Por Cuba – Centro Fidel Castro – (E 09)
Texto: Davi Antunes da Luz
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“A América Latina precisa ser soberana e autônoma”
Jornal A TARDE – Bahia
Entrevista com Nildo Ouriques | Economista e presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos da Federal de Santa Catarina
A fala acelerada e o olhar fixo nos olhos do interlocutor são características marcantes desse pensador marxista que prevê um colapso na economia brasileira em decorrência da crise financeira transbordada dos Estados Unidos para o mundo.
Ele concedeu entrevista ao repórter Vítor Rocha , nos corredores da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia – onde participou, há uma semana, de conferência na abertura do Colóquio Nacional Processos de Hegemonia e Contra-Hegemonia.
Ouriques acredita que a economia de mercado implantada pelo modelo neoliberal no Brasil não vai permitir que o País saia ileso da crise, tendo, em um futuro próximo, perda sistemática das reservas financeiras.
No entanto, o momento difícil pode ser uma boa oportunidade para as “maiorias nacionais” entenderem que o Brasil precisa tomar outros rumos. Se depender de Ouriques, será o caminho “bolivariano” já traçado por Venezuela, Bolívia e Equador.
Ele enxerga no sistema o futuro da América Latina, com maior viabilidade de se chegar à sonhada integração regional com implantação de “políticas nacionais soberanas”.
E nada de otimismo com a eleição de Obama nos Estados Unidos. Para ele, nada mudará em relação ao tratamento de Bush aos países latino-americanos, sem nenhuma possibilidade de pôr fim ao embargo econômico a Cuba, por exemplo. “A política (norte-americana) é dividir para reinar”, avalia.
A TARDE A América Latina deve realmente comemorar, como comemorou, a eleição de Barack Obama nos Estados Unidos?
Nildo Ouriques | Não, não. Seria uma ingenuidade comemorar. A América Latina não pode comemorar uma eleição alheia, de um país que tem interesses distintos da América Latina. O continente precisa entender o que aconteceu lá, não comemorar. Compreender quem é Barack Obama, quais são os interesses que ele defende. Sobretudo a América Latina precisa se levantar, aconteça o que acontecer nos EUA. Precisamos ser fortes, soberanos, autônomos, tudo o que não somos hoje. A idéia subjacente que está aí é que um presidente democrata é melhor para a América Latina. Isso é uma ilusão.
AT | O democrata Obama não tem um programa para a América Latina melhor do que Bush?
NO Não, ao contrário. Não falou nada sobre Cuba, mantém a política imperialista para o Oriente Médio, tem um grande desrespeito pela Venezuela e seu presidente (Hugo) Chávez. O fato de ele estar sendo comparado com McCain não o isenta. A política de Obama para a América Latina continua sendo a mesma (que a de Bush).
AT | Em que sentido?
NO Desrespeito às soberanias, a de observar a América Latina como um quintal dos EUA, e tudo isso que já não tem mais viabilidade, vide Venezuela, Bolívia e Equador.
AT | Falou-se que Obama poderia amenizar o embargo econômico imposto a Cuba…
NO Nenhuma possibilidade. Ele não falou isso durante a campanha, não é proposta do Partido Democrata nem do Republicano. A Fundação Cubano-Americana segue tendo influência, o establishment dentro dos EUA é contrário e não existe nenhuma possibilidade.
AT | Então não dá para dizer que a integração latino-americana fica mais viável depois de Bush.
NOA integração latino-americana depende essencialmente dos latino-americanos. E depende de termos uma consciência muito clara de que os EUA não estão interessados em nosso continente. Que as potências – Espanha e Portugal por um lado, Inglaterra depois e EUA agora – estão interessadas em nos dividir. A política é dividir para reinar. Agora, dos nossos países para eles tem de ser: nos separarmos dos EUA para ficarmos unidos.
AT | O que aconteceu na Bolívia recentemente foi uma tentativa de divisão do país?
NO Não foi apenas uma tentativa, foi uma política orientada pela embaixada de Washington em La Paz, que era claramente a de criar uma subversão completa no país e que resultou em várias mortes. Os governadores de Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija, dos estados da chamada Meia Lua, se reuniam com o embaixador (norte-americano, Philip Goldberg) à luz do dia. Nota: Goldberg foi expulso do país pelo presidente boliviano, Evo Morales, em setembro, acusado de conspirar contra o governo. Eles fizeram uma conspiração para derrubar Morales. Só que fracassou pela imensa mobilização popular. A estratégia que usaram contra Chávez foi também usada contra Morales. É a política dos EUA: derrubar todo e qualquer governo que represente aspirações populares e soberanas.
AT | Já que estamos falando de Bolívia, existe um risco de surgir uma nova configuração geográfica a partir da divisão deste país?
NO Não há nenhuma possibilidade de divisão da Bolívia.
AT | Por quê?
NOPorque Tarija, Estado que concentra a riqueza petroleira, deu 50% dos votos a Morales. Santa Cruz de la Sierra é historicamente parasitária dos ingressos petroleiros e produz soja com um terço da produtividade que registramos no Brasil. Além desses dois estados, o governador de Beni (Ernesto Suárez) está processado, tá na cadeia e de lá não pode sair. De tal maneira que não existe mais a possibilidade de divisão da Bolívia.
AT | O movimento bolivariano é tocado na América Latina principalmente por Chávez, Evo Morales e o presidente do Equador, Rafael Correa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima mais dessa corrente ou de uma figura como Alvaro Uribe, presidente da Colômbia?
