Início|Teoria da Dependência|A esquecida entre os esquecidos: os 80 anos de Vânia Bambirra

A esquecida entre os esquecidos: os 80 anos de Vânia Bambirra

-

Por IELA em 22 de dezembro de 2020

A esquecida entre os esquecidos: os 80 anos de Vânia Bambirra

Foto: Rubens Lopes/IELA

O catastrófico ano de 2020, marcado por uma histórica pandemia, me trouxe o conhecimento (ainda em desenvolvimento, vale salientar) da vida e obra de Vânia Bambirra. Neste ano conturbado, tive a oportunidade de escutar palestras e entrevistas da Bambirra no YouTube, assim como ler a clássica obra O Capitalismo Dependente Latino-Americano; traduzida e publicada pela Editora Insular, em parceria com o IELA. Foi uma honra conhecer um pouco desta grandiosa autora e militante que dedicou sua vida no entendimento e transformação da realidade brasileira e latino-americana. Apesar da expressividade de suas reflexões, Bambirra foi relegada ao esquecimento, assim como seus companheiros do chamado “Grupo de Brasília”, grupo este que continha figuras como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos. Dentro do cânone do que chamo de Pensamento Social Brasileiro, ela acabou se tornando a esquecida entre os esquecidos. Esse esquecimento fica escancarado quando, em pleno 80 anos de seu nascimento, tivemos escassos eventos acadêmicos que visassem refletir sobre sua obra. Se fomos para as organizações políticas, quantos partidos ou movimentos sociais organizaram espaços ou lembraram (nem que seja de modo protocolar, através das redes sociais) do seu octogenário?
Enquanto isso, em termos comparativos, 2020 foi o ano do centenário de duas figuras carimbadas do Pensamento Social Brasileiro: me refiro a Florestan Fernandes e Celso Furtado, ambos nascidos em 1920. Essas duas importantes figuras da Sociologia e Economia, respectivamente, com relevantes escritos sobre a América Latina, foram lembradas em diversos eventos e por diversos partidos e movimentos sociais. Só a título de exemplo, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), organização que Bambirra ajudou a fundar e que só se desfiliaria em 2000, chegou a organizar um evento de uma semana sobre o pensamento de Furtado, contando com a participação de Luiz Gonzaga Belluzzo, José Augusto Ribeiro, Ciro Gomes etc. E sequer preciso descrever aqueles que se lembraram do centenário de Florestan, autor protagonista de vários eventos acadêmicos e reverenciado por diversas personalidades e movimentos/organizações da esquerda brasileira; apesar de muitos, como o Partido dos Trabalhadores (PT), estarem muito distante dos seus ideais. Diante desse cenário e com o intuito de lembrar quem foi e o que produziu Vânia Bambirra, escrevo este texto nos últimos dias de 2020 para mostrar não só a importância, como também sua atualidade.
Mineira, nascida em 1940, Bambirra foi uma socióloga que se graduou em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também conquistando os títulos de mestre e doutora pela Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), respectivamente. Filha de um alfaiate militante do antigo Partidão (PCB), Bambirra conheceu desde cedo a importância da luta dos oprimidos. Por isso toda sua trajetória intelectual e acadêmica, se vincula a produções que visaram aliar reflexão teórica com militância política. Junto com Theotônio, participou de grupos de defesa da Revolução Cubana. Marxista convicta, Bambirra foi expulsa da UnB, após o golpe civil-militar de 1964, onde exercia funções docentes. No exílio, morou inicialmente no Chile e após o golpe de Estado contra Salvador Allende, se mudou para o México. Nesses dois países de língua espanhola, ela escreveu a maioria de seus textos, sendo com isso uma autora pouco conhecida (e traduzida) no Brasil. Fora do seu país, Bambirra participou do Centro de Estudos Sócio-Econômico (CESO) da Universidade do Chile, onde junto com vários intelectuais estudou profundamente a formação e desafios dos países latino-americanos.
Foi através dos seus estudos no CESO que ela escreveu O Capitalismo Dependente Latino-Americano, obra publicada pela primeira vez em 1972, no Chile. No México, exerceu a função de professora na UNAM. Como analisa muito bem Claudia Wasserman, autora da obra A Teoria da Dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo, Bambirra, quando retorna ao Brasil nos anos 1980, encontra um ambiente acadêmico totalmente diferente do visto nos anos 1960 e, por isso, se ver diante de grandes dificuldades. Como bem pontua Wasserman:
A dificuldade de reintegração dos exilados aos ambientes acadêmicos esteve, portanto, relacionada às transformações sofridas pelo ensino superior no Brasil naquele período, à adaptação das elites acadêmicas ao regime autoritário, à cooptação de intelectuais de esquerda por meio do financiamento de pesquisas e de bolsas e aos sistemas de promoção na carreira acadêmica (WASSERMAN, 2017, p. 169).

