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Caminhada no Brasil, pelo Haiti

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Por IELA em 13 de junho de 2008

O professor e ativista haitiano Didier Dominique participou de uma  série de debates, em 11 cidades brasileiras. A caminhada foi organizada pelo Jubileu Sul Brasil,  uma rede de movimentos sociais, organizações populares, religiosas e políticas, comunidades e campanhas da América Latina, do Caribe, África, Ásia e Pacífico, que atuam pelo cancelamento e repúdio às dívidas externas e internas, exigindo a reparação e restituição do imenso dano que elas provocam aos países endividados. Os debates tiveram o propósito de   denunciar a situação vivida pelo povo do Haiti e de reivindicar das autoridades brasileiras a  imediata retirada das tropas militares daquele país.  Em sua jornada pelo Brasil,  Didier defendeu  de se revertam os gastos militares em projetos para o povo haitiano e que  se promova o cancelamento da dívida externa de seu país, já paga, e com muito sangue.
Didier Dominique e Rachel Beauvoir Dominique, ambos professores da Universidad Nacional de Haiti, estiveram, no mês de março,  em   Fortaleza, Recife, João Pessoa, Natal, Salvador, Brasília, São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Rio de Janeiro. Eles foram recebidos no país como representantes de um povo lutador, que em 1804 alcançou sua independência com a luta  grandiosa dos escravos,  condenados a  trabalhar e sobreviver uma média de  6 a 7 anos em campos de trabalho  agrícolas. O casal de militantes de Batay Ouvriye (Batalha Operária), movimento de luta dos trabalhadores haitianos,   reivindica  o fim do saqueio financeiro e a reparação das dívidas históricas, sociais e ecológicas que pesam sobre o seu país.
Em entrevista coletiva realizada no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro,  Didier declarou que “o povo haitiano odeia as forças de ocupação da Minustah diferentemente do que mostra a mídia. Na verdade, a solidariedade do governo brasileiro, supostamente com o Haiti, é uma solidariedade de classes dominantes do Brasil, do Haiti e dos EUA para a exploração da mão-de-obra haitiana”.
O professor lembra como aconteceu, em anos recentes,  a  ocupação econômica do Haiti, que precedeu a ocupação militar. A estratégia começou na época em que Ronald Regan era o presidente estadunidense, com a aprovação do Caribbean Basin Initiative, um tratado comercial de exploração dos trabalhadores  da América Central e Caribe, para que esses servissem de mão-de-obra barata às fábricas de tecido. Empresas estadunidenses e canadenses, como Levy-Strauss, Gap, Wangler, Disney e Sara Lee, foram para o México primeiro, depois para a América Central – Honduras, Nicarágua, Guatemala, El Salvador – e finalmente para o Caribe. “Isso já estava planejado. É um plano escrito, pensado e aplicado pelos governos estadunidenses”, diz Didier.
Com a aplicação desse plano,  os Estados Unidos destruíram a economia haitiana em vários setores. Sob a pressão de produtores de carne estadunidenses usaram como pretexto uma suposta onda de febre suína e  mataram todos os porcos crioulos do Haiti, entre 1978 e 1982. Naqueles anos, o Haiti era o principal produtor de carne suína do Caribe, com mais de 2 milhões de cabeças. Os EUA e o BID investiram, segundo Didier,  25 milhões de dólares para matar os porcos, gerando desmatamento e               reprimindo com violência a resistência dos camponeses. Ele cita o relatório da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti, que esteve no país em 2005 e 2006, o qual aponta os responsáveis por esse crime: governo dos EUA, FAO, Usaid e BID.
Além disso, fizeram também sucumbir as  indústrias de açúcar, arroz e café haitianos, durante os anos 80. Engenhos de açúcar foram comprados e fechados pelas multinacionais, e hoje, o  Haiti, que antes exportava o excedente, importa 100%  do açúcar do que consome. Na década de 90, foram firmados acordos com a Rice Corporation, que passou a competir de forma desigual, através de subsídios ao  arroz estadunidense e, em  três anos, a produção haitiana caiu 70%. Hoje o arroz estadunidense custa caro ao povo, cada vez mais empobrecido.
