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A voz dos sem vozes

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Por IELA em 15 de janeiro de 2015

A voz dos sem vozes

A voz dos sem vozes
Por Raquel Moysés – jornalista
Mumia Abu-Jamal, jornalista e militante do movimento negro estadunidense estava para dar o último passo no corredor da morte. O  sopro da vida lhe seria tirado, pelos homens. Mas campanhas de grupos de direitos humanos e civis de todo o mundo gritaram, e a condenação à pena capital foi suspensa, mais de uma vez, de modo desconcertante. Agora, uma nova decisão do tribunal federal de apelações dos Estados Unidos, do dia 27 de março de 2008,  confirma a suspensão da sentença, mas não determina um novo julgamento,  como pediu o advogado de defesa do prisioneiro, Robert Bryan, mencionando irregularidades no processo. Por dois votos a um,  o tribunal ordenou que o estado da Pensilvânia decida,  em três meses,   se confirma a sentença de execução ou se condena à prisão perpétua o militante negro de 54 anos, encarcerado há 26.
A decisão, de um cinismo atroz,   determina que o prisioneiro tenha direito a uma revisão do julgamento, mas já impõe que o máximo que ele pode obter é livrar-se da pena de morte para ficar preso até morrer. Sequer é cogitado o benefício da liberdade condicional ou a possibilidade de um novo julgamento. A decisão, desse modo, revela-se como mais uma cortina de fumaça para sustentar o mito da “justíssima justiça” estadunidense.
Em 1999, um juiz federal da Filadélfia já havia ordenado que fosse realizada uma nova audiência, porque encontrou vários erros no julgamento. A execução também foi  suspensa em 2001, por outro tribunal que considerou inconstitucional a exclusão de vários  negros do corpo de jurados. Esta nova revisão, de março de 2008,  da forma como está prevista, só serviria para determinar se adotar a alternativa da prisão perpétua, ou manter a decisão original de condenação à morte. 
Dois dos três magistrados que negaram a petição de Abu-Jamal de um novo julgamento, em que poderia demonstrar sua inocência, alegaram que foram apresentadas fora do prazo suas reclamações sobre a segregação racial do júri, considerada inconstitucional.  Mas Robert Bryan,  advogado de Abu-Jamal,  apresentou outra apelação, insistindo que  se faça um novo julgamento para estabelecer a culpabilidade ou inocência do jornalista. Bryan afirmou que a atual decisão não é uma vitória, porque não permite provar a inocência do condenado. O advogado denuncia que o julgamento, desde o início,  está viciado pelo racismo.
A cena de um crime
Conhecido como a “voz dos sem vozes”, Mumia Abu-Jamal,  radialista e ativista do movimento afro-americano  Black Panthers (Panteras Negras), é um dos condenados à morte mais conhecidos no mundo. Ele foi julgado e condenado acusado de matar um policial branco, Daniel Faulkner, de 25 anos, na madrugada de 9 de dezembro de 1981. O agente morreu em um confuso incidente,  depois que ter detido  o irmão  de Abu Jamal por uma suposta infração de trânsito.  Mumia foi encontrado na cena do crime, baleado no peito, ao lado do corpo do policial.  Foi dito que o jornalista teria chegado com um táxi ao local do crime, onde foi preso, já ferido, com uma pistola registrada em seu nome. Depois de preso, Abu-Jamal sempre sustentou sua inocência. Já os relatos das testemunhas arroladas são contraditórios e as evidências, além de incompletas, em parte se perderam.
Quando foi acusado pela morte do policial Abu-Jamal trabalhava  como jornalista em  Filadélfia e havia denunciado reiteradas vezes a corrupção e o racismo da polícia na cidade.  A sua condenação veio em um momento em que a cidade, uma das mais pobres dos Estados Unidos, era atravessada por forte tensão racial, marcada por brutalidades policiais. O júri, segundo se denunciou à época, baseou-se mais em evidências circunstanciais do que em provas forenses.  “A verdade – diz o advogado  Robert Bryan – é que este caso jamais viu a luz”.
Em entrevista à jornalista Adrianne Appel, da IPS (Inter Press Service – Journalism and Communication for Global Change),  Abu-Jamal declarou que não era muito popular para alguns setores da comunidade por causa de seu trabalho jornalístico. “Para ser honesto, não  era nada popular entre meus chefes. Eles me criticavam constantemente pelo que eu fazia. Poderia ter sido de excelente qualidade, mas irritava a muitos.”
