História e Pensamento Militar
Texto: IELA
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Toda quinta feira elas dão à luz
Por Raquel Moysés – jornalista
Há 30 anos, na Plaza de Mayo, parimos nossos filhos
30/10/2006 – Ela é mãe universal e esparrama sementes com sua palavra poderosa. Sabe ser terna como uma menina e doce como fruta madura no ponto justo. Mas também consegue ser dura como rocha.E essa dureza necessária que a vida lhe exigiu ter pode ser traduzida como resistência. Hebe de Bonafini carrega um “título” que lhe dá autoridade para entrar em qualquer lugar no mundo, mesmo sem ser convidada. É presidente da Asociación Madres de Plaza de Mayo e traz na cabeça o lenço branco reconhecido em todas as partes como o signo de uma história de dor e luta. No triângulo alvo, bordado em letras de cor azul, se lê: Aparición con Vida de los Desaparecidos.
Há gente espalhada por todos os cantos do auditório durante a aula aberta de Hebe na Universidade Federal de Santa Catarina. Ocupando todas as cadeiras e, na falta delas, sentada no chão, uma juventude atenta predomina entre o público. São meninos e meninas que, pelos olhares e gestos, revelam estar ali por inteiro e não apenas de corpo presente como acontece em muitos eventos da academia. Um jovem de cabelos encaracolados compartilha com os demais uma alegria incontida ao declarar: A inspiração que a senhora traz para todos nós é enorme. É uma honra estar aqui com Hebe de Bonafini!
A energia que se sente no ar dá densidade a uma manhã plena, oferecida em conjunto pela disciplina de História da Psicologia Social na América Latina, Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) e Furb. Cada palavra dessa mãe da Plaza de Mayo parece alcançar de modo diferente os seres, mas, em alguns momentos, a resposta é única: os aplausos se levantam demoradamente.
Uma estudante novinha, sentada na primeira fila, anota tudo o que consegue e, vez ou outra, não consegue evitar um comentário de admiração trocado com a vizinha de cadeira. Das janelas do auditório iluminado pelo sol, avista-se o verde, mas os olhos da platéia seguem fixados na figura dessa senhora que se aproxima dos 80 anos com a vitalidade de uma jovem mulher. Será porque, como diz, a luta não pode ser um peso, tem que fazer parte da vida. Porque lutar tem que trazer prazer, como o ato de comer e o de fazer amor…
Será porque, quando Hebe fala, suas palavras saem impregnadas de verdade e testemunham a dimensão universal do amor. Será também porque essa mãe não tem pudor de contar como enfrentou o despreparo de sair do fogão e do tanque para as ruas, as marchas, acabando por assumir o papel de dirigente de um movimento de mulheres desesperadas. Será ainda porque aprendeu a se comunicar com a humanidade, falando como uma educadora. Uma educadora autodidata, que hoje é reitora da Universidade Popular das Madres de Plaza de Mayo. Eu nunca havia feito política, pensava que para isso havia vocês, os jovens…Que equivocada estava…! Tive que entender o que era a dívida externa,tive que descobrir que ela destruiu nosso país e outros da América Latina… e só então percebi que a dívida externa também foi responsável pelo desaparecimento de nossos filhos… A ação exige leitura, pensamento… Por isso é que hoje digo a vocês que é necessário estudar, se preparar, se formar.
E é com a habilidade de uma educadora, dessas que se comunicam para dentro dos seres, que Hebe conta a luta sem trégua que mães argentinas conduzem, desde 1976, quando a ditadura militar tirou do poder um governo eleito pelo povo e iniciou o processo de aniquilamento das lideranças juvenis. Daquela data até o início dos anos 80, os militares destroçaram a vida de milhares de famílias, fazendo desaparecer 30 mil militantes – um cálculo que nas contas de alguns pode subir até 50 mil – obrigando ao exílio mais de 1,5 milhão de pessoas. Assoladas pelo horror, as mães saíram em busca de seus filhos e filhas, e quando chegavam às portas do poder, quando iam aos cárceres, recebiam a cínica resposta de que não havia qualquer onda de detenção, que não existiam desaparecidos na Argentina. Até as portas das igrejas se fechavam para elas, embora tenha havido, naqueles anos, mais de uma centena de sacerdotes também tragados pelo terror. Nas casas dos procurados, os policiais chegavam armados e rompiam tudo, devastavam os lares.
