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Quando a justiça não chega, as gentes se movem!!!

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Por IELA em 30 de agosto de 2005

Justiça por água abaixo
30/08/2005
Por Juliana Kroeger – jornalista 

Sul do Brasil, madrugada de 14 de maio, três horas da manhã. Eliseu do Nascimento passa a guarita de segurança em direção à Hidrelétrica. Segue com seu fusca pelo asfalto. Depois de uma curva, entra num atalho de estrada de chão. Poucos metros adiante, avista quatro casas de prostituição e pára ao lado de uma. Na  boate , algumas pessoas bebem em volta da mesa de sinuca e outras estão junto ao balcão. Eliseu, 28 anos, procura pela amante e a vê com outro cliente. Pede uma cerveja, cheira cocaína e, minutos depois, em fúria, saca uma pistola 7.65 mm, atirando para todos os lados. O assassino sai correndo, deixando para trás quatro mortos e três feridos. 

O barulho dos tiros chama a atenção dos que estão nas  casas  ao lado. Eles impedem que Eliseu, já com a arma descarregada, entre no carro. Um deles, com uma foice, o acerta de raspão na cabeça. Horas depois, na delegacia, Eliseu alega ter feito tudo por ciúme. No dia seguinte, muda de opinião, fala que é casado, nunca traiu a esposa e que foi ao local só para tomar uma bebida. Diz que fez tudo isso porque foi agredido e atirou apenas para se defender.  A notícia sai no Jornal Nacional e nos jornais locais. As versões são várias e contraditórias. Mas ninguém fala o que levou aquelas pessoas, quase todas de fora, todas pobres, à pequena cidade catarinense de Campos Novos, a 370 quilômetros de Florianópolis. 

O que atraiu a suposta amante de Eliseu e outras mulheres à região para trabalhar como prostitutas foi a construção da usina hidrelétrica Campos Novos. É a segunda barragem mais alta do mundo, com 201,4 metros de altura, e será capaz de produzir 25 por cento da energia consumida no Estado. A obra emprega 2.700 trabalhadores. Desses, 800 moram na própria obra. 

Para que o pessoal não fique indo e voltando da cidade, distante 25 quilômetros, a empresa induz que essas  casas

se instalem no local , admite Ramon Ruediger, diretor-adjunto de meio ambiente da Campos Novos Energia S.A., a Enercan. A obra da hidrelétrica, no entanto, não é apenas enredo e cenário de brigas passionais. É também palco de uma batalha maior que envolve centenas de camponeses, poderes públicos e grupos privados como Votorantim, Bradesco e Camargo Corrêa, acionistas da Enercan. A barragem, no rio Canoas, formará um lago que vai encobrir terras em quatro municípios catarinenses: Celso Ramos, Anita Garibaldi, Abdon Batista e Campos Novos. A empresa afirma que já indenizou 95 por cento dos agricultores atingidos pela usina, totalizando 683 famílias. Mas outras 187 alegam não terem recebido nada. Diante disso, essas famílias se integraram ao Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB, e começaram a fazer protestos. Organizaram acampamentos, fecharam a BR-470, fizeram barulho. O resultado? Alguns agricultores foram presos. Sobre isso, a grande mídia não fala. 

A usina e as indenizações Em janeiro deste ano, a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), com representantes do MAB e da Enercan, começou a investigar as reivindicações das 187 famílias. A idéia inicial era analisar todos os casos. Só no primeiro município, dos quatro que serão atingidos pela barragem, ficou comprovado que das 72 famílias analisadas, 63 teriam direito a indenização. Outras sete ainda dependiam de coleta de dados. Depois desses resultados, incômodos para a empresa, as investigações foram suspensas.  A Enercan pretende iniciar o enchimento do lago em outubro. Os agricultores sabem que, se isso acontecer antes de todos os casos serem analisados, a luta pela indenização fica ainda mais difícil. O procurador da República Nazareno Jorgealém Wolff expediu recomendação à Fatma para que só dê a licença ambiental de operação à usina quando a investigação, caso a caso, for concluída. É uma guerra contra o tempo. 

