História e Pensamento Militar
Texto: IELA
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A felicidade postergada
Por Raquel Moysés – jornalista
Um inventário da qualidade de vida dos trabalhadores da mídia apresenta a seguinte constatação: a toda hora eles são vilipendiados!
30.08.2010 – LER, que LER? Você sofre é de “lerdeza”!
Parece até vinheta de história em quadrinhos, ou frase de piadinha de mau gosto publicada em almanaque de remédio de farmácia. Mas não é nada disso não. Este é o xingamento que uma jornalista, com LER (Lesão por Esforço Repetitivo), em quarto grau, teve que ouvir do diretor de redação. Ela fora conversar com ele sobre seu estado de saúde, que a impedia de continuar trabalhando no ritmo enlouquecedor exigido pela empresa jornalística. Outra repórter, ao ser impedida de socorrer o filho adoecido, ouviu, do chefe de plantão, a serviço do patrão onipresente:- Não é seu filho que paga seu salário.
Profissão pintada e vendida com as cores do glamour, o jornalismo traz nas veias um componente mortífero: a de ser, nos tempos “modernos”, uma das atividades que mais submetem os profissionais à superexploração e ao adoecimento. Um número cada vez maior trabalha em condições degradantes, que exaurem suas condições físicas e psicológicas. Muitos já nem conseguem ir até o fim, e se vêem obrigados a abandonar a profissão. Raros jornalistas conseguem passar dos 50 anos de profissão em pleno exercício, como o consagrado José Hamilton Ribeiro, repórter dos tempos da Revista Realidade que, em 1968, correspondente de guerra no Vietnã, perdeu uma perna, despedaçada na explosão de uma mina.
Relatos como os citados acima e outras situações desesperadoras foram narradas por jornalistas, homens e mulheres, que se dispuseram a participar de uma pesquisa realizada pelo psicólogo, advogado e professor Roberto Heloani, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pesquisador na área de Saúde Mental no Trabalho, Assédio Moral/Sexual e um dos fundadores do portal www.assediomoral.org, Heloani é autor, entre outros livros, de A Imagem Intencional do Discurso Adequado, (Pannartz, 1991); Organização do Trabalho e Administração (Cortez, 2004); Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho (Atlas, 2007) e Assédio Moral no Trabalho( Editora CENGAGE), 2008.
Através da pesquisa, o professor pôde verificar o quanto é forjado – no público ouvinte, nos telespectadores e nos leitores – o imaginário de uma profissão charmosa e plena de aventura e emoção. Heloani, que estuda desde 2002 o mundo dos jornalistas, descobriu nele cenários de horror, incluindo aí combinações perversas que vão da superexploração ao assédio moral e sexual. Na primeira fase da pesquisa, acompanhou por dois anos e meio como vivem os chamados “formadores de opinião”, e verificou o quanto o meio jornalístico se distancia de uma visão de trabalho como base de identidade e humanização.
Psicólogo que faz parte da Comissão de Direitos Humanos no Conselho Regional de Psicologia (CRP/SP), Heloani disse, durante o Congresso dos Jornalistas de Santa Catarina, ter encontrado entre os profissionais da mídia sentimentos antagônicos. Constatou que vivem o drama de serem tomados de amor e ódio pela profissão: “São apaixonados pelo jornalismo, mas odeiam o que são obrigados a fazer.”
Para realizar a pesquisa, usando método qualitativo e quantitativo, ele ouviu dezenas de profissionais de rádio, TV, veículos impressos e assessorias de imprensa, que tinham entre 20 e 60 anos na data da entrevista, e viviam nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. O cenário que se avista desse estudo, porém, é bastante representativo do que ocorre na maioria do Brasil, já que as empresas afiliadas seguem em geral o mesmo modelo de gestão dos donos da comunicação nacional, grupos que se contam nos dedos de uma mão.