Até que, depois de percorrer meses a fio os mesmos lugares em busca de seus filhos, 14 mulheres decidiram entregar uma carta para o ditador de turno. Eram três horas e meia de uma tarde de quinta-feira, dia 30 de abril de 1977. Desde então, nos últimos 30 anos, as madres não faltaram um só dia a esse compromisso de resistência em frente à Casa Rosada, sede do poder argentino, em Buenos Aires. Seguimos lutando por justiça e exigindo a prisão para os assassinos de nossos filhos. Não deixamos um minuto sequer de amar nossos filhos e de reivindicar que seja reconhecida sua vida de guerrilheiros e revolucionários.
Decidimos socializar a maternidade
Hebe se lembra de quanto foi difícil organizar o movimento das madres. Quando umas 70 mulheres conseguiram se juntar, foram golpeadas pela ditadura, que as fez prisioneiras, queimou suas casas, levou outros de seus filhos e também algumas das mães mais aguerridas, torturadas e atiradas ao rio como suas criaturas. Depois disso tudo, voltamos a ser “muy poquitas”. Algumas diziam: “vocês estão loucas, vão nos matar todas.” Mas outras de nós não desistimos mesmo sabendo que nossas vidas não alcançariam o tempo necessário para buscar nossos filhos. Os ditadores diziam que os havia levado porque eram terroristas, de famílias terroristas. E algumas mães respondiam: “meu filho não fez nada”. Quão enganadas estavam as que diziam assim. Nossos filhos tinham sido levados porque haviam feito tanto!”
Depois daquele novo ataque do terror, as mães que seguiram resistindo tiveram uma súbita inspiração: decidiram socializar a maternidade. A partir daquele momento todos os desaparecidos seriam filhos de todas, e elas todas, as mulheres da Plaza de Mayo, as mães amorosas dos 30 mil. Todos passaram a ser nossos filhos e não se podia mais falar de terroristas.
Desde então, o movimento só fez crescer e receber apoio de todas as partes do mundo. A primeira casa da Asociación de Madres de Plaza de Mayo veio com o dinheiro mandado pelas mulheres holandesas. E as mães entenderam que deviam levantar suas bandeiras não só pelos filhos, mas pela luta social, pela educação, pela saúde, pela comunicação. Eles não haviam dado sua vida em vão, e nós finalmente descobrimos que havíamos sido paridas por nossos próprios filhos.
Depois dessa nova tomada de consciência, as mães não pararam mais, seus projetos foram se avolumando. Criaram um café literário, um jornal, uma biblioteca, uma videoteca, uma livraria, ocuparam uma rádio que seria privatizada e fundaram a Universidade Popular. Tudo começou com a realização de seminários para debater temas políticos, mas como faltava lugar para acolher tantos interessados, a proposta desencadeou a criação de uma instituição universitária. O primeiro dinheiro veio dos “companheiros do rock”, como Hebe chama os músicos realizaram vários espetáculos destinados ao projeto das mães, e assim foi comprada uma casa para abrigar os primeiros 200 estudantes inscritos em cinco cursos.
Isso foi há oito anos e a Universidade Popular assumiu também uma dimensão inesperada: agora soma 1700 alunos, distribuídos em 11 cursos. Para todos eles três disciplinas são obrigatórias: formação política, trabalho em grupo e história das mães. Os cursos ainda não são reconhecidos pelo ministério da educação, mas a festa de formatura é um acontecimento único na vida de todo graduado. Cada um leva no currículo um diploma pintado manualmente por uma das Madres de Plaza de Mayo. Elas não poderiam deixar seus filhos saírem de lá sem cumprir esse rito de passagem. E, mesmo sem o canudo oficial, muitos conseguem trabalho, pois há empregadores que reconhecem a qualidade da formação recebida na universidade das mães. Uma instituição que segue sendo autônoma, pois suas diretoras, como conta Hebe, não quiseram subsídio do governo para ampliar a sede. Só aceitamos um empréstimo. Podemos levar 50 anos, mas vamos pagar.
Nos vemos las caras
A Universidade Popular alastra suas raízes no meio da comunidade. Todos os cursos têm práticas nos bairros, com as gentes. Trabalhadores que ocupam fábricas falidas, e assumem sua direção, para bem administrá-las recebem a orientação dos educadores da universidade das mães. Uma vez por mês as mães também organizam um almoço de convivência para reunir os estudantes, um curso por vez. Como diz Hebe:“Assim nos vemos las caras, conversamos, planejamos as ações. Os jovens participam de todas as atividades. Os que fazem cinema, filmam tudo, os do jornalismo, escrevem. Enfim, a memória preciosa de toda esta história protagonizada pelas madres e seus seguidores vai sendo preservada.