Gilberto Cervinski, um dos coordenadores nacionais do MAB, comenta que a raiz do problema está no fato de a empresa ter um conceito de quem é atingido; o Movimento tem outro conceito e o governo não tem nenhum. Então, hoje, quem acaba definindo quem é atingido pela barragem é a própria empresa.  A população à beira do lago não é considerada atingida. Mas é a que mais sofre, porque perde escolas, postos de saúde e todo um convívio comunitário. Enfim, essas pessoas ficam isoladas . 

Em 2001, a Enercan começou o processo de negociação com os atingidos através de  comissões , formadas por moradores dos municípios afetados. Cideney de Oliveira, de Campos Novos, recebeu sua indenização. Mas denuncia:  Muita gente ficou sem nada. Sem contar que no cadastro dos atingidos, feito em 1998, só foram colocados os proprietários e arrendatários. Disseram que não iriam cadastrar os filhos, que ficariam para o segundo cadastro. Mas eles nunca mais apareceram. Quem se deu bem mesmo foi o pessoal da comissão, que foi beneficiado . 

Ramon Ruediger, da Enercan, nega as acusações contra a empresa e desafia que  alguém prove  que membros da Comissão tenham sido cooptados durante o processo de análise das populações atingidas. Além disso, argumenta que a obra traz  inúmeros benefícios  para a região e que 42 milhões de reais foram gastos no remanejamento da população rural. Um milhão de reais também foi investido no desenvolvimento das comunidades locais. Ele explica que  atingido é uma coisa, com direito é outra . Quem chegou dez meses depois do primeiro cadastro, em dezembro de 1998, não leva a indenização. 

Direitos humanos

Fui ao escritório da Enercan em Campos Novos e conversei com Egídio Antônio Wulfing, responsável pelas indenizações. Homem alto, beirando 1,90 metro, forte, com aparência germânica. Depois das devidas apresentações, perguntei sobre o que a empresa faria com os agricultores que vão perder suas terras, mas não receberam um centavo. 

– Não tenho nada a dizer a esse respeito – disse Egídio Antônio, cortando a conversa já no início.  – Mas há 187 famílias que alegam não ter recebido indenização. 

– Indenização é para quem é proprietário e todos os proprietários foram indenizados. Problema social sempre vai existir, mas isso é um problema do Estado. 

– E o Movimento dos Atingidos por Barragens? 

– Quer saber o que eu acho do MAB? O MAB é como o bando do Lampião! Não tenho mais nada a dizer. 

Tentei fazer outra pergunta, mas ele se adiantou: 

– De que revista você é? 

– Da Caros Amigos, revista que, dentre outras coisas, trata de direitos humanos… 

Com voz alterada, Egídio Antônio detonou: 

– Direitos humanos só funcionam para terceiro-mundistas! 

As prisões

Ilizete varria a sala. Seu filho mais novo, de 3 anos, ainda com sono, brincava no sofá. Era uma manhã ensolarada, quente e seca. O marido e o outro filho, de 7 anos, já estavam na roça de milho. Um sábado comum na vida dos Grassi, que vivem em Celso Ramos, município vizinho de Campos Novos. Às 8 horas daquela manhã, Ilizete viu policiais militares pulando o muro de sua casa. Assustada,  como se tivesse levado um choque , soltou a vassoura. 

Enquanto isso, nove homens empurraram a porta e entraram. 

– Cadê o teu marido? Temos uma intimação para ele! – gritou um dos policiais. 

A mulher, sem saber o que fazer ou falar, deu o paradeiro: 

– Tá trabalhando na plantação aqui perto e o nosso filho está com ele. Eles estão com um Chevette vermelho. 