Sem espaço nesta nova academia, Bambirra passa a atuar política e profissionalmente na gestão de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, desenvolvendo políticas públicas com base em pesquisas sociológicas. Neste período, conseguiu aliar reflexão teórica com prática política concreta, através de um governo progressista que tinha, heroicamente, vencido as eleições para governar o estado do Rio de Janeiro. Entretanto, sua aproximação de Brizola começou antes dele assumir o posto de Governador. Junto com Theotônio e outros intelectuais como Moniz Bandeira e Darcy Ribeiro, Bambirra ajudou a fundar o PDT e foi adepta da histórica Carta de Lisboa que, na prática, reconstruiu a herança política trabalhista golpeada em 1964. O eurocomunismo e o radicalismo difuso do PT, fez Bambirra se filiar e construir as fileiras do PDT. Sobre o ncontro em Lisboa, afirmou a socióloga:
Apesar desse encontro ser híbrido, nunca deixei de reconhecer a sua relevância, pois foi democrático e as propostas mais relevantes foram aprovadas nas comissões, o que resultou em um programa muito avançado. Nele, prevaleceram muitas das teses do chamado “Grupo do México”, o que nos fez sentir mais responsáveis pela sua implementação (BAMBIRRA, 1991, p. 32 apud WASSERMAN, 2017, p. 177-8).

Sobre a figura de Brizola, principal liderança política daquele movimento, declarou: “Estou com você, porque sei que jamais serás um Allende, vale dizer, jamais entregará, por pressão militar, o poder outorgado pelo povo” (Memorial, 1991, p. 31 apud WASSERMAN, 2017, p. 178). Em suma, Bambirra ao retornar ao país se vincula ao partido e liderança que mais se aproximavam da esquerda dos anos 1960, afastando-se das novas organizações que se mostravam “renovadoras”, seja o eurocomunismo do PCdoB ou o novo sindicalismo do PT. Sobre sua obra, apesar dela mesma reconhecer as limitações de sua tipologia da dependência, os países enquadrados como os de Tipo A permanecem tendo um desenvolvimento capitalista mais avançado em comparação com os países de Tipo B. O que mostra que, apesar da necessidade de renovação, tendo em vista as mudanças ocorridas após a virada do século, suas ideias sobre o desenvolvimento dos países latino-americanos permanecem atuais a grosso modo.
O processo de integração monopólica mundial, datado do pós-guerra, seguiu seu curso após a publicação de O Capitalismo Dependente Latino-Americano e hoje, mais do que nunca, as multinacionais seguem controlando majoritariamente a economia das nações latino-americanas. Com o processo de globalização intensificado, trazendo consigo o neoliberalismo, esse domínio se expandiu sob novas facetas. Os Megaeventos Esportivos, como a Copa do Mundo de 2014, podem ser vistos como uma dessas novas facetas do capital estrangeiro na região. As limitações de um projeto de industrialização nos países dependentes, é comprovada na atualidade quando temos o Brasil em um intenso processo de desindustrialização desde, pelo menos, o Governo Collor. O entendimento do latifúndio como o setor mais atrasado e conservador das sociedades latino-americanas, também pode ser visto como uma constatação atual, seja através do não avanço da reforma agrária a nível continental ou o assassinato de indígenas e destruição do meio ambiente, visto a nível nacional.
Por fim, a descrença na burguesia industrial, aliada e conivente do conservadorismo dos grandes proprietários de terras, também se mostra presente com a repetição de um golpe de Estado em que, assim como 1964, os principais setores econômicos da burguesia e do latifúndio se uniram em torno dos seus interesses de classe; derrubando a presidenta Dilma Rousseff. Esta descrença desemboca em sua crítica ao desenvolvimentismo, outro ponto que permanece atual das ideias de Bambirra. Brasil e Bolívia, vítimas recentes de golpes de Estado, são exemplos do insucesso dessas políticas na superação da dependência. Sem uma burguesia industrial comprometida com um projeto de nação, torna-se impossível uma revolução burguesa que desemboque num desenvolvimento capitalista autônomo.
No mais, encerro este texto com o desejo de que, no futuro próximo, possamos trazer Bambirra com mais profundidade para a cena intelectual brasileira; traçando seus méritos, limitações e possibilidades. Acredito que o IELA foi o grande responsável por seu recente e necessário resgate, dando com isso um importante passo inicial, que deve ser intensificado por aqueles que desejam compreender e transformar a América Latina.

Últimas Notícias