Os seminários para a comunidade prosseguem. Dessas cátedras abertas, participam cada vez umas 400 pessoas. Na praça do Congresso Nacional, nos finais de semana, a universidade move a cultura, trazendo, para o meio do povo, teatro, dança, música, ciclos de cinema. A edição de livros também faz parte do projeto das madres. Já são 11 os publicados, levados para feiras editoriais em várias partes do mundo. Além disso, a Asociación Madres de Plaza de Mayo realiza, sempre no mês de novembro, o Congresso de Saúde Mental e Direitos Humanos, porque as mães – que pintam os 5 mil crachás do evento – entendem que as violações e a violência exigem discussão e ação no campo da sanidade.
Mas os sonhos são muitos, caminham sempre na frente, e as mães já têm na mira um canal de televisão. Com bom humor, fazendo o gesto de levar uma mão ao olho, Hebe anuncia: Já temos um em vista para ocupar. Elas também se envolvem em projetos que buscam construir casas para famílias que vivem nas vilas de emergência, nos bairros marginais. Na Cidade Oculta, um desses lugares na grande Buenos Aires, elas constroem as primeiras 26 vivendas. São belas, com três dormitórios, dois banheiros, cozinha grande, pois as mães pensam que precisa acabar com essa idéia de que casa para pobre tem que ser pobre. É uma vergonha que em países tão ricos como os nossos, os povos sejam tão pobres, e que precise haver um grupo de velhas fazendo tudo isso.
À frente das mães, Hebe percorre o mundo rompendo a luta individual. Para a Europa, viaja até duas vezes por mês, mas pensa em reduzir essa rota internacional porque há muito trabalho a fazer em casa. Quando sofreu uma fratura, que agora a faz caminhar mais lentamente, não aceitou ficar meses imobilizada. Toda segunda-feira a levavam para a sede da Universidade Popular. Lá, de uma cama hospitalar, para manter a perna levantada, de acordo com a recomendação médica, fazia o seu trabalho. Só voltava para sua casa íntima na noite de sexta-feira.
Para lutar é preciso ser feliz
Hoje as madres têm entre 75 e 92 anos, muitas já “luarizaram” e suas cinzas foram espargidas na Plaza de todas. Quando pensa no tempo que passa, Hebe se dá conta de que 30 anos é quase nada para a imensidade do trabalho a ser cumprido. Mas cada minuto de que dispõe é dedicado ao esforço de educar e formar a juventude. E de não permitir nunca que se esqueça o sacrifício dos 30 mil desaparecidos. Eles vivem toda vez que uma mãe luta, peleia.Cada quinta-feira, às 15h30min, nos encontramos com eles. E o fato de não reconhecermos a morte de nossos filhos rompe com muitos esquemas.
Hebe faz questão de dizer que as mães não choram na praça, porque entendem que chorar faz parte de uma cultura da morte. Enterrar os mortos, como diz, faz parte dessa cultura que considera muito cínica, sinistra, porque há pais e mães que não se preocupam com os filhos mas que, se eles morrem, os enterram luxuosamente, mandam flores. Chorar pelos meus filhos, não. Eles viveram a vida intensamente, amavam o que faziam e me ensinaram que para lutar é preciso primeiro ser feliz.
É por isso que Hebe, como outras madres, não aceita reparação econômica pela perda dos filhos. Embora respeitem o movimento das avós – que trabalha apenas pela via judicial, para ter de volta seus netos, muitos deles adotados pelos torturadores – as madres de Plaza de Mayo deixaram as ações jurídicas nas mãos dos advogados e se dedicam à educação, à comunicação, à saúde.
Elas rechaçam a idéia de reparação econômica, não querem dinheiro como pagamento pela perda de seus filhos. A oferta é de 250 mil dólares para cada um, e com três filhos desaparecidos – me resta só uma filha – eu seria uma mãe milionária… Mas não aceitamos qualquer preço por nossos filhos, como também não aceitamos homenagens póstumas, nada que tenha a ver com a morte…Eles nos levaram quase tudo, e o que de melhor nos levaram foi a nossa juventude que lutava. Por isso agora lutamos pela vida, e nessa luta somos muito duras, radicais e rebeldes… São 30 anos de luta pela vida, vencendo a morte. Lutamos por eles que nos deixaram as idéias, a capacidade de entrega, a alegria… Por isso somos felizes, apesar de tudo.
Hebe domina a palavra com firmeza admirável. Para falar de amor e para fazer denúncias em nome do amor. Não usa meias palavras quando lhe perguntam sobre a relação da igreja católica com a ditadura, porém faz justiça aos sacerdotes que não colaboravam com os opressores e também estão entre os desaparecidos. Mas havia padres que bendiziam a ação dos que atiravam nossos filhos ao mar, diziam que isso era para o bem da pátria. Também não nos permitiam entrar nas igrejas quando éramos perseguidas e até chamavam a polícia para nos levar. Alguns negavam a comunhão às madres católicas, mas davam comunhão aos torturadores. No nosso país, embora haja muitos sacerdotes amigos das mães, a igreja tem muitíssima responsabilidade pelo que se passou. No Brasil, foi diferente, pois a igreja abrigava os perseguidos daqui e acolhia até os que conseguiam fugir da Argentina”.
