Sul em um bloco de forças. E dizia ser isto necessário para nos opor ao peso da América do Norte e da Europa, centros de poder no mundo. Isso fracassou, pois a América Latina, antes espanhola, veio abaixo. E aqui, 200 anos depois, estamos procurando-nos a nós mesmos (…) Qual é a nossa ideologia? É bolivariana. Porém, o que é isso? É revolucionária? Fidel Castro, durante uma visita minha, referiu-se a este ponto em uma conferência na Universidade de Havana: ‘vocês falam da luta pela justiça, pela igualdade e pela liberdade e a chamam de bolivarianismo. Aqui chamamos de socialismo. (…) Na realidade, não se trata de como se chama (o processo), ainda que o nome o defina. A ideologia bolivariana está sustentada por princípios revolucionários, sociais, humanistas e igualitários. Bolívar, verdadeiramente queria fazer uma revolução, porém, sua classe social, a oligarquia à qual pertencia de raiz, não o permitiu (…) a ideologia bolivariana é antineoliberal”.
O bolivarianismo permeia a luta pela integração solidária e se modificou ao longo dos anos. É a defesa da “Nossa América”, como pregava o cubano José Martí, ou da “Pátria Grande” do argentino San Martín. “Hoje, é a luta pela democracia popular republicana, e pela igualdade social. O bolivarianismo funde o patriotismo e o internacionalismo latino-americanista”, define o secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil e mestrando pelo Programa de Integração da América Latina (Prolam) da USP, Ricardo Alemão Abreu.
A luta latino-americanista deve ser realizada via uma integração popular. É o que defende o economista e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do qual integra a direção nacional, João Pedro Stédile: “eu acho que o principal é construirmos uma integração popular da América Latina porque nossos povos só vão resolver seus problemas de maneira conjunta. Os problemas que temos são comuns porque é comum a causa da exploração que o capitalismo internacional nos impõe. Ele suga nossos recursos naturais, explora nossa mão de obra”.
Integração
Pedro Barros observa que “a constituição de 1999 incorporou o bolivarianismo ao nome do país: ‘República Bolivariana da Venezuela’, dando mais legitimidade à política externa integracionista. Instrumentos como a Alba [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América] e a Petrocaribe estão vinculados a esse movimento. A criação da Unasul [União das Nações Sul-Americanas] e da Celac [Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos] teve explicita inspiração bolivariana. A carta fundacional de ambas, particularmente da segunda, faz referência bastante clara a Bolívar”.
Na cerimônia realizada na quarta-feira (5) em Caracas em homenagem ao primeiro ano da morte de Chávez, a primeira-ministra da Jamaica, Portia Simpson Miller, afirmou que a PetroCaribe foi criada em um momento em que o mundo atravessava uma séria crise econômica. “Nossos países que são pequenos, e sofrem também uma grave crise econômica, estariam em uma situação muito pior se não fosse a visão de Chávez”.
Os projetos integracionistas impulsionados pela Venezuela consomem, em conjunto, algo em torno de 1,5% do PIB venezuelano, “montante superior ao que qualquer país do mundo destina à cooperação internacional”, afirma Barros que cita ainda: “um exemplo são os mais de US$ 1,3 bilhão destinados ao Haiti. Nenhum outro país coopera tanto com o Haiti”.
E mesmo no Brasil, onde nossas particularidades históricas impediram o estabelecimento de uma relação mais forte com Simón Bolívar, “brasileiros ilustres, como Abreu e Lima, participaram ativamente de sua luta. Nos últimos dez anos, porém, a inspiração bolivariana esteve presente nos maiores esforços regionais do Brasil, notadamente a expansão do Mercosul, a consolidação da Unasul e a criação da Celac”, ilustra o pesquisador do Ipea.
É POSSÍVEL SER BOLIVARIANO NO BRASIL?
Em abril de 2013, poucos dias após a morte de Hugo Chávez, o colunista de O Globo, Rodrigo Constantino, publicou um artigo intitulado “O risco bolivariano” em que compara petistas a chavistas, afirma que o socialismo está ligado ao “caos e à opressão” e que os bolivarianos brasileiros “se inspiram no falecido Hugo Chávez, cujo ‘socialismo do século 21’ é exatamente igual ao do século 20”. Será?
Constantino diz ainda que “como não temos uma oposição política organizada que valha o nome, resta como obstáculo a esse golpe bolivariano basicamente a força de quatro instituições: família, igreja, imprensa e Judiciário”. Mas o que realmente é o bolivarianismo pregado por Chávez? Por que, apesar da campanha midiática, o ex-presidente venezuelano é um dos poucos consensos entre a esquerda brasileira? Para aportar elementos a este debate, o Diferente, Pero no Mucho realizou uma série de entrevistas com intelectuais e militantes a respeito do bolivarianismo e seu alcance no Brasil e publica duas matérias como resultado desta investigação.
O mesmo tom é verificado no artigo de Arnaldo Jabour de outubro de 2013 que alerta para “uma eventual reeleição da Dilma que, ao que tudo indica, vai partir para o ‘bolivarianismo’ explícito, como já declara o site do PT”. E diz ainda que “é nosso destino, em um governo dividido entre o ‘bolivarianismo’ e as necessidades óbvias, reais do país”.