Invasão militar
Em meio ao caos produzido pelo terrorismo econômico, o governo haitiano se disse incapaz de “manter a ordem.” A situação tinha se tornado explosiva, com 85% dos haitianos  desempregados. Assim , a ONU, a convite dos governos e partidos políticos haitianos, enviou, em 1° de junho de 2004, a Minustah – Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, comandada por tropas do Brasil, país irmão, que tantos haitianos amam.
As forças de ocupação estão integradas por mais de 7 mil homens  de aproximadamente 30 países de todos os continentes. Didier esclarece   que Cuba e Venezuela nunca participaram dessa força de ocupação, e que  Bolívia e Equador estariam se retirando,  depois da eleição de Evo Morales e Rafael Correa. O governo espanhol, de   Zapatero, também retirou as tropas do Haiti, fazendo o mesmo relativamente ao Iraque.
São múltiplos os interesses nesse  jogo da ocupação . O relatório da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti, que esteve no país em 2005 e 2006,  levantou uma série de perguntas: “Qual é a ameaça à paz e a segurança internacional da região levantada pelo Conselho de Segurança da ONU para justificar o estabelecimento da Minustah? É o temor dos EUA de receber mais uma onda de refugiados haitianos, fugindo da pobreza e da exclusão em embarcações precárias? É a possibilidade de perder o controle sobre uma zona geopolítica estratégica? A simultaneidade da revolta no Haiti e o aumento das pressões de Washington sobre a Venezuela e a multiplicação das ameaças dos EUA a Cuba é simplesmente uma coincidência?”.
Relativamente à última questão, Didier comenta que os EUA estão construindo uma base militar a noroeste do país, em frente ao litoral cubano, e negociando outra base ao sul, em frente à Venezuela. A localização do país, como frisa,  é extremamente importante na estratégia imperialista dos Estados Unidos para a América Latina e o Caribe.
Fogo “amigo”
Em entrevista ao  Informandes Online, Didier falou sobre  a atuação das forças da Minustah,  contando que, no princípio, as forças brasileiras, argentinas, uruguaias, chilenas,etc,  que estão no Haiti,  não tinham muita incidência. Mas, quando, aos poucos o  povo, premido pelas necessidades,  começou a se mobilizar e a reivindicar,  começaram a atuar com violência.
“Nas vilas, bairros e favelas  estão semeando o terror. Há muita matança, inclusive de crianças,  um verdadeiro terror contra os trabalhadores.  As tropas invadem constantemente,   com tanques, Cité Soleil, Solino, Pelé e outros bairros populares e favelas, disparando em tudo o que há e de maneira brutal provocando mortes, principalmente entre a população civil, chegando a matar velhos e crianças”.  Então, explica Didier, a ocupação se torna cada vez mais antagônica ao povo,  pois caiu enfim a máscara de que as forças vieram ajudar. “Entendeu-se que elas  estão lá para proteger o projeto burguês, proteger as fábricas burguesas, os próprios burgueses e atacar o povo, semeando, como digo, um terror. Há uma matança que não está sendo causada pelos bandos armados ligados às drogas etc, e sim pelas forças da paz burguesa”.
Sobre as chamadas  milícias do narcotráfico Didier explica que François Duvalier, tirano  que governou por quase 30 anos o Haiti, havia infiltrado os tonton macoutes no meio do povo, nos bairros populares, nos sindicatos,  no campo.  Conhecido como Papa Doc, Duvaliou instaurou uma ditadura feroz, baseada no terror policial dos tais tontons macoutes (bichos-papões) – sua guarda pessoal – e também na exploração do vodu. Presidente vitalício, ele  exterminou a oposição, ficando no poder até a morte, em 1971. Foi então substituído por seu filho, Jean-Claude Duvalier – o Baby Doc –  responsável por mais uma temporada de horror, até fugir para a França, em 1985.
Com a fuga de Duvalier filho, rompeu-se a estrutura de terror que instalara, mas agora, paradoxalmente, explica Didier Dominique,  são as classes dominantes que se beneficiam com esses bandos, mesmo pagando caro, pois também sofrem seqüestros. Porém, como esses bandos armados também oprimem o povo, semeando o terror, as forças da ONU fazem, segundo o professor, um jogo duplo: lutam  um pouco contra essas forças armadas, que não conseguem controlar, mas querem sua presença,  porque funcionam como terror contra o povo também. “Nas favelas, onde não existe tanto controle desde a saída de Duvalier, os bandos armados e a Minustah  têm o mesmo papel. Então, o terror dos bandos armados ou dessa “força de paz”  é o mesmo. Por isso é  que as forças da ONU não lutam verdadeiramente contra os bandos armados. A Minustah tem tanques, armas e homens para atacar os bandos armados, mas não o faz porque precisam deles”.