Cruzes eu já tenho demais…
Do papa João Paulo II tampouco Hebe tem uma boa recordação. Ao falar dele, pergunta:Você crê que o papa interpretava bem o Evangelho? Ela conta que as mães estiveram três vezes com ele . Na primeira, o papa se negou a abrir a mão para receber a foto de uma mãe desaparecida. Na segunda , em Porto Alegre, em 1980, disse que havia desaparecidos com vida, que eles iriam aparecer. Na terceira, em Roma, em 1983, quando foi perguntado sobre porque nenhum desaparecido havia aparecido, disse que não pedissem mais nada a ele, e ofereceu um crucifixo a Hebe. Ela não o aceitou e apenas lhe disse: cruzes eu já tenho demais, pode ficar com essa.
Hebe também faz a sua crítica ao caráter que vem assumindo o Fórum Social Mundial. O primeiro foi maravilhoso, socialista, mas depois que ficou globalizado foi perdendo a força. Deixou-se que os franceses e italianos decidissem o seu rumo. E como eu protestei, decidiram não me convidar mais, só que eu continuo indo. São os 30 mil desaparecidos que me dão permissão para ir a qualquer lugar.
Uma moça, na hora das perguntas, pede que Hebe fale de resistência. E ela, responde, lembrando a lição de Gandhi, da desobediência civil. Resistência é caminhar 24 horas sem parar em frente à ditadura, mesmo sendo golpeadas… 70 mães rodeadas por 300 policiais…Resistência é ficar presa em uma cela com um morto que não se sabe filho de quem é…é ir todas juntas para a prisão quando uma é aprisionada, e ficar rezando o rosário e cantando hinos sem parar, essas duas coisas de que todo policial tem medo… Resistência é marchar sem bandeiras de partidos, sem discursos, em silêncio.Opor-se a tudo o que querem te obrigar a aceitar, isto é resistência.
Na figura frágil dessa mulher de semblante expressivo transparece uma fortaleza que escapa às palavras. Por trás das grossas lentes do par de óculos grandes, avista-se um olhar no qual se lê determinação absoluta e uma infinita ternura. Ela que viveu a experiência drástica de sair de casa, onde lavava, passava, cuidava dos filhos, para as marchas das ruas e a liderança de um movimento sem fronteiras, confessa que nada lhe foi fácil. Sofri horrivelmente de duas solidões: dos filhos e da ignorância… Me falavam de coisas que eu não entendia, então eu tive de ler, ler e ler… Discutir o que saía nos jornais, compreender o que significa, por exemplo, síntese.
Mas essa mulher, que com as outras madres, decidiu socializar a maternidade, não assumiu ser mãe só de seus 30 mil filhos desaparecidos. Ela resolveu dedicar à juventude toda a força do amor que traz no peito. Eu podia ficar em casa, fazendo doces, que me agrada cozinhar, mas esta luta fazemos por vocês, jovens. Esta luta a fazemos por rebeldia, a fazemos por amor. E o que dá força a essa mãe universal é a certeza de queesses jovens, seus filhos, são rebeldes, engenhosos e não roubam como a maioria dos políticos. Na América Latina as ditaduras foram responsáveis pela política ter se tornado uma má palavra. Os políticos dizem que os jovens são o futuro, mas eles são, na verdade, o presente. E o que realmente falta é acreditar na juventude, não usar a juventude. Por isso, eu sempre repito, temos que ensinar nossos filhos primeiro a dizer “não”, e só depois a dizer “papai” e “mamãe”.
E por acreditar nos jovens, nos seus milhares de filhos, é que Hebe de Bonafini não teme pelo futuro da Asociación Madres de Plaza de Maio. É por confiar tanto neles que ela não tem teme pelo destino da Universidade Popular e todos os trabalhos que dela derivam. É por se fiar tanto neles, que essa mãe acredita que os seus filhos desaparecidos vão continuar sempre nascendo toda quinta-feira, às três e meia da tarde, em frente à Casa Rosada. É por amar tanto essa jovem humanidade que ela segue pelas estradas do mundo, com seu passo leve e sua voz de profeta, anunciando a esperança. Estou convencida de que quando a última de nós se for, eles, os jovens, seguirão no nosso lugar.
Texto: IELA
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