Questionado sobre o motivo do processo de demonização do bolivarianismo e da figura de Hugo Chávez no Brasil, o jornalista e escritor, autor de livros como A Ilha, Olga, Chatô e Os Últimos Soldados da Guerra Fria, Fernando Morais, considerou que os que o fazem “têm medo de transformação. Nos anos 1960 os presidentes eram insultados como reformistas. Hoje o crime é ser bolivariano. (…) Qual é o medo deles? Desde 1960 até agora temem perder a capacidade de explorar os povos”.
Para o professor da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Mídia, Poder e Contrapoder, que acaba de ser lançado na Argentina, Dênis de Moraes, este processo está relacionado aos papéis “estratégicos desempenhados pelos grandes grupos midiáticos: o de agentes ideológicos e retóricos a favor do ideário neoliberal e da hegemonia dos mercados”.
No caso, as “corporações querem preservar a qualquer custo suas ambições monopólicas e de poder. Os governos bolivarianos afetam seus interesses políticos e econômicos, na medida em que estão comprometidos — cada qual com suas ênfases, estilos e intensidades — com transformações socioeconômicas e culturais capazes de democratizar a vida social, distribuindo renda e riqueza, defendendo a soberania nacional e promovendo a diversidade informativa”.
Para o jornalista, historiador, escritor, diretor da revista online Diálogos do Sul e autor do livro No Olho do Furacão – A América Latina nos anos 1960/70, Paulo Cannabrava Filho, a imprensa brasileira trata o bolivarianismo desta forma porque “é difícil livrar-se da servidão intelectual, a pior das servidões. Então eles têm medo de ser livres, independentes, caminhar com as próprias pernas, ou mais apropriadamente, pensar com a própria cabeça, ver o mundo crítica e criativamente”. E como resultado disso, jornalistas de agências e portais de notícias escrevem notícias iguais, como “se todas tivessem sido escritas pela mesma pessoa, do Sul do Rio Bravo à Patagônia”.
Como parte deste processo de deslegitimação, na América Latina, quando um governo se contrapõe às medidas neoliberais ele é caracterizado com o bolivariano. Segundo Dênis de Morais, “a mídia corporativa sabe que as medidas [adotadas por estas gestões] representam uma guinada histórica na tradição de subserviência de sucessivos governos, sobretudo os neoliberais, a suas conveniências políticas e econômicas. E não se conformam de perder as posições ilegitimamente conquistadas em décadas de ditaduras militares e governos neoliberais”.
O professor da UFF ressalta ainda que “as violentas campanhas opositoras e difamatórias por parte da mídia latino-americana têm dois alvos centrais: de um lado, fragilizar e desestabilizar os governos de esquerda, em sintonia com os interesses estratégicos do imperialismo norte-americano na região; e impedir que as fundamentais mudanças na radiodifusão prosperem”, o que explica o constante ataque sofrido por tais países ao tentarem implementar leis que regulamentem a radiodifusão, como pode ser observado na Argentina, com a Lei de Medios.
Diante deste cenário e apesar das insinuações da imprensa hegemônica de que há um movimento bolivariano no Brasil, não há um ponto pacífico dentro da esquerda sobre isso.
O escritor Fernando Morais sempre que é convidado a dar entrevista para qualquer programa de televisão, vai com uma bandeira da Venezuela. “Faço isso porque eu sou bolivariano. Na verdade, procuro excomungar estes demônios que a direita tenta pregar em nós, sobretudo nos presidente mais progressistas. Dizem que Lula e Dilma são bolivarianos, que estão levando o Brasil para o caminho da Venezuela. E eu digo: ‘quem dera! Antes fosse’”. Questionado sobre o motivo da autodeclaração, é taxativo: “porque ser bolivariano é ser revolucionário e anti-imperialista”.
Já o sociólogo e cientista político Emir Sader, considera que “o bolivarianismo não tem raízes no Brasil, porque não tivemos guerra de independência e, portanto, não temos próceres que tenham sido contemporâneos à analogia a Bolívar”.
O líder do MST concorda que não há grande expressão da corrente no Brasil, mas avalia que o bolivarianismo se expressa na integração popular. “Na América do Sul temos outras formas de expressar esta integração, acho que é reduzir a integração popular nos fixando apenas nestas expressões como ‘chavismo’ e ‘bolivarianismo’. O mais importante é defender o espírito da integração popular”, disse Stédile. João Pedro Stédile
Exilado pela ditadura brasileira, Paulo Cannabrava morou em vários países latino-americanos, testemunhando diversos processos de revoluções e golpes. Para ele, o bolivarianismo é “uma utopia válida, e temos que persegui-la, dotá-la de um arcabouço ideológico, cultural, para que não se esfume como se esvaiu o sonho do próprio Bolívar”. E defende o resgate “do pensamento dos próceres latino-americanos como [José] Martí, [José Carlos] Mariátegui, [Anibal] Quijano e Darcy [Ribeiro]. Esta, inclusive, é uma das propostas do Diálogos do Sul”.
Na mesma linha, Nildo Ouriques, que defende um pensamento autônomo e integracionista nas universidades brasileiras, em contraponto ao eurocentrismo que as domina e que criou há dez anos as Jornadas Bolivarianas na UFSC, conclui que não somente é possível, como “absolutamente necessário ser bolivariano no Brasil. (…) Já não estamos mais de costas para a América Latina, mas ainda temos uma ignorância com relação a ela”.

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