Operação Águia – Assassinato de Dom Oscar Romero/1980 ( E 15)
Texto: Camila Feix Vidal - IELA
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Encontro na noite fria
Por Raquel Moysés – jornalista
10.06.2010 – Noite escura no campus. São quase 22 horas e um homem prepara o seu leito de pedra no umbroso caminho entre a biblioteca central e a reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina. Quando dois passantes o cumprimentam, não se detém na arrumação de seus parcos bens, acomodados sobre o banco gelado e úmido. Enquanto dobra uma coberta, única proteção para enfrentar a madrugada de um inverno que se insinua gélido, lança a eles um olhar amigável. Os gestos dizem, numa linguagem silenciosa, que luta para sobreviver mais uma noite na alameda abraçada por árvores .
Nenhuma acusação naqueles olhos que perscrutam a escuridão. Quase como se quisessem consolar, com luz benévola, os caminhantes noturnos, pela culpa ancestral que carregam por sua desgraça vivida na solidão. Mas a luzidia presença daqueles olhos não reduz a sensação devastadora de desconforto e vergonha. Saber que se vai ter uma porta para abrir e entrar em um lar acolhedor onde passar a noite, enquanto ele fica ali, ao relento, na sua cama de cimento…
Então, subitamente, diante da face e do corpo daquele homem pacificado em sua dor, soam ocos tantos números apresentados poucos minutos antes em um debate sobre políticas sociais no Brasil e na América Latina, num auditório da universidade. Como poderiam aqueles gráficos e estatísticas expressar a tragédia humana que se consuma na calada da noite?
O tema dos debates está ali, em carne e osso, desvelado, na sua nudez mais dolorosa, no vulto daquele homem que estudos e mapas classificam como “massa dos excluídos”. Sem nome nem identidade humana, ele está incluído, como um número, em gráficos de números majestosos pela desdita que carregam, alguns deles apresentados numa noite de maio por André Gambier Campos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, fundação pública federal que desenvolve pesquisas neste campo. Técnico da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, doutor em Sociologia pela USP, o pesquisador dividiu a mesa dos Encuentros 18:30 com a professora Beatriz Paiva, do curso de Serviço Social da UFSC, que coordena estudos sobre o sistema de proteção social no Brasil e na América Latina .
Avanços em números
A apresentação de André nesse encontro, organizado mensalmente pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos, primou pela apresentação de informações provindas de estudos patrocinados pelo Ipea. Os dados demonstram, em números e percentuais, avanços nas políticas sociais no Brasil desde a Constituição aprovada em 1988, elaborada sob a inspiração de se criar no país um Estado de bem-estar social aos moldes europeus, quando esse mesmo projeto de Estado já começava a ruir na Europa.
Os números dizem que houve um avanço significativo da despesa social federal desde a data de formulação da chamada “Constituição cidadã”, até anos recentes. Os índices, em relação à participação no PIB, passaram de 11,24%, em 1995, para 14,98%, em 2008. Esse percentual representa, em valores monetários, que o investimento saltou, de R%241 bilhões, em 1995, para R$472 bilhões, em 2008. A maior parte deste progresso nas políticas sociais resulta, segundo evidenciam os números, de investimentos do governo federal.
A despesa social da União representava 60,4% em 1990, chegando a 61,9% no ano de 2005. Nesse mesmo período, os Estados reduziram sua participação no gasto social, decaindo de 26,9% para 21,8%. Já os municípios revelam melhor posição, evoluindo os investimentos de 12,7% para 16,3%, no mesmo período.
O que é chamado tecnicamente de gasto social total, segundo dados de 2005, foi predominantemente aplicado na área da previdência (52,1%), atingindo 24 milhões de pessoas, os chamados beneficiários. Já as aplicações nos campos da educação e cultura e da saúde pouco cresceram, ficando nos percentuais de 18,7% e 15,1% no mesmo ano de 2005.
André Campos considera, no entanto, que são significativos os efeitos expansivos da política social desde a constituição de 1988, pois os investimento atingem, na atualidade, cerca de 24% do total do PIB. No campo da previdência, ele ressalta os rendimentos regulares e previsíveis que representam para a economia do país os proventos de aposentadoria. O pesquisador vê relevância na vinculação desses valores com o salário mínimo, lembrando que o perfil desse gasto é relacionado, em sua maior parte, com a população da base da pirâmide social.