Povo se organiza em meio à repressão
 
Didier esclarece que a organização da classe trabalhadora se faz com imensas dificuldades.  Há uma repressão anti-sindical bastante forte no Haiti, por isso é  muito difícil consolidar sindicatos. “Às vezes a luta tem que ser clandestina. Mas já começamos a nos organizar também nos bairros e não apenas nas fábricas. Então, a Batalha Operária, por exemplo, se organiza em lugares possíveis, inclusive em igrejas, mesmo que essas também sejam alvos da Minustah”.
Didier conta que uma das primeiras ações que a força dos Estados Unidos fez, antes da chegada das tropas latino-americanas,  foi invadir e destruir organizações importantes como a Antena Operária. “Eles  destruíram tudo, supostamente buscando alguém que fazia falsos passaportes, o que nunca foi provado. Agiram  contra os operários, trabalhadores e camponeses, mas mesmo assim, pouco a pouco,  estamos lutando e iniciando uma resistência”.
O professor  explica que a repressão vem  de todos os lados. Também por parte dos patrões – que têm bandos armados em suas fábricas –   e paramilitares. “Porque esses bandos armados, é preciso entender claramente, são sustentadas por alguém. De onde tiram o dinheiro para ter tantas armas? De gente rica, das drogas, dos capitalistas. De gente que pode ter todo esse dinheiro não somente para as armas, mas também para as munições, etc. Ou seja, há toda uma estrutura,  sustentada por classes poderosas e dominantes, que ataca a população civil  nos bairros pobres e nas organizações dos trabalhadores. Então, isso deixa evidente o propósito da presença dessas forças armadas da ONU.”
No Haiti  há um código de trabalho que deveria garantir a organização sindical, mas  a realidade contraria a lei. “Os burgueses no Haiti, explica Didier, formam uma das classes dominantes mais repugnantes do mundo, porque também é uma das mais débeis do mundo. “Por isso têm que reprimir muitíssimo para extrair proveito, porque quem mais tira proveito dessa repressão são as   multinacionais, o imperialismo.” Desse modo,  esclarece, no Haiti,  a repressão é total, mas contraditória. “Porque essas multinacionais querem explorar o povo de uma maneira extrema,  e isso constrói o antagonismo necessário para que essa classe explorada se levante”.
A Batalha Operária, por exemplo,  é um movimento amplo,  que reúne trabalhadores sindicalizados e desempregados, que lutam em certo nível de  clandestinidade  ou  organizados em seus bairros. O movimento também inclui pequenos camponeses, associações de bairros e até associações de pequenos vendedores e associações de estudantes. “Mas – explica Didier –  o movimento se chama precisamente Batalha Operária porque sabemos,  por experiência própria, que  todo o sistema que nos oprime –  e que oprime a todos os trabalhadores, e todo o povo, incluindo os estudantes, os desempregados –  é dirigido pelos capitalistas. O estado é só um aparato para organizarem seu projeto. Então, entendendo isso, para nós,  a classe fundamental frente a esse projeto é a classe operária.”
Didier diz  que a Batalha Operária tem  interesses e uma  orientação bem próxima à da Conlutas, no Brasil. Ambos os movimentos buscam organizar os trabalhadores  para reagir a  governos que se apresentaram como populares, que eram de trabalhadores, mas  que não cumpriram o que diziam em suas campanhas. Ele conta que no início os haitianos tinham simpatia pelo governo Lula, pois viam com bons olhos o processo latino-americano de eleição de governos que se diziam de trabalhadores. Mas, pouco a pouco,  a desilusão assomou. Os trabalhadores viram seus direitos pisoteados e, nos bairros populares, com a ação violenta da Minustah, veio a mistificação de uma “paz”,  que Didier chama de  “paz dos cemitérios.
Por todo o cenário que se vive hoje na América Latina, é que os militantes  da Batalha Operária afirmam, como lembra Didier, que a linha a seguir é aquela estritamente baseada nos interesses das classes trabalhadoras e do povo em geral. Só assim, acreditam esses lutadores,  será possível unir todas as classes dominadas num amplo movimento de luta popular e libertadora.

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