Por Cuba – Casa das Américas (E 08)
Texto: Davi Antunes da Luz
Aguarde, carregando...
Pátria es humanidad
Por Raquel Moysés – jornalista
29/07/2008 – A cena de um ser humano negro, feito escravo, submetido a castigo cruel penetrou de modo devastador no espírito livre do menino. E foi essa imagem dolorosa que, desde os anos juvenis, fez sublevar o ânimo de José Martí, uma vida marcada por batalhas concretas para a criação de um pensamento latino-americano. Nascido em Havana, filho de um espanhol e uma mulher das ilhas Canárias, Martí era único menino em uma família de sete irmãs. E foi no seio desse pequeno gênero humano que principiou o burilar do intelectual multifacetado: professor, poeta, jornalista, escritor, diplomata, político, um pensador revolucionário precursor do processo independentista e da revolução de Cuba.
O vulto humano desse homem do século XIX, atormentado desde os anos primevos pela dor de um escravo torturado, veio à tona durante a quarta edição das Jornadas Bolivarianas do Instituto de Estudo Latino-Americanos (IELA/UFSC). Com traços firmes e generosos, a figura de Martì foi desenhada por um seu conhecedor minucioso, estudioso atento que nasceu em terras brasileiras: Eugênio Rezende de Carvalho, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás e autor de Nossa América: a utopia de um Novo Mundo (Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Editora da UFG, 2003). Nas jornadas, o conferencista tratou do tema “O pensamento nacional-popular em José Martì”, enfatizando aspectos fundadores das idéias de um revolucionário pensador.
Pesquisador que se embrenhou por mais de dez anos nas sendas da obra martiana para escrever dois livros, Eugênio Rezende, ao discutir o tema das jornadas, Nações e Nacionalismos na América Latina, lembrou que não é o conceito de nação, mas o de pátria, que se sobressai na obra de José Martí, que contribui fartamente em discussões como questão nacional, identidade, integração e unidade dos povos latino-americanos.
“La libertad no muere jamás de las heridas que recibe. El puñal que la hiere lleva a sus venas nueva sangre”.
Rezende conta que antecedentes da idéia de pátria já estavam presentes na obra juvenil de Martí. Aos 16 anos, ele publicara Abdala, uma peça teatral que traz antecedente importante de seu conceito de pátria e do ideal independentista de Cuba. Desse drama com características autobiográficas, emerge a figura de um jovem revolucionário, Abdala, que prefere a morte a ver sua pátria nas mãos dos opressores. Núbia, o lugar onde o drama se desenrola, é nítida referência à Cuba de então, sofrida colônia espanhola. E o futuro revelaria o trágico paralelo da vida da personagem – que morre nos braços da mãe – e a história real de seu jovem criador José Martí, que entrega a vida na luta pela liberdade da pátria cubana.
Em decorrência desse primeiro drama patriótico em versos e de sua militância política, Martí é preso, submetido a trabalhos forçados na sua ilha e depois deportado para a Espanha. Lá, na terra de seus antepassados, num folheto, El Presídio Político en Cuba, escrito na prisão em 1871, destaca a contradição da pátria espanhola, que clamava pela liberdade mas negava o mesmo direito a outras pátrias.
Em outro folheto, de 1873, ele apelaria ao governo espanhol republicano vitorioso que respeitasse o desejo de independência de Cuba. Ali, já apresenta, com claridade, sua definição de pátria, que é muito mais que pedaço de terra sem liberdade e sem vida. É, no seu definir, uma comunidade de interesses, de fins, uma unidade em torno de um passado, tradições, modos de vida, costumes, esperanças, laços de fraternidade e amor entre seus filhos.
Tal definição se diferenciava da visão tradicional, de que pátria se finca em território e se expressa em língua, religião e raça. A idéia de pátria pensada por Martí se funda, como constata Rezende, principalmente sobre pilares de liberdade e justiça social. Importante considerar, nesse sentido, que as bases de seu pensamento sobre patriotismo vão se moldando no período do exílio, em que Martí vivencia a aflição de viver apartado de sua terra por força da violência do colonialismo. E como, para ele, pátria não era só território, não bastaria apenas retornar a sua ilha caribenha. Habitar uma pátria sem liberdade seria viver como desterrado na própria pátria.
“Libertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y a hablar sin hipocresía”
Aí reside, nesse apego à liberdade, como diz o professor da Universidade Federal de Goiás, a estreita ligação do conceito de patriotismo e o ideal independentista martiano: “a pátria em Martí era, antes de tudo, uma pátria livre” Por isso é que ele só via a possibilidade real e efetiva de independência com o rompimento dos laços que atavam sua terra, submetida à condição de escrava espanhola.