NO Nem um nem outro. Lula é essencialmente o conservadorismo brasileiro. Não se assemelha a Uribe – que é um fascista e um agente de Washington declarado -, e naturalmente não tem nenhuma semelhança com o governo nacional popular revolucionário. Na véspera da reunião do G-20, Lula afirmou que quer ter essa parceria estratégica e construtiva com os EUA. Eu fico pensando: isso é um escândalo para um presidente. Um país em cujas multinacionais estão remetendo lucros e dividendos para fora e tirando a nossa soberania. Quer dizer, Lula é essencialmente um conservador à moda brasileira.
AT | Mas ele se aproxima deste movimento boliviariano?
NO É o seguinte: esse movimento independe do que faça o presidente Lula. Se ele estivesse na oposição, não mudaria nada. Por quê? Porque o venezuelano Hugo Chávez já derrotou nada menos que os EUA na tentativa de golpe (em 2002). Morales derrotou a embaixada, a Igreja, os empresários bolivianos. Então essa gente tem força própria. O Brasil se ilude pensando que é decisivo para a manutenção desses governos.
AT | E não é?
NO Não, não é. O Brasil não é decisivo nesta questão, em absoluto. É pensar que o Brasil podia fazer alguma coisa para romper o bloqueio em Cuba. Ou que Cuba dependeria do apoio brasileiro. Cinco décadas disputando sozinha com a ignorância, o descaso e o desconhecimento brasileiros.
AT | Explique os princípios básicos do bolivarianismo.
NO Este movimento tem, primeiro, como princípio básico, que nenhum governo se assemelha. Rafael Correa não é igual a Evo, Evo não é igual Chávez, porque são países muito distintos. Agora, o que eles têm em comum? Primeiro, são países que estão resgatando profundamente a soberania nacional. Segundo, que essa soberania nacional está articulada com a soberania popular. Em terceiro lugar, são países que ultrapassaram o marco da democracia representativa e estão fazendo uma democracia participativa. O horizonte liberal foi derrubado.
AT | Isso através dos referendos, consultas populares…
NO Não só isso. Através também das constituições implantadas na Venezuela, Bolívia e Equador. Também pela reconfiguração da economia. O que é que o mundo está fazendo agora? Exatamente o que esses governos já fazem há cinco, seis anos: o controle de câmbio, o intervencionismo estatal, o controle das empresas e programas fundamentais da distribuição da propriedade.
AT | Esse idéia de intervenção do Estado foi massacrada nas últimas três décadas pela filosofia neoliberal, que vai no caminho oposto. Agora, de que maneira se consegue convencer que um modelo tão massacrado pela opinião pública é o caminho viável?
NO Consegue porque a mídia não é tudo. Se fosse pela mídia, Chávez não chegaria, tampouco Rafael Correa e Evo Morales. E Fidel já teria sido derrubado.
AT | Quais são os instrumentos ideológicos utilizados por eles?
NO São instrumentos de poder, organização popular. Vá em El Alto (na Bolívia) e veja que não tem partido político. O MAS (de Morales) não é um partido, sim uma organização popular. Os partidos foram superados por lá. E eu não sou contra os partidos, eles são importantes. Quanto mais ideologicamente enraizados no povo, melhor. Esses países têm organizações populares e lideranças comprometidas com o povo.
AT | Então, os países que plantaram esse modelo vão sair melhor da crise econômica mundial?
NO Eu não tenho a menor dúvida. Já estão enfrentando melhor a crise com respostas estruturais muito maiores às questões sociais e estão vendo governos como o nosso tomar medidas que eles tomaram há cinco, seis anos. Ninguém tem falado sobre isso, mas eles estão mostrando controle faz tempo, enquanto todo mundo diz que tá faltando controle.
AT | O mundo precisa olhar melhor para esse modelo?
NO Precisa, porque eles não estão fazendo apenas intervenção estatal, estão reconstruindo democraticamente o Estado. E os instrumentos de poder que têm na constituição venezuelana, os novos instrumentos das autonomias na Bolívia, o caráter plurinacional em defesa da natureza no Equador, onde a constituição proíbe o Estado de resgatar banco quebrado, não é genial? Muito mais avançado! Eles seguem o lema ′inventamos ou erramos′. Estão inventando, com mais estabilidade política, maior pressão das massas sobre as decisões e maior interesse do povo em participar da política.
AT | Qual o futuro da América
Latina?
NO Os povos estão se levantando. Onde o nacionalismo revolucionário perdeu, como no México e no Peru, os governos não gozam de popularidade. De tal maneira que o colapso ideológico do sistema aprofunda a crise do capitalismo que mal começou. Vai ter um colapso brasileiro ainda, pode anotar aí, com fuga de capitais, perda daqueles US 170 bilhões de divisas, maior endividamento estatal e maior controle dos banqueiros e exportadores produtivos que sempre especularam contra a moeda. Um fosso! Está para acontecer e é o próximo capítulo da crise. As grandes maiorias estão observando tudo isso, estão aprendendo e vamos entrar nessa rota latino-americana. Temos que apostar no processo de integração com corpo próprio, a favor dos nossos interesses. Depois discutiremos com o mundo, uma vez que estejamos fortes.
AT | O Brasil entra em colapso por causa do modelo neoliberal?
NO O Brasil entra em colapso porque o Plano Real entrou em colapso, que começou em 1994. A crise mundial apressa isso. Nós já estávamos amargando um déficit na balança de pagamento com superávit comercial diminuindo drasticamente. O fim do boom das mercadorias mundiais mostrou que o país estava preso a um modelo que é o de 1929, quando exportava café. Agora exportamos soja, produtos agrícolas e minerais. Uma regressão colonial gigantesca. Isso mostrou que o empresariado não tem cabeça para dirigir o Brasil. O povo vai ter que dirigir o Brasil. O empresariado tem que continuar produzindo nas fábricas, mas não dirigindo o País.