No momento em que foi envolvido nessa tragédia, o jornalista centrava sua atividade na investigação jornalística da corrupção policial. Ao mesmo tempo, ganhava também a vida fazendo o trabalho de taxista. Na noite do crime, em 9 de dezembro de 1981, Mumia conta  que circulava em um bairro da cidade e assistiu quando  Faulkner deteve seu irmão,  William Cook. O jornalista viu o agente golpear  o irmão  e se aproximou quando o policial  era atingido, vítima de disparos que o próprio Mumia também recebeu no peito.
Discriminação racista
Albert Sabo,  responsável pelo julgamento do jornalista, ficou conhecido como o “juiz da forca”, e quando morreu, em 1998, já havia condenado à morte 31 pessoas, 27 das quais eram negras.  Após a assinatura do  governador republicano da Pensilvânia,  Thomas Rigde, a execução de Mumia já  estava para ser cumprida, em 17 de agosto de 1995. A sentença, no entanto,  acabou suspensa,  com um  recurso da defesa à corte de apelação, pedindo a revisão do processo.
O jornalista declarou à época que o processo tinha sido contra as suas idéias e manipulado pelo procurador Joseph McGill. Este, ao pedir a condenação à morte para o jornalista  disse aos jurados que Abu-Jamal era militante do Panteras Negras, cujo slogan  era”o poder política cresce na ponta do fuzil”. Isso, por si só, segundo  McGill, provava  que o jornalista era um “assassino de policiais”.
Abu-Jamal, ao ser preso,  fazia parte do Panteras Negras,  grupo político afro-estadunidense inspirado em Malcolm  Little, que ficou para a história com o nome de  Malcolm X. Era   um dos maiores defensores dos direitos dos negros nos Estados Unidos, fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana, de inspiração socialista. O  ativista negro foi  assassinato, aos 39 anos,  com 13  balaços, em 1965.
Abu-Jamal, como conseqüência de sua  militância, como disse na entrevista à  IPS, conhecia muita gente em todo o país,  e podia fazer trabalhos sobre um amplo espectro de assuntos políticos. “Acreditava que era meu dever e procurei cumpri-lo o melhor que pude. Isso, certamente, me colocou em uma situação muito difícil”. 
Há notícias de que a Ordem Fraternal da Polícia, que tem muito poder na Pensilvânia, exerce uma contínua pressão para que o jornalista seja executado. Também atua, pressionando a opinião pública,  a viúva do policial morto, Maureen Faulkner, que recentemente escreveu um livro, juntamente com Michael Smerconish, apresentador  de um programa de radio direitista, invocando  que  se aplique a pena de morte. A mulher tem declarado que Abu-Jamal é “um assassino de sangue frio”.
Apenas um dos três juízes do tribunal federal, Thomas Ambro, assinalou, em sua posição dissidente, que o prisioneiro merece um novo julgamento para determinar as razões  pelas quais se rejeitou jurados negros, mesmo que a petição  tenha sido apresentada fora do prazo. No seu parecer de minoria, de  118 páginas, o juiz diz que excluir ainda que seja uma só pessoa de um corpo de jurados, tendo como motivação a sua raça, é uma violação à Constituição dos Estados Unidos. Este argumento coincide com os dos apoiadores de  Abu-Jamal, os quais denunciam que o militante negro é vítima de julgamentos políticos e discriminação racista. Uma das teses que a defesa também vem reforçando é a de que a morte de Faulkner teria sido encomendada  pela máfia da cidade, porque o policial investigava naquele momento algumas figuras destacadas do crime organizado.
No julgamento original,  que condenou Abu-Jamal à morte, apenas um jurado era negro. Para o atual  advogado de Mumia, a firme dissidência do juiz Ambro é como um guia, “uma luz em meio à obscuridade”. Robert Bryan  assumiu o caso do prisioneiro há apenas cinco anos,  e considera que foi um grave erro a defesa não ter apelado, no passado,  alegando a  discriminação de pessoas negras naquele primeiro julgamento. Ele tem declarado, contudo, que a falha da defesa não é uma razão aceitável  para que a corte tenha negado o pedido de novo julgamento.   Bryan afirma que a forma como o  caso foi  encaminhado  foi um desastre,  e que agora o seu trabalho é de tentar “voltar a unir as partes de um ovo que se  despedaçou no chão”.
Defensores ao redor do mundo
A campanha por  um novo julgamento para o jornalista se difunde em vários países, com a participação ativa de jornalistas,  políticos, intelectuais, escritores, artistas e  ativistas dos direitos humanos. A história do jornalista condenado levantou uma onda de solidariedade nos anos 80, em plena luta contra o regime  racista  do Apartheid na África do Sul. Houve fortes manifestações da Anistia Internacional, de Nelson Mandela e do arcebispo sul-africano Desmond Tutu, que criticaram  a segregação racista no processo a que Mumia foi submetido.  