O conceito de independência em Martí, como lembra Rezende, é de conteúdo ontológico, individual e moral: a independência só poderia ser conquistada pela consciência de um novo modo de vida. A independência, portanto, a partir desse viés, é um processo. E o único modo de celebrá-la seria ir muito além de uma mera independência territorial. Daí, se levantar em Martí a idéia da necessidade de uma segunda independência: a de espírito.
A idéia martiana de pátria também é marcada pela constatação da presença de um “outro” (externo), que se contrapõe, ameaçador. Primeiro, o colonialismo espanhol. Depois, o desejo anexionista e o imperialismo dos Estados Unidos. Assim, o amor pátrio não se exprimia como simples amor à própria terra, mas como ódio e rancor a quem a atacasse e pretendesse anexá-la ao próprio território. Martì, nesse sentido, é fortemente anti-imperialista. Seu independentismo, como explica Rezende, assume um forte caráter anti-imperialista e anti-anexionista.
Vivi en el monstruo, y le conozco las entrañas.
Cronista do Congresso Interamericano de Washington, em 1889, Martí escreveu, de seus bastidores, artigos e crônicas para dezenas de periódicos. Denunciava os propósitos da liga de anexação americana, que fomentava a idéia da venda de Cuba aos Estados Unidos, pela Espanha. Ali, durante 15 anos de sua permanência nas entranhas do “monstro”, que ia decifrando em textos, Martì via confirmarem-se suas suspeitas das reais intenções dos vizinhos do norte. Por isso, em seus escritos, dava ênfase para o que estava em jogo naquele momento histórico: a honra pátria e a dignidade dos cubanos.
Naqueles dias corria uma campanha difamatória do povo cubano nos Estados Unidos, e os textos jornalísticos de Martí se revelam preciosos para entender o debate hipócrita que se dava no congresso estadunidense. Os parlamentares defensores da anexação cubana usavam o argumento espoliador das vantagens econômicas que adviriam e enfatizavam a conveniência da posição estratégica da ilha. Os que eram contra não se moviam por sentimentos altruístas, mas manifestavam idéias preconceituosas e racistas em relação “àquele povo”, mescla de africanos e europeus de segunda classe (que não descendiam de ‘transpirinaicos’)”. Diziam os contrários à anexação que aquele povo “menor” não era digno de obter a cidadania “americana”.
“Es preferible el bien de muchos a la opulencia de pocos.”
Há outro artigo de Martí que causou efeitos duradouros. Publicado em 30 de janeiro de 1891, Nossa América representa uma exposição do ideário do ser latino-americano. Uma reflexão cujo antecedente mais poderoso havia sido o texto “Cartas da Jamaica”, de Simón Bolívar, escrito em 1815. Nuestra América é o desafiante projeto intelectual de Martí para superar alguns dos grandes malefícios herdados da colonização: o latifúndio, a monocultura, a escravidão e a discriminação racial.
Martí se afligia pelo fato de a juventude latino-americana sair da universidade enxergando o mundo e sua própria terra com olhos estrangeiros. Por isso é que vislumbra o dia em que a universidade européia, predominante na América Latina, pudesse dar lugar a uma universidade e um pensamento autenticamente americanos, sem isolar, contudo, as repúblicas americanas do mundo. Assim, exortava: “Enxerte-se em nossas repúblicas o mundo; mas o tronco terá de ser o de nossas repúblicas. E cale-se o pedante vencido; pois não há pátria na qual o homem possa ter mais orgulho do que em nossas sofridas repúblicas americanas”.
E, dentro dessa revolução cultural, nesse processo de assumir-se a verdadeira identidade, preconizava que o ensino de história se voltasse para o estudo dos incas e não mais dos gregos, pois “a nossa Grécia (o passado pré-colombiano das Américas) é preferível à Grécia que não é nossa”. Só assim, acreditava, os políticos “nacionais” substituiriam definitivamente os “exóticos”, aqueles que pensam de acordo com teorias e modelos estranhos à nossa América.
Diante de um cenário de subserviência ao pensamento eurocêntrico, Martí indicava que o caminho da salvação é criar. No mesmo trilhar do mestre de Bolívar, o educador revolucionário Simón Rodriguez – que afirmara “ou inventamos ou estamos perdidos” – Martí desafiava a juventude: “Os povos se levantam e se cumprimentam. ‘Como somos?’ se perguntam; e uns e outros vão dizendo como são. Quando aparece um problema em Cojimar, não vão buscar a solução em Dantzig. As levitas ainda são da França, mas o pensamento começa a ser da América. Os jovens da América arregaçam as mangas, põem a mão na massa e a fazem crescer com a levedura de seu suor. Entendem que se imita demais e que a salvação é criar. Criar é a palavra- chave desta geração”.
