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Testemunha de acusação

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Por Bento  Vilela em 28 de outubro de 2025

Testemunha de acusação

O que uma pessoa deve fazer ao descobrir que sua vida foi tecida numa rede de mentira e violência? Como ela poderia viver tranquilamente sabendo que o fiador do equilíbrio que lhe sustenta está ligado ao assassinato de milhares de pessoas, e aproveita o anonimato de uma vidinha pequeno-burguesa em nome da pátria, da família e da propriedade? Como conseguiria caminhar de cabeça erguida se a filiação que a identifica é sinônimo de vergonha e desprezo? Virando o rosto para o outro lado? Transformando a ignorância em autocrítica? Se distanciando do horror que lhe enoja, ou relativizando a barbárie cometida? É claro que não existe uma única resposta para essas perguntas, mas alguns rascunhos podem ser lidos no livro Matar o Pai, de André Queiroz.

Apesar do extenso trabalho desenvolvido sobre a política latino-americana, especialmente a argentina, André Queiroz nos conta que a ideia inicial de Matar o Pai, com a licença de Sófocles, surgiu por acaso. Os primeiros passos foram dados em fevereiro de 2020, quando Nora Patrich, companheira de Roberto Baschetti, ex-militante do peronismo revolucionário na Organização político-militar Montoneros, falou pela primeira vez sobre os “Desobedientes”, o grupo de filhos e filhas de genocidas militares que estavam trazendo a público relatos dos crimes cometidos por seus pais. Três anos depois, André Queiroz voltaria à Argentina, agora para um estágio de pós-doutorado no Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires (UBA), e durante a apresentação do livro Jirones de Mí Vida de Nora, conhece Pablo Verna, advogado criminal, militante da organização “Asemblea Desobedientes”, e filho de Julio Alejandro Verna, médico e capitão do exército que participou da política de extermínio implementada pela última ditadura civil-militar do século XX. É através de Pablo que André chegará a outras duas “desobedientes”, Bibiana Reibaldi e Erika Lederer, elas também filhas de genocidas, elas também partes fundamentais na compreensão dessa estrutura de desafetos cotidianos.

Embora não seja uma narrativa memorialista, como enfatiza o autor, as páginas que compõem Matar o Pai são formadas por dois caminhos que se entrelaçam na análise político-econômica de uma Argentina convulsa. O primeiro se desvela a partir de três ensaios-reportagens sobre a vida de Pablo, Bibiana e Erika e contribuem para descrição da realidade vivenciada, e o desenvolvimento da militância que resultará nas denúncias contra seus pais por crimes de lesa humanidade. O segundo é como esse passado continua pautando o debate político do país, em meio as sucessivas crises econômicas que empobreceram a população e corroeram todos os governos desde a chamada “redemocratização”. Se a história se repete como farsa, a Argentina tem sido o palco na qual esse enredo está constantemente em cartaz, alterando os atores sem tirar o leopardo da bilheteria. O canastrão que atualmente requenta suas falas é sem dúvida o mais caricato a exercer esse papel, contudo, talvez seja o que mais se aproxime daquilo que seus produtores encenaram no esgoto da ditadura, a perseguição indiscriminada aos opositores políticos para o saqueio imperialista das riquezas nacionais.

Como a elaboração do livro coincidiu com a eleição que levou o ultraliberal Javier Milei à Casa Rosada, André Queiroz teve a oportunidade de acompanhar as discussões sobre temas que pareciam superados pela sociedade argentina, como a luta por “Memória, Verdade e Justiça”. Essa vitória deixou atônito os setores progressistas argentinos, principalmente a esquerda liberal, que acreditava que as forças reacionárias que patrocinaram os golpes civis-militares do passado estivessem sepultadas, ou pelo menos silenciadas, após o revisionismo histórico ter levado à prisão militares de alta patente, como o ex-ditador Jorge Rafael Videla. A questão é que elas jamais deixaram de participar do processo político, e são responsáveis, inclusive, pelo aparecimento do revisionismo de direita na cena política. Além do apoio incondicional ao projeto de desmonte do Estado promovido pelo governo Milei, as forças políticas e sociais que compõem o revisionismo de direita têm fomentado uma verdadeira mudança na abordagem do período ditatorial. Se anteriormente ela era feita a boca pequena, agora a chamada “guerra de narrativas” sobre o terrorismo de Estado, que assassinou mais de trinta mil pessoas entre 1976 e 1983, é feita de peito aberto em qualquer lugar. Outra mudança é a tentativa de reposicionar as forças armadas como um dos principais atores políticos do país, e a face mais conhecida dessa estratégia é a da vice-presidente, Victoria Villarruel, filha orgulhosa de um genocida do regime.