Nos primeiros  meses de 2008,  aconteceram protestos nos Estados Unidos e novas manifestações estão previstas para 26 de abril, em Filadélfia. Christina Swarns, diretora do  Projeto de Justiça Penal,  denuncia que cerca de dez potenciais jurados afro-estadunidenses foram descartados para o  julgamento original, de 1981.
Mumia sempre negou a acusação, gritando sua inocência,  e continua, ao longo de todos esses anos de cárcere,  vibrando a  sua voz. Encurralado no corredor da morte, há um quarto de século  ele é  um  repórter  que diz a sua palavra diretamente do inferno, incomodando, e muito,  os poderosos daquela “América” injusta que  já denunciava, como ativista do Panteras Negras, antes de ser preso. Ao assinar seus artigos,  ele identifica assim: “Do corredor da morte, sou Mumia Abu-Jamal”.
Para continuar a escrever, em 26 de agosto de 1998, o jornalista obteve uma pequena, mas significativa   vitória. Um tribunal de apelação federal reconheceu o seu direito a publicar  artigos e livros, tendo condenado  funcionários da prisão que haviam violado seus direitos abrindo sua correspondência. A administração carcerária da Pensilvânia, segundo a corte, queria punir o jornalista por escrever artigos críticos sobre o sistema carcerário do estado, e por isso estava impedindo Abu-Jamal de exercer a profissão. Além disso, abriam regularmente a  correspondência que o prisioneiro mantinha com os seus advogados. Atualmente, Abu-Jamal realiza  um programa de rádio e escreve artigos e  livros (já publicou cinco deles).  Um total de 23 horas de cada dia ele passa no isolamento.
Luta desmedida pela liberdade
Na sua imane luta  para se livrar da injeção letal,  Mumia transforma-se em um símbolo da resistência e da luta pela liberdade. Em 1995, as suas palavras vararam as paredes da prisão com a edição do livro Ao vivo do corredor da morte, publicado no Brasil, em 2001, pela Editora Conrad. No livro, ele conta as humilhações sofridas no cárcere e denuncia o racismo do sistema prisional estadunidense. Os direitos autorais referentes a esta obra é que têm   permitido a Abu-Jamal  sustentar as despesas legais para sua defesa.
No  livro , ele denuncia:  Não me fale sobre o Vale da Sombra da Morte. Eu vivo nele. Na região centro-sul da Pensilvânia…ergue-se um presídio centenário…Eu e outros 78 homens permanecemos em celas de dois metros por três durante 22 horas por dia. As duas horas remanescentes podem ser passadas ao ar livre, numa jaula de correntes entrelaçadas, cercada por arame farpado, sob vigilância de torres armadas.
Múmia desnuda, com um texto vigoroso,  o retrato da nação estadunidense na qual, em dezembro de 1994, cerca de 40% dos homens no corredor da morte, eram negros. Na Pensilvânia, estado em que foi condenado,  o índice de negros condenados à morte subia para 60% . “Preciso olhar para enxergar a verdade, uma verdade escondida sob as negras becas dos juízes e as promessas de igualdade de direitos”.
Em Ao vivo do corredor da morte Mumia Abu-Jamal  confessa, também, que talvez fosse ingênuo, ou estúpido, ao pensar que a lei seria seguida e a sentença revertida. Anos depois de escrever o livro, ele declara, em entrevista a Adrianne Appel,  que “uma corte não pode fazer culpado um homem inocente”. Afirma também que a sua luta  “não é por uma vida em uma jaula, mas uma luta pela liberdade.” A sua vontade inamovível está amparada, principalmente em uma convicção: a  de que a justiça depende do povo, porque, com o povo,  a justiça é inevitável.                                                                                                                 
No meio da escuridão, essa garotinha foi um raio de luz. Pequenina… essa filha do meu espírito tinha, enfim, percorrido o longo caminho até o oeste, para dentro das entranhas deste inferno criado pelo homem…Ela, como meus outros filhos, era apenas um bebê quando eu fui atirado no inferno. Ela irrompeu na exígua sala de visitas… parou, surpresa, olhando fixamente a barreira de vidro entre nós…Já se passaram mais de cinco anos depois daquela visita, mas eu me lembro como se tivesse acontecido há uma hora: as pancadas de seu frágil punho contra aquela terrível barreira… contra  aquele bloqueio feito pelo Estado a pretexto da segurança, suas lágrimas quentes…
(A visita, no livro Ao vivo do corredor da morte, de Múmia Abu- Jamal)
 

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