Comunidade de interesses
Martí se vê impelido a uma reação de sobrevalorização de seu povo diante desse inimigo externo, que se expressa através do colonialismo e da política expansionista estadunidense. É nesse tempo que ele trabalha a idéia de liberdade e de pátria como dever de humanidade. Nesse sentido, recebe a influência da obra de Victor Hugo – com quem se encontrara e de quem traduzira obras em espanhol – e para quem a pátria era algo situado entre homem e humanidade e visava a concórdia humana.
A influência de autores estóicos é decisiva para fazer emergir em seus escritos o conceito de pátria como uma comunidade de interesses. Um território, portanto, não é uma pátria sem uma necessária “alma pátria”, que se expressa em vivências e aspirações comuns a todo um povo. Em Martí, a idéia de nação se enlaça com o sentido de consciência moral. Ele acreditava que relações horizontais de amor permitiriam constituir uma nova ordem social mais avançada. Já em sua obra juvenil, Abdala, afirmara que “pátria era para ser venerada”. E para velar por essa pátria, e ser uma espécie de guia e guardião dos valores pátrios, ele exaltava a figura do “herói pátrio”.
Rezende ressalta que há vários aspectos de originalidade no conceito martiano de pátria, carregado de uma dimensão filosófica que se ampara nas categorias do particular e do universal. Cada homem deveria viver em harmonia com sua terra, sem negar suas raízes, mas buscando construir caminhos num esforço próprio. As contribuições alheias, estrangeiras, não deveriam ser nem negadas nem reproduzidas como mera cópia, mas “cultivadas“, segundo o próprio solo. “Que venham todos os enxertos, mas o tronco tem que ser americano”, dizia.
Utopias cosmopolitas
Assim, ao distanciar-se de uma perspectiva localista, ao mesmo tempo se afastava de um sentimento nacionalista extremado. As pátrias, em Martí, não se definiam por limites de hierarquia. Ele vislumbrava um mundo em que coexistissem os orgulhos nacionais e as utopias cosmopolitas. Há o particular e o universal em sua idéia de pátria. O sabor próprio e peculiar de cada terra, a individualidade de cada povo, mas sem negar a contribuição de outros povos e idéias. Seu pensamento caracterizava um esforço para adaptar o valor pátrio à condição humana em geral, a partir de uma particularidade: Pátria es humanidad.
Essa ênfase de articulação entre o particular e o universal expressava sua preocupação não apenas com a condição peculiar de sua pátria, mas com critérios e princípios que vislumbravam uma universalidade. Daí o seu patriotismo estar visceralmente atado a seu americanismo. Há em Martí a vitalidade de uma idéia de identidade continental intimamente relacionada à identidade pátria. Que não era excludente. Daí ter lançado mão dos mesmos critérios de pátria para compor seu pensamento de um americanismo universalista, que culmina em sua inspiradora concepção de pátria nuestramericana.
O que torna Martí um pensador excepcional, do ponto de vista de Rezende, é o fato de que ele sorveu dos ideais nacionalistas do século XIX na Europa, nutriu-se das formulações clássicas, mas galgou degraus de originalidade na América Hispânica, com o conhecimento profundo de suas especificidades, sua alma nacional. Assim, seu conceito de pátria nuestramericana está pleno dessa originalidade. A liberdade como condição vital de pátria; a afirmação dos ideais independentistas, que se traduzem em anti-imperialismo e anti-anexionismo; a idéia de comunidade de interesses e a comunhão de ideais; esforço de adaptar o valor pátrio à condição humana em geral, já que “pátria é humanidade”.
Tudo isso é o que dá viço, vigência e atualidade ao pensamento martiano, ainda amplamente desconhecido no Brasil. Revolucionário que trilhou América e que conseguiu antever “o mais cruel de todos os imperialismos” – o estadunidense – Martí permanece pleno de vitalidade, em um mundo em que a realidade da escravidão e do colonialismo é devastadora. Nos seus Versos Sencillos, lê-se um testamento que se cumpriu nele. Mas que se renova em cada novo lutador que se expõe ao perigo das batalhas, de cara para o sol.
Oculto en mi pecho bravo
La pena que me lo hiere:
El hijo de un pueblo esclavo
Vive por él, calla y muere.
Yo sé de un pesar profundo
Entre las penas sin nombres:
¡La esclavitud de los hombres
Es la gran pena del mundo!
¡Yo quiero, cuando me muera
Sin patria, pero sin amo,
Tener en mi losa un ramo
De flores, y una bandera!
No me pongan en lo oscuro
A morir como un traidor;
Yo soy bueno, y como bueno
Moriré de cara al Sol!
Versos Sencillos, José Martí
Texto: Davi Antunes da Luz
Texto: Elaine Tavares
Texto: Julio Gambina - Argentina
Texto: IELA
Texto: João Gaspar/ IELA