Ao tentar jogar no colo da militância revolucionária a culpa pela violência do período, incluindo a criminosa resposta governamental, Villarruel deixa claro o objetivo de ressuscitar a surrada “teoria dos dois demônios”, e desqualificar os processos judiciais que condenaram os militares. Nessa toada, ela foi uma das principais incentivadoras da criação de organizações de extrema direita, formadas pelos familiares dos militares genocidas, que exigiam a suspensão dos processos que os encarceraram, e até mesmo o perdão por seus crimes. “Se há gente construindo poder, e trabalhando politicamente, se esta gente trabalha para ocultar, silenciar, confundir, negar, é então parte do genocídio. Não com alcances penais, porém é parte do genocídio em termos sociológicos e históricos. Partindo deste pressuposto, Villarruel é um exemplo muito importante no sentido de perpetuar o genocídio, de cumprir com este objetivo. Victoria Villarruel é o projeto que melhor encarna tal objetivo, e chegando a vice-presidência o potencializa”, acentuará Pablo Verna numa das entrevistas para o livro.

Segundo André Queiroz, em sua tentativa de reescrever a história do terrorismo de Estado argentino, Victoria Villarruel omite as principais razões do golpe de 1976, a sua natureza geopolítica e a abertura da economia local para acumulação de capital pelas economias centrais, especialmente os Estados Unidos, mas não só ele. Por isso, a sua intenção de “subverter o sentido e a vigência das demandas dos organismos de Direitos Humanos teria o objetivo de desconectar o horror impetrados pelos agentes do Estado do projeto político-econômico de lesa-pátria a que estavam a serviço”. Em vários depoimentos do livro, Villarruel é considerada uma agente política mais perigosa que o histriônico presidente que gosta de pegar a bolinha no salão oval, principalmente por suas conexões com as forças armadas, os grupos econômicos mais poderosos do país, e o capital externo. Não por acaso, em 2008, ela recebeu uma bolsa do governo americano para se especializar em estudos sobre terrorismo e contra insurgência, na William J, Perry Center for hemisferic defense studies, instituição ligada ao Comando Sul dos Estados Unidos. A despeito da desarticulação política da oposição, todas as iniciativas de desmantelamento das políticas sociais tiveram forte reação popular, e mesmo com o acirramento da repressão após a “Lei Antipiquete”, ela tem se tornado cada vez mais frequente no país. Quando o perdão aos genocidas militares começou a ganhar forma, milhares de pessoas e organizações como os “desobedientes” tomaram as ruas da Capital, e se transformaram na principal resistência aos protofascistas que estão no poder.

Nenhum dos genocidas retratados no livro se arrependeu de seus crimes, tanto Julio Alejandro Verna -médico militar traumatologista- que participava de sessões de tortura e dos voos da morte; Ricardo Lederer -médico militar obstetra- que além de participar dos voos da morte fazia os partos das presas políticas que jamais veriam seus filhos, e o oficial da Inteligência, Julio Reibaldi, lotado no temido Batalhão 601, e integrante da Operação Condor, sempre se envolveram de corpo e alma na perseguição aos opositores do regime. É por isso que mesmo com a legislação argentina não permitindo que um filho possa acusar os próprios pais por crimes cometidos contra terceiros, os seus relatos são fundamentais pela luta por “Memória, Verdade e Justiça”. Esse impedimento gerou um grande debate nacional, assim como abriu feridas que seus personagens dificilmente conseguirão fechar. Tirando Ricardo Lederer, que estourou os miolos quando sua ficha corrida foi divulgada em praça pública, os outros dois genocidas descritos em “Matar o Pai” só foram acusados de algum crime após ameaçarem os próprios filhos pela divulgação dos serviços prestados nos porões da ditadura. Serviços que sempre contaram com a compreensão de suas companheiras, extensão do doutrinamento que atravessava as estações.

Com o lançamento de Matar o Pai, André Queiroz escreve mais um capítulo do impressionante trabalho que vêm desenvolvendo sobre a América Latina. Seja no cinema, na literatura, no teatro ou em projetos realizados no Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS/UFF), ele se coloca como uma das vozes mais originais a esmiuçar o passado, presente e quiçá o futuro de nossas esquinas, tanto em termos narrativos quanto nos temas escolhidos. Um livro como Matar o Pai, por exemplo, oferece aos leitores brasileiros a oportunidade de conhecer um dos recortes mais importantes da história argentina, através de vivências raramente exploradas. Além disso, tendo como base a simetria das experiências acumuladas ao longo de quatro décadas de cambaleantes democracias, o livro contribui para a reflexão de como a atual crise estrutural do capitalismo pode causar o aprofundamento das políticas neoliberais, e até mesmo um novo ciclo de intervenção imperialista. O ressurgimento de uma retórica coercitiva que lembra a Doutrina Monroe, as contínuas acusações contra os governos progressistas que tentam defender a soberania nacional, as novas modalidades de golpes de Estado na América Latina e a disposição de uma ação militarizada com o apoio das elites locais, explica como a serpente nunca deixou de espalhar seus ovos pelos países latino-americanos.

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O livro foi editado pela Editora Insular, de Florianópolis, de Nelson Rolim de Moura.

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