Difícil até ser mãe
Na pesquisa, realizada através de grupo focal e entrevistas individuais, as mulheres aparecem em maior número, sendo a maioria delas solteira. Uma explicação dada pelas trabalhadoras é de que é difícil encontrar um companheiro que compreenda e aceite os horários e o ritmo a que estão sujeitas. O número de filhos também é reduzido, abaixo de dois, inclusive entre os homens, que também vivem a dificuldade de manter relacionamentos equilibrados por tempo prolongado. Muitas mulheres postergam a maternidade, pois criar um filho se torna complicado. Uma das jornalistas entrevistadas confessou que praticamente só conseguia conversar com o filho “na hora de fazer xixi”. Ainda assim, via a criança apenas duas vezes por semana, tendo que, no restante do tempo, confiar o menino aos cuidados da avó.
É visível na pesquisa que as empresas passam a preferir trabalhadores cada vez mais jovens, com a saúde e a energia exigidos para “suportar o tranco” e, provavelmente, ainda embalados na fantasia do glamour da profissão. A maior presença de gente moça nas redações gera alguma guerrilha interna, aproveitada com argúcia e competência pelas empresas, que incentivam a rivalidade entre a nova e a velha geração, sendo a última acusada de possuir só “cultura livresca” e de ser “avessa às novas tecnologias”.
Nesse jogo de poder, conta a favor dos patrões a despolitização de boa parte da juventude, educada dentro de uma lógica liberal e egocêntrica, nota Heloani. Isso leva também a um elevado índice de rejeição da organização coletiva dos trabalhadores, contribuindo para esvaziar e enfraquecer os sindicatos. Assim, fica mais fácil para as empresas imporem a superexploração e o regime de multifunção.
A aversão ao “velho” e a despolitização, alimentados pelas empresas, produzem outro efeito perigoso: a morte do jornalismo investigativo, associado ao um modo ultrapassado. Cada vez mais predomina a prática do “jornalismo espetacular, apelativo e sensacionalista”, que explora o aspecto emocional para sutilmente impor ideias, desejos, medos e induzir a comportamentos de reforço do sistema de exploração capitalista. Esse tipo de prática também está relacionado, como constatou Heloani na pesquisa, à procura cada vez maior pelas faculdades privadas, do tipo “colegiões de terceiro grau”, de quarta ou quinta categorias, que se espalham pelo país. A formação precária contribui para a redução do senso crítico do profissional, que, frequentemente, abraça uma visão positivista, funcionalista, ingênua e ahistórica. Dessa forma, fica mais sujeito a manipulações e a aceitar, sem resistência, o papel de profissional multifuncional superexplorado.
O outro como adversário
Se há uma área que abraçou a lógica do toyotismo (modo de organização da produção capitalista, em que o trabalhador deve ser polivalente, apto a adotar multifunções), é a do jornalismo, faz notar Heloani. “Praticamente não há mais o repórter puro. O profissional é obrigado a fazer de tudo um pouco.” Essa forma de organizar o trabalho, também deteriora as relações humanas, pois cria cizânia no meio da classe trabalhadora. “O outro passa a ser visto não mais como um colega de profissão, mas como um adversário, aquele que, ao também saber um pouquinho de tudo, pode te substituir a qualquer momento.”
O contrato multifunção prevalece principalmente entre os mais novos, que acabam absorvendo a exploração como se fosse algo natural, sinal dos tempos tecnológicos inelutáveis. Assim, jovens repórteres se submetem a fazer “de tudo”, incluindo filmar, fotografar, fazer notícias para rádio, iluminar, escrever reportagens, editar, blogar e, até mesmo, dirigir o carro, fazendo a vez de motorista. A jornada de trabalho, que pela lei é de 5 horas, nunca termina antes de 12 horas, nos dois estados pesquisados.
Nessa região, Heloani encontrou uma situação de extrema fragilidade diante das demissões, pois mais de 90% dos trabalhadores estão precarizados, sem contrato ou outra forma de registro, sendo comum inclusive o trabalho através do sistema de cooperativas. Desse modo, o jornalista fica sem qualquer proteção e assistência jurídica quando sofre processos e corre o risco de ser penalizado pelo seu trabalho, principalmente quando cumpre pautas que exigem investigações pesadas, até com risco de morte. “A empresa não banca nada,” constata Heloani. “O jornalista é jogado no fogo, e depois fica na mão. E quando, totalmente desprotegido, morre em serviço, como aconteceu com Tim Lopes, o que a empresa faz é dar os pêsames à família.”