Os policiais, todos fortemente armados, partiram para o local indicado. Minutos depois, sem resistência, Édio Grassi foi algemado e preso. Seu filho, um menino de 7 anos, também foi colocado na viatura. Mesmo sabendo onde a família morava, os policiais conduziram a criança à delegacia. Só depois de uma hora o garoto foi levado para casa. 

A família de Édio e Ilizete é somente uma entre as atingidas pela barragem da usina hidrelétrica Campos Novos.

Édio, 32 anos, participou dos protestos para que a empresa responsável pela obra lhe pagasse uma indenização decente. Ele também se manifestava para que o governo liberasse o crédito agrícola, já que perdeu cerca de 80 por cento da safra de feijão devido à seca. Por ter participado do Movimento, foi preso. 

Em Joaçaba, Édio divide uma cela de 2,5 por 3 metros com outros quatro agricultores no Presídio Regional: João Vilmar de Oliveira, Aurélio Dutra, Carlos Silva e Dorneles Quinatto. Todos têm trabalho, residência fixa e estão lutando pelos seus direitos. Para os promotores de Campos Novos, eles não passam de integrantes de  uma quadrilha voltada à prática de delitos de toda ordem, tais como extorsão, ameaça, lesão corporal, dano, apologia e incitação ao crime, dentre outros . E, por isso, foram obrigados a viver entre um chão de cimento sujo, paredes escuras, janela coberta por uma grade, dois  triliches  e um pequeno banheiro sem vaso sanitário.  

As prisões dos camponeses ocorreram na semana anterior ao Dia Internacional de Luta Contra as Barragens, comemorado em 14 de março. Não foi por acaso. O MAB estava planejando uma série de mobilizações na região. Para garantir a  ordem pública , os agricultores foram presos. Para isso, o Ministério Público e o Poder Judiciário trabalharam com agilidade e eficiência exemplar.  No dia 10 de março, o Ministério Público de Campos Novos, através dos promotores Ricardo Paladino e Deise Oechsler, enviou um pedido de prisão preventiva de supostos líderes do MAB à juíza da Comarca. No documento, os promotores listam nomes de dez pessoas que fariam parte da  quadrilha , com base em uma investigação feita pelas polícias civil e militar. No dia 11, uma sexta-feira, a juíza Adriana Lisbôa decretou a prisão do  bando , que estaria  ameaçando a ordem social . Ainda determinou a apreensão dos veículos utilizados para as  práticas criminosas  e busca e apreensão de armas na casa de um dos indiciados. Dia 12, sábado, cinco agricultores foram presos. Todos foram levados para o presídio regional de Joaçaba, cidade próxima a Campos Novos. Na segunda-feira, outro integrante do MAB foi detido. 

Um dos presos, Leodato Vicente, 70 anos, devido a sua idade e estado de saúde comprometido, conseguiu logo a liberdade. Os outros não tiveram a mesma sorte e permaneceram na prisão por 24 dias. Em uma das paredes, Aurélio Dutra escreveu:  Águas para a vida, não para a morte . E desabafou:  Nós temos que protestar porque o nosso direito está indo para debaixo da água. Eu quero terra porque eu só sei trabalhar na terra. Hoje eu tô aqui porque alguém virou um carro durante uma das nossas manifestações. Onde está a prova de que eu fiz isso?

Não há provas. O que há são fotos mostrando que a BR-470 foi fechada e que alguns carros foram danificados. Mas, segundo o delegado da Polícia Civil de Campos Novos, Mauro Rodrigues, não existe comprovação de que os acusados cometeram os crimes. Segundo ele, existe a prova de que eles estavam lá e são os líderes das manifestações. 