Para o técnico do Ipea um dos desafios mais importantes da política social brasileira nos dias de hoje é de ela se “articular com a política econômica”, pois, na sua opinião, para os efeitos sociais se expandirem mais “o mercado de trabalho nacional tem que funcionar bem, para haver uma incorporação ativa e para o trabalho ganhar importância.”
Outro desafio, para o pesquisador, é a política social se articular com a política tributária, já que seu esforço distributivo é limitado. Ele lembra que a estrutura tributária brasileira é regressiva, porque atua tirando dinheiro dos pobres para fortalecer os ricos. Ele assinala também o problema da integração territorial na articulação das políticas sociais, uma vez que há uma dificuldade enorme para que os municípios do “fundão” brasileiro possam ter acesso aos recursos.
Interesses privados
André Campos enfatiza ainda a necessidade de se buscar garantir uma representação legítima da sociedade civil organizada para assegurar os interesses da população na aplicação dos recursos advindos das políticas sociais. Nesse sentido, denuncia que tem havido no Brasil uma “captura da dinâmica de representação pública por interesses privados.”
Em um artigo sobre a “Justiça e direitos sociais no Brasil”, publicado em Desafios do desenvolvimento, revista mensal de informações e debates do Ipea, o pesquisador lembra que, no campo da justiça, por exemplo, para um extenso grupo da população brasileira, o acesso a instituições do sistema judiciário ainda é bastante dificultoso. Entre 1990 e 2005, ele informa que o número de litígios apresentados ao poder judiciário cresceu 9,5% ao ano – uma multiplicação de quase 3,5 vezes ao longo do período. Entretanto, argumenta, “isso reflete as demandas de um grupo de órgãos e empresas, que litiga de maneira irrestrita, mas também abusiva (incluem-se aí órgãos da administração pública, empresas concessionárias de serviços públicos e empresas financeiras, como bancos e administradoras de cartões de crédito).
Ainda hoje, ressalta no artigo, ampla maioria da população não recorre ao sistema de Justiça para fazer valer seus direitos. E mesmo quando consegue ter acesso, encontra dificuldades para ver seus direitos assegurados, porque os serviços prestados pelas instituições judiciárias ainda se caracterizam pela morosidade, parcialidade e incerteza jurídica.
Já em uma entrevista, concedida à revista eletrônica Responsabilidade social, André afirma que, nos anos 90, a dinâmica da ordem econômica brasileira caracterizou-se por variadas exclusões, que atingiram diversos grupos da sociedade. Exclusões, esclarece, que, em alguma medida, puderam ser traduzidas na vulnerabilização das condições de vida de tais grupos, no âmbito da educação, da saúde, da habitação, do mercado de trabalho. Ele adverte, contudo, que, no debate atual, que se desdobra inclusive na grande imprensa, “a responsabilidade por essa vulnerabilização não aparece como sendo da ordem econômica, mas sim da ordem social.” Nesse sentido, ele observa: “O que se vê então é uma espécie de ‘sobre-responsabilização’ nociva desta última ordem, que não raro tem de responder a perguntas do tipo: “Como é que as políticas sociais brasileiras, gastando aproximadamente 23% do PIB, não resolvem a questão social do país?”.
Para a mesma revista, André responde que é preciso ter cuidado com dados que pretendem mostrar a proporção de recursos que, por meio da política social, o Estado destina a cada ponto da estrutura de classes brasileira (com destaque para os indigentes e os pobres). Até porque, ele diz, “freqüentemente, esses dados tendem a ‘resumir’ a questão social do país à questão algo restrita da indigência e da pobreza (ainda que ela seja crucial), “esquecendo” que ela na verdade diz respeito à questão mais ampla dos direitos e da cidadania.” Aliás, adverte, dados dessa natureza têm sido muitas vezes utilizados na discussão atual para ‘desmontar’ direitos duramente conquistados pela sociedade brasileira em áreas como a de educação, assistência e previdência social.”
André acredita também, como diz na entrevista, que, para além da discussão de porcentagens dos investimentos em certas áreas, “o fundamental é o debate acerca do investimento em políticas sociais universais em relação aos seus públicos, robustas no que se refere aos seus recursos materiais e humanos, perenes no que concerne à sua duração para além dos governos, articuladas em sua relação com outras políticas, integradas em cada ponto do território e acompanhadas de perto em sua formulação, implementação e avaliação pela sociedade civil.”
Pensar a América Latina
Beatriz Paiva apresentou algumas contraposições às idéias apresentadas por André Campos, dizendo, por exemplo, que não se sustenta, na sua forma de ver, a afirmação de que haja necessidade, no Brasil, de buscar articular as políticas sociais com as econômicas, pois isso já acontece de fato. “O modelo de política social no Brasil, que é focalista, regressivo e privatista, já é parte da dominação neoliberal, que se expressa em apropriação privada em vários campos da vida social.”
A professora do curso de Serviço Social, integrante do grupo de pesquisadores do IELA, afirmou que, ao pensar a realidade brasileira, é preciso inseri-la no contexto latino-americano. O grupo de pesquisa que ela coordena, por exemplo, já vem se dedicando, desde 2004, ao estudo de experiências latino-americanas relacionadas às políticas sociais, a partir de uma perspectiva marxista.
Ela alerta para a necessidade de se estar atento ao fato de os governos utilizarem tais políticas para “diluir o conflito social e manter, através da acomodação, uma certa coesão social de uma sociedade baseada na ética do trabalho e no ideário burguês.” O seu grupo de pesquisa, por isso mesmo, trabalha com a perspectiva de que as políticas sociais sejam portadoras de uma conflitualidade política que se insere no âmbito das lutas de classe.
O nó desse debate, pelo viés que o grupo adota nos estudos, é o de compreender como tais políticas podem vir a ser um importante espaço de disputa real de poder na sociedade. Porque esses quase 24% de investimento em políticas sociais, relativamente ao PIB nacional, na sua visão, “hoje não servem para nada, a não ser manter as coisas como estão”.
A pesquisadora enfatiza que o esforço de pensar a política social sob o ponto de vista do padrão europeu é vazia, pois aqui não há transferência de riqueza dos mais ricos para os mais pobres. Não existe ainda no Brasil sequer o imposto sobre as grandes fortunas, já instituído em alguns países da Europa. “No Brasil, quem paga os maiores impostos são sempre as classes empobrecidas.”
Beatriz fala ainda da impotência do Estado em organizar o “bolo” de dinheiro que verte da previdência social. De nada adianta, lembra, “ter 24 milhões de beneficiários, se dois terços deles ganham apenas um salário mínimo.”
Por fim, fala da necessidade de trabalhar perspectivas teóricas que expliquem porque esses números assombrosos, esses gastos sociais tão volumosos, resultam em um efeito quase nulo, já que o cenário brasileiro predominante é de famílias empobrecidas, trabalho infantil, mulheres com três jornadas de atividades, superexploração do trabalho. Por isso, para Beatriz, é mais do que necessário desvendar, através de pesquisas e estudos, o que chama de “mistério” das políticas sociais, vistas a partir de sua conflitualidade e de seu potencial de rebeldia e transformação.
Laboratório neoliberal
A professora recorda que os anos de 1960, 70 e 80 marcaram, na América Latina, o período de experimentação do grande laboratório das políticas neoliberais, que representou, e ainda representa, uma grande fonte de lucro privado. Em especial, cita o exemplo do setor da saúde, lembrando que o SUS, um grande espaço de luta social, vem sustentando empresas altamente lucrativas, que atuam em uma lógica de mercantilização. Esse é um dos motivos de sua discordância relativamente à posição de André Campos, quando ele diz que há necessidade de se articular as políticas sociais com a economia. Isso, como reforça na sua fala, já ocorre, como parte da dominação neoliberal que se traduz em apropriação privada de vários campos da vida social.
Todavia, Beatriz assinala, na América Latina se desenham na atualidade novos processos sociais em que o protagonismo popular aparece como uma realidade e uma possibilidade de mudança de rumos. Cita as disputas do povo venezuelano em relação ao excedente petroleiro, o que já permite uma maior socialização da riqueza e do poder na nação bolivariana. Lembra também as lutas sociais relacionadas ao referendo popular na Bolívia relativamente ao gás e à autonomia dos territórios, reivindicada pelos povos originários. “Esses são temas que não aparecem com a relevância merecida, porque a mídia abafa, mas é uma realidade hoje na América Latina que as classes subalternas estão em luta por uma sociedade igualitária.”
Sociedade igualitária que, para milhões de seres humanos, ainda é uma miragem, como reconhecem Beatriz. Mas ainda assim um sonho a ser perseguido, num campo de disputas ferozes minado pela dominação capitalista. Porque, só o poder transformador das lutas populares poderiam, talvez um dia, permitir que um teto para se abrigar e um prato quente de comida não continuem sendo apenas um sonho inalcançável para aquele homem adormecido sob as árvores de um campus universitário do sul do mundo.
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