Tal modelo de exploração que se repete em todo o país também se enraíza na região sul, assinala Rubens Lunge, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Santa Catarina. Ele fala dos famosos “pescoções”, praticados por certos jornais do Estado, que obrigam jornalistas a fazerem “plantões” de até dois dias, sem poder dormir, sem ver a família e, ainda, submetidos a todo tipo de pressão. “Isso sem contar as fraudes, como as praticadas por alguns jornais catarinenses, que não têm qualquer empregado. Todos são transformados em sócios-cotistas. Assim, ou se matam de trabalhar, ou não recebem um tostão”. Nesse sistema, mesmo trabalhando à exaustão, há meses em que o salário fica zerado, como confessou um repórter a Lunge, durante uma visita do sindicato ao interior.
Vivendo desse jeito, com a cobrança contínua por “atualização e flexibilidade”, com o estresse provocado pelo temor de ficar desempregado se não atingir as metas do patrão, tendo que pensar sempre em um “plano B para sobreviver, estão plantadas as bases para a pessoa começar a sofrer até de algum transtorno mental. A sensação, principalmente no caso do homem, de não conseguir ser o provedor em casa, é devastadora, gerando um sofrimento atroz. Sem tempo para a família, para leituras, para o lazer, poucos ultrapassam 20 anos na profissão.
Colapso da saúde
“Uns caem fora, outros adoecem”, diz Heloani ao cita o caso de um jornalista que está na cadeira de rodas, mas não tem problema neurológico algum. Ele é afetado por uma neurose histérica do tipo conversivo, que se caracteriza como uma alteração ou limitação física involuntária e inconsciente, que ocorre como resultado de conflitos ou necessidades psicológicas, na ausência de distúrbio físico. Os sintomas apresentados por esses pacientes são dos mais diversos tipos, incluindo anormalidades motoras, perturbações sensoriais e distúrbios de consciência.
O medo de não chegar à aposentadoria e as pressões familiares amplificam os problemas de saúde. Por isso, são cada vez mais freqüentes entre os jornalistas doenças cardiovasculares, como os Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs). Também já irrompe o fenômeno da morte súbita, principalmente entre os mais jovens. Outro problema que aparece é o do uso sistemático de drogas lícitas, como os antidepressivos, assim como a dependência química, provocada pelo consumo de drogas.
Cerca de 80% dos profissionais pesquisados sofrem de estresse e mais de 25% deles estão na fase da exaustão, o que significa estar à beira de uma internação hospitalar. Doenças como cardiopatias, diabetes e síndrome do pânico também são cada vez mais recorrentes, e há os que, em condições desesperadoras, até pensam em suicídio, sendo essa situação mais presente entre os homens. Até entre os jovens, que frequentemente se sentem indestrutíveis, já é possível notar uma mudança de comportamento, pois eles também acabam adoecendo, por causa das pressões e das exigências que se avolumam.
Todas essas situações dramáticas, no entanto, ficam na penumbra. Poucos se manifestam para denunciar tais práticas e também para oferecer apoio a quem é assediado moralmente ou sexualmente. E quando criam coragem de se solidarizar, geralmente e o fazem de forma sigilosa, para não se comprometer e ficar visado no meio. Muitos se queixam de que há muita deslealdade, de que competição é desapiedada, de que grassa na mídia a arrogância e a inveja, além de muito narcisismo. Isso causa profundo ônus em termos psíquicos, pois a pessoa tem consciência de que é completamente substituível, diz o pesquisador, lembrando o que isso tem significado em danos para trabalhadores de setores como o bancário e o de serviços, por exemplo.
Contudo, isso tudo é apresentado como uma tendência tecnológica irrefutável, representando um ganho político e financeiro gigantesco para as grandes corporações, cuja máxima é a seguinte: – Não está satisfeito, vá embora! A palavra da ordem do sistema faz perdurar entre os profissionais a falácia de que só sobrevive no meio quem é muito bom. O resto, quem não é bom, é expulso do campo de batalha.