Enquanto estavam presos, os agricultores receberam a visita da deputada federal Luci Choinacki (PT-SC), membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que prestou solidariedade aos acusados. Luci também esteve no Ministério Público em Campos Novos. Nesse encontro, documentado em vídeo, a promotora Deise Oechsler afirmou:  A questão é a seguinte: se todos os cidadãos que se achassem que tivessem (sic) direito reivindicassem dessa forma que o Movimento dos Atingidos da Barragem (sic) estão fazendo, nós teríamos anarquia implantada no país. Esse tipo de Movimento não pode ser feito dessa forma . A deputada questionou os abusos da polícia no momento das prisões, fazendo comparações aos tempos da ditadura militar. Deise Oechsler, a promotora, respondeu:  Senhora deputada, se me permite, esses cumprimentos de mandado de prisão aqui é o que chegaram ao conhecimento de vocês (sic). Agora, na verdade, isso é meio que regular. É praxe, muitas vezes, ocorrer tipo (sic) de abuso de autoridade no cumprimento de mandado de prisão. Não é um caso isolado em Campos Novos, não. Isso aí é em todo o Brasil. Em todo o país há um cumprimento um pouco mais forçado de mandado de prisão, a gente sabe disso . 

O sargento Roseli Sutil de Oliveira, 43 anos, afirma que a PM cumpriu os mandados de prisão sem agressões. Usando espingardas calibre 12, revólver 38 e pistola 40, mais de 25 homens participaram da operação, uma das maiores já feitas na região. 

No final de março, quinze bispos, liderados por dom Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgaram uma carta em defesa dos atingidos por barragens:  Quando os atingidos pelas barragens se manifestam, eles estão gritando por vida, por respeito aos direitos não só de cada pessoa, de cada família, mas pelos direitos de toda uma comunidade. E suas manifestações são tratadas como caso de polícia . Dom Orlando Dotti, bispo emérito de Vacaria, RS, afirmou em entrevista publicada no jornal Brasil de Fato que a opressão aos atingidos acontece porque existe uma promiscuidade entre as empresas, o Ministério Público e o Judiciário. 

A batalha hoje

No dia 4 de abril, os agricultores presos em Joaçaba foram soltos. Outros três acusados foram presos em maio e libertados uma semana depois. Todos eles respondem a processo criminal, movido pelo Ministério Público. Segundo Leandro Scalabrim, advogado do MAB, os agricultores, se condenados, podem pegar até 30 anos de cadeia. Ou seja, além de perderem as terras, não serem indenizados, ainda correm o risco de ficarem presos o resto da vida. 

Os deputados Geraldo Tadeu (PPS-MG) e Luci Choinacki, membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, estiveram em junho em Florianópolis. Depois de ouvir os depoimentos de representantes da Polícia Militar, do governo estadual e do MAB, Luci afirmou:  Não há dúvida de que há uma campanha sistemática de criminalização dos movimentos sociais em Santa Catarina. Isso é muito grave e será investigado . Geraldo Tadeu, referindo-se à prisão dos agricultores, completou:  Essa decisão judicial é uma das coisas mais absurdas que já vi na vida . A Comissão vai encaminhar um relatório à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, ao Ministério da Justiça e ao Ministério Público propondo a anistia aos agricultores que respondem a processos criminais. 

Gilberto Cervinski afirma:  Não vamos dar nem um passo atrás, porque as barragens são verdadeiras fábricas de sem-terra. Um milhão de pessoas foi expulsa de suas terras nos últimos quarenta anos com a construção de barragens. E, de cada cem famílias, setenta não receberam nenhum tipo de indenização .  Santo Grassi, 59 anos, agricultor aposentado e pai de Édio Grassi, preso em março, apóia a luta do MAB:  A gente tem que pressionar, sem luta não se consegue nada . 

Depois de uma pausa, desafia:  Onde está a justiça brasileira? Onde está?

Boa pergunta.  

Juliana Kroeger é jornalista ( julianakroeger@yahoo.com.br )

Colaborou Fernando Evangelista

Fonte: Revista Caros Amigos – Agosto de 2005

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