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“A Confluência Perversa”

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Por IELA em 27 de novembro de 2020

“A Confluência Perversa”

Protesto no Carrefour

Homenagem a João Alberto Silveira Freitas 
A socióloga Evelina Dagnino usou a expressão Confluência Perversa [1] ainda nos anos 1990 para indicar um fenômeno que vinha se passando, sobretudo na sociedade brasileira, onde uma linguagem surgida a partir das lutas sociais nos anos 1980 passara a ser usada generalizadamente de modo descontextualizado, esvaziando-a de significado. Um bom exemplo se passou com a ideia de participação. A expressão não podia ser mais precisa.
A ideia de participação popular estava associada a lutas como a reforma agrária ou a reforma urbana, ambas reivindicadas com participação popular. Desde então, a ideia de participação serviu de inspiração para uma série de “conselhos” onde grupos sociais vários dividem suas opiniões com outros setores da sociedade mediados pelo estado. Os temas de fundo, como a reforma agrária ou a reforma urbana, não faziam mais parte da agenda e não deram origem a nenhum “conselho”. Só havia participação numa agenda que não era protagonizada pelos setores populares.
Junto com esses “conselhos” outra expressão ganhou notoriedade: políticas públicas. Confesso que nunca vi essa expressão ser usada para qualquer referência ao Banco Central ou à política econômica que faziam com que o estado ficasse refém dos bancos e do rentismo ao mesmo tempo em que se castrava os direitos sociais que ainda existiam. E cabe a pergunta: haveria alguma política que não seja pública? Não estaríamos com esse “conceito” contribuindo para rebaixar o nível do debate teórico-político?
Registremos que em meio a essa complexa realidade em que o Estado se des-democratizava e se des-nacionalizava, conforme a feliz caracterização de Anibal Quijano [2], uma nova formação política se delineava com o Estado ampliando-se com as Organizações Neo-Governamentais. O Estado ampliado, conceito de Antonio Gramsci [3], amplia a compreensão das relações de poder para além do Estado restrito (Executivo, Legislativo e Judiciário), como se vê nas associações patronais e nas organizações que se autodenominam NÃO Governamentais [4].
Chamo a atenção que, no Brasil, muitas das organizações que recobriam esse campo de mediações sociais se autodenominavam, nos anos 1970 e 1980, como organizações sociais SEM fins lucrativos. Embora ambas se definam pelo negativo, umas são NÃO e outras são SEM, umas negam o lucro, são SEM fins lucrativos, e outras negam os governos, são NÃO governamentais.
Creio ser significativo o caráter do que negam. Negar os governos fazia parte da nova agenda liberal que o Consenso de Washington apregoava. E negar a ação governamental não deixava de ser uma bandeira que soava bem aos ouvidos, ainda mais em um contexto como o de países que saíam de ditaduras civis com protagonismo militar. Assim, surgiam democracias de baixa intensidade na exata medida em que a participação que se generalizava não debatia as questões de fundo e os Estados abandonavam a nação, no sentido que lhe atribuíra Aníbal Quijano. Surgem até novas profissões como mediador de conflito, esvaziando os grupos sociais que historicamente se constituem através deles.
Em seu lugar, as Organizações Neo-Governamentais, enquanto Estado ampliado, buscam mediar consensos e, assim, as classes privilegiadas se fortalecem ainda mais com a domesticação da participação popular. Afinal, nos “conselhos” estavam tão representadas como os movimentos sociais e, registre-se, cada vez menos se fala de movimentos populares [5]. Até mesmo a palavra povo passa a ser esvaziada por sua derivação em populismo a qualquer referência que se faça a ele. Quanta diferença desses “Conselhos” dos soviets (conselhos) russos, e das comunas, como as de Paris ou dos núcleos das Ligas Camponesas.
Enfim, uma pretensa participação generalizada acaba por esvaziar a participação. O locus privilegiado do que se definia como o campo das “esquerdas”, a participação popular protagônica, passa a ser esvaziado por uma “confluência perversa” que lhes rouba a agenda, quando não são as próprias esquerdas que passam a abandonar a mobilização e a presença ativa junto aos espaços populares e assimilar uma outra agenda.
Mais recentemente observamos uma nova fase desse processo quando vemos consórcios empresariais protagonizarem agendas que tradicionalmente vinham de setores em situação de subalternização/opressão/exploração, como a agenda antirracista, feminista e ambiental. Consórcios empresariais nacionais e internacionais vêm se manifestando contra o desmatamento da Amazônia e, agora, contra o racismo, depois do assassinato de João Alberto Silveira Freitas nas instalações da transnacional Carrefour, em Porto Alegre.
Sabemos como numa sociedade capitalista o grau de submissão do trabalho, condição para se extrair sobretrabalho, se apoia em formas de opressão sobre os corpos como as assinaladas, que começa por reduzi-los à condição de uma parte do corpo, como mão … de obra. Um trabalhador negro ganha menos que um branco, mesmo que igualados na condição de corpos expropriados de meios de produção-reprodução; uma mulher ganha menos que um homem, mesmo que igualada a eles na condição de corpo expropriado de meios de produção-reprodução e, se mulher e negra, ganha menos ainda que todos, mesmo que igualados na condição de corpos expropriados de meios de produção-reprodução.
Assim, a mais valia é tanto maior quanto mais se é oprimido pelo gênero e pela raça, mesmo que todos estejam igualados na condição de corpos expropriados de meios de produção-reprodução. Surpreende que tanta igualdade que os identifiquem se vejam separadas em identidades outras num divide et impera que mais serve aos de cima do que aos de baixo [6]. E, sublinhemos, que entre essas diferentes minorias a maior parte de seus membros é de expropriados dos meios de produção-reprodução da vida [7].
Já experimentamos os limites de uma leitura exclusiva das clivagens sociais às classes sociais que subestimavam essas múltiplas formas de opressão que mediavam a exploração e serviam para  subalternizar a todos e todas. Mas já se passaram, desde os anos 1960, mais de 50 anos de crítica em nome de uma nova esquerda que teria aprendido a valorizar essas formas de opressão e afirmar suas identidades, mas que o teria feito abdicando daquilo que igualava tantas diferenças, o que nos levou ao atual estado de coisas.
Não esqueçamos que vivemos, nos últimos 50 anos, a maior concentração de riquezas jamais havida em toda a história da humanidade, o que gerou até mesmo a ideia de que somos dominados pelo 1% dos mais ricos do planeta. E entre os mais pobres estão os que vivem do trabalho, expropriados dos meios de produção- reprodução da vida e, entre eles, as trabalhadoras, as negras e negros e os estrangeiros migrantes. Deixemos claro: a new left já não é tão new e, a julgar pela captura corporativa da agenda identitária, está desafiada a refletir se ainda se quer left, sobretudo na vertente que luta por um mundo para além do capitalismo.
Enfim, o Carrefour e o consórcio empresarial que se manifestaram contra o assassinato de João Alberto Silveira Freitas podem até condenar o racismo, mas não vão incluir a questão Racial ou de Gênero em suas políticas de recursos humanos, em sua folha salarial e, muito menos, na distribuição de seus lucros que são apropriados sobretudo por homens brancos e algumas poucas mulheres, quase todas brancas. O racismo e o patriarcado não são externos às relações sociais e de poder que conformam a sociedade capitalista que abarca múltiplas hierarquias/clivagens/opressões estruturantes e que tem na expropriação dos corpos das condições materiais de produção-reprodução o elemento que iguala os diferentes sob o capital, ainda que o capital explore a mais valia quanto maior seja a opressão racializada ou patriarcal.
Superemos a “confluência perversa” e recuperemos a radicalidade democrática do dissenso, ou seja, da política como “o sentido da escolha entre concepções alternativas” (Ranciere, 2014 [1996]) [8]. Afinal, estamos em caos sistêmico e a batalha contra o capitalismo parece estar exigindo que devemos saber usar com inteligência a potência que vem do-as mais subalternizado-as, oprimido-as e explorado-as para buscar uma sociedade digna sem opressão/exploração/subalternização de qualquer gênero, cor e classe.
Notas 
1 DAGNINO, Evelina, 2004. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In Políticas de Ciudadania y Sociedad Civil en Tiempos de Globalización, Daniel Mato e Illia Garcia (coords.), Caracas: UCV2 QUIJANO, Aníbal, 1988. Modernidad, identidad y utopía en América Latina. Ediciones Sociedad y Política, Lima.3 GRAMSCI, Antonio, 1988. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira4 Alguns autores, como o linguista estadunidense Noam Chomsky, chama-nos a atenção para o fato de que as empresas não são uma instituição de natureza exclusivamente econômica, mas sim são instituições políticas atravessadas em seu ser por relações de poder.5 Recentemente no Brasil, até mesmo esses “conselhos” foram extintos ou completamente esvaziados pelo governo da ultradireita e seus apoiadores liberais de direita (eufemisticamente chamados de “centrão”). Os grupos sociais subalternizadxs que deixaram de ter seus lugares nesses conselhos não tiveram força para impedir esse esvaziamento. A mobilização que os fez serem reconhecidos e membros desses conselhos foi substituída pela representação que, com o tempo, levou a que deixassem de se apresentar. O ápice dessa representação em “conselhos” se deu nos governos liderados pelo PT, entre 2003 e 2016. Enfim, a dialética mobilização- negociação, mediação-ação, representação-apresentação pendeu para o primeiro lado da expressão. Trata-se de um dilema que vem acompanhado as lutas sociais e suas instituições próprias.6 Observe-se que o gabinete que vem sendo formado pelo recém-eleito Presidente dos EEUU, Joe Biden, teve o cuidado de fazer constar entre seus membros todas as minorias, com o cuidado de mantê-las enquanto tais, embora sejam a maioria da sociedade, sobretudo pela condição de expropriadxs dos meios de produção-reprodução da vida. 8 Não descuremos que os corpos de cada quem não existem em si e por si mesmos, pois são frutos das relações e das relações de relações, como nos ensinam os povos andinos, povos de pensamento relacional e que não têm uma palavra para indivíduo exatamente por essa compreensão (ESTERMANN, Josef. 2006. Filosofía Andina: Sabiduría indígena para un mundo nuevo. ISEAT. 2ª ed. La Paz).7 Não descuremos que os corpos de cada quem não existem em si e por si mesmos, pois são frutos das relações e das relações de relações, como nos ensinam os povos andinos, povos de pensamento relacional e que não têm uma palavra para indivíduo exatamente por essa compreensão (ESTERMANN, Josef. 2006. Filosofía Andina: Sabiduría indígena para un mundo nuevo. ISEAT. 2ª ed. La Paz).8 RANCIÈRE, Jacques. 1996. In A Crise da Razão. Adauto Novaes (Org.) Cia das Letras, São Paulo. Pode ser consultado também em https/territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/10/19/o-dissenso-jacqu…. Consultado em 23/11/2020.
 
 

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