O jornalista ganha muito mal. Fora os “figurões”, a maioria dos profissionais, nos dois estados pesquisados, recebe salários que raramente chegam a três mil reais, forçando a maior parte a buscar um segundo emprego. Além da precária estrutura e da obrigação de cumprir as atividades multifuncionais sem se queixar (inclusive são obrigados a assinar um contrato de que aceitam tais condições), pesa o fato de não se ter qualquer segurança e estabilidade no trabalho, muito menos garantia de direitos trabalhistas. O terreno em que pisa o jornalista é de areia movediça. A demissão está sempre no horizonte.
Jornada de humilhação
O que há de mais preocupante em tudo isso, como diz o psicólogo, é que, na ilusão de que o sofrimento é temporário, por isso mesmo suportável, muitos acreditam que a saída está em buscar soluções individuais. Esse tipo de atitude, além de ser absolutamente insuficiente, como avalia Heloani, contribui para ampliar o espectro da solidão e reforçar as práticas violentas, como o assédio moral e sexual no trabalho. O psicólogo considera que há um ligação entre assédio moral e os ambientes de trabalho competitivos, em que é cotidiano o cumprimento de horas extras. “O assédio moral é uma consequência natural desse ambiente. É praticamente impossível não ter processos de humilhação em locais de trabalho em que as pessoas são vistas como coisas”.
O assédio moral consiste em submeter trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho. A vítima escolhida, isolada do grupo sem explicações, passa a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada e desacreditada diante dos colegas. E estes, por medo do desemprego, de sofrer humilhação parecida ou por outros motivos incentivados, como a competição por exemplo, rompem os laços afetivos com o assediado. Além disso reproduzem, muitas vezes, ações e atos do agressor, instaurando o ’pacto da tolerância e do silêncio’. A vítima, com a auto-estima em queda livre e frequentemente adoecida, muitas vezes é forçada a desistir do emprego.
Heloani responsabiliza principalmente as empresas por essas práticas violentas. Explica que o assédio não é uma doença ou um problema ético da classe trabalhadora, mas uma patologia organizacional, um problema social. “Ou modificamos a forma de organizar o trabalho ou teremos de conviver ainda por muito tempo com o assédio moral”. O psicólogo também associa o crescimento dos casos de assédio à lógica da “felicidade como produto”. Ele lembra que as pessoas ouvem todo o tempo que não se deve postergar a felicidade. Que é preciso agarrá-la, porque, afinal de contas, ninguém sabe o dia de amanhã. Nos programas e novelas de TV ou na competição entre aprendizes, a ideologia predominante é a da felicidade material: é pegar ou largar. “Isso vai passando para a lógica do trabalhador. É preciso ter resultado, ser reconhecido agora. Acaba sendo normal pisar nos outros. O assédio moral se torna assim algo natural”.
Tais práticas, assim como outras de vilipêndio do ser humano, são facilitadas quando os trabalhadores se afastam da organização no sindicato e da busca de saídas coletivas, ainda as únicas medidas que podem ter alguma eficácia. Quanto a isso, Rubens Lunge, não tem dúvidas. “É só amparado pelo sindicato, em ações coletivas, que os jornalistas encontrarão forças para mudar esse quadro”. Rubens contou, no congresso dos jornalistas, ter testemunhado a emoção vivida por uma jornalista na cidade de Sombrio, no extremo sul catarinense, quando, depois de denúncias sobre sobrecarga de trabalho, o sindicato apareceu para verificar. “Ela chorava e dizia, `não acredito que o sindicato veio´”.
Isso mostra que o desamparo de quem é submetido à situação de um “liquidificador batendo matéria” – metáfora usada por Heloani – só pode ser enfrentado se a solidão começar a ser rompida. Algo só vai mudar se o medo for quebrado e as denúncias gerarem ações concretas. Porque o horror econômico está sempre à espreita, e ninguém está livre de ser a próxima vítima nessa jornada de humilhação.
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