Início|Sem categoria|A fertilidade da palavra

A fertilidade da palavra

-

Por IELA em 18 de maio de 2010

A fertilidade da palavra
Por Raquel Moysés jornalista
18.05.2010 – O primeiro debate  da  temporada 2010 dos Encuentros 18:30, organizados pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos, teve a presença de três estudiosos que vieram de Curitiba. Numa noite de encontro, no campus da UFSC,  eles contaram a história de um encontro de amigos que  se juntaram para criar uma editora que  se revela pelo nome de batismo:  Segesta.
O nome, inspirado na deusa da fertilidade,  não veio por acaso. Foram idéias fecundas  que moveram  um casal de italianos e outro de brasileiros, unidos pela amizade e por longa militância política, a decidir, em determinado momento de suas vidas,  arriscar tudