Marx e a História – Gustavo Machado
Texto: IELA
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Intelectuais e revolução na Bolívia
Nildo Ouriques[1]
23/01/2009 – A perplexidade brasileira diante das profundas mudanças na sociedade boliviana não deixa de surpreender. À inconsciente ignorância sobre o país andino – o eurocentrismo determina maior simpatia sobre os europeus que sobre nossa condição latino-americana – se soma o preconceito e as resistências ideológicas ao governo do Presidente Evo Morales. Ele é o líder que chegou ao governo apoiado pela maioria indígena e conduz a Revolução Democrática e Cultural sem trair sua classe de origem, algo incomum nesta época incerta. O cocaleiro Evo Morales é, portanto, um político de novo tipo. A origem no movimento sindical e o profundo compromisso com os movimentos sociais não impediu a luta pelo poder estatal e sua radical transformação. Enquanto a sociologia da ordem transformava em algo abominável a luta pelo poder, Evo anunciou com palavras e atos que todo poder deve ser “obedencial”, ou seja, a maneira boliviana de traduzir a orientação zapatista segundo a qual aqueles que “mandam” devem fazê-lo “obedecendo” (“mandar obedecendo”). A consigna indígena é a superação do horizonte liberal da democracia representativa produzido pela democracia “participativa e protagônica” em curso em vários países latino-americanos. Para desespero do tradicional liberalismo e de certo marxismo adocicado – que insistem na suposta falta de compromisso democrático dos movimentos revolucionários – as transformações políticas na Bolívia revelam exatamente o oposto: a democracia representativa só se revela útil quando amparada em mecanismo de consulta permanente e exercício do poder pela via direta. Neste contexto, o reconhecimento da autonomia indígena e a consolidação de um estado plurinacional que ganharam recente reconhecimento constitucional, abriram um novo terreno para a luta socialista no continente.
A revolução social em curso na Bolívia não admite ambigüidades, ainda que implique, como em todo processo social, erros, avanços e retrocessos. Mas ninguém poderá negar que há objetivos claros a conquistar e um rumo traçado pelos novos protagonistas. Na Bolívia, longos anos de luta social culminaram na eclosão da Revolução Democrática e Cultural e exigiram uma nova conduta intelectual. A tradicional vassalagem intelectual cedeu espaço para a aparição de uma geração de intelectuais que combinam algumas virtudes esquecidas no Brasil. A primeira delas é a vocação nacional da reflexão teórica destinada a identificar e encontrar saídas para os grandes problemas sociais: a miséria da maioria da população, o racismo em relação aos povos originários, a conquista definitiva da soberania nacional, a descolonização do saber. Mas enganam-se aqueles que, colonialmente, restam virtudes teóricas neste novo saber, minimizando sua importância “universal”. A nova geração de intelectuais bolivianos – alguns bastante idosos, diga-se – não somente orientam sua reflexão em estreita sintonia com a praxis de milhões de pessoas, como são convidados freqüentes nas universidades européias ou mesmo ensinam no continente europeu. Além disso, a teorização sobre a democracia, o estado, as classes sociais, a economia, o racismo se articulam e possibilitam novas formulações longe da simulação intelectual e do mimetismo colonial que caracteriza a maior parte das ciências sociais produzida no meio universitário.
Por outro lado, também erra aquele que julga o ativismo político dos intelectuais bolivianos e a eleição de seu objeto de pesquisa apenas como expressão da conhecida submissão intelectual à razão de estado. Ao contrário, a geração de pensadores que emergiu do longo conflito no país foi testada na marginalidade e suportou as marcas profundas do terrorismo de estado que com inegável freqüência ali se verificou. Eles aprenderam – talvez como poucos – resistir tanto aos horrores das ditaduras quanto aos encantos do poder. A reflexão produzida esta longe do “espírito universitário” dominante no Brasil, razão pela qual a vitalidade teórica é maior, pois cada página escrita e todo livro publicado, queima os barcos que, na hipótese de mudança dos ventos, impediria a tradicional readmissão na “sociedade respeitável”. Mas a resistência política e a vitalidade teórica não nascem exclusivamente da sobrevivência sob condições políticas tradicionalmente adversas. Há algo mais importante no país andino: a persistência do racismo. Foi Bolívar Echeverría, o filósofo equatoriano radicado no México, quem escreveu que o “racismo normal da modernidade capitalista é um racismo da blanquitud”, revelando as razões pelas quais enquanto prevalecer o capitalismo o racismo será uma condição indispensável da “vida civilizada”. A dominação de classe que condena milhões à marginalidade e a exploração capitalista é impensável sem o racismo. Na Bolívia e no Brasil.
Esta inesperada conduta intelectual, expressão das novas exigências sociais sobre o trabalho teórico, pode ser conferida no excelente livro de Raimundo Caruso e Mariléa Leal Caruso sobre a Bolívia (Jakaskiwa, Inti Editorial, Florianópolis, 2008). Produto de uma viagem à terra de Evo Morales, de intensa pesquisa e posterior interesse sobre as mudanças políticas naquele país, Raimundo e Mariléa nos oferecem um panorama extraordinário tanto das transformações sociais em curso quanto da vitalidade intelectual no país andino. Nas longas entrevistas com mais de 20 personagens bolivianos, podemos observar a vitalidade intelectual existente na Bolívia, produto e ao mesmo tempo exigência, da Revolução Democrática e Cultural encabeçada por Evo Morales. O jornalista Raimundo Caruso não é um neófito em América Latina, pois também publicou em 1979 A Revolução Sandinista e, em 1988, A invasão brasileira de 1965 e a guerra de Santo Domingo, dois exemplos de trabalho nos qual o jornalismo é muito mais do que um modelo de propaganda. Para aqueles que julgam a intervenção atual do Brasil no Haiti a partir da doutrina do novo “humanismo intervencionista”, a tragédia de 1965 em Santo Domingo é exemplar e não deveria ser ignorada pelos ingênuos que ainda se orgulham da tentação subimperialista brasileira.
No Brasil, intelectual considerado “sério” não começa artigo ou exposição sem o solene “Kant disse…” ou o insistente “segundo Habermas…”. Não é comum, portanto, para o leitor de formação eurocêntrica reconhecer méritos ou mesmo a simples existência de uma vigorosa tradição intelectual na América Latina. Neste contexto, como evitar, então, o conhecido desprezo sobre a Bolívia, no esforço de dois inquietos “jornalistas” catarinenses? A obra Bolívia Jakaskiwa é a crônica do despertar latino-americano que deixou para trás o tempo em que vivíamos das migalhas ideológicas da Europa ou dos Estados Unidos.
[1] Professor de Economia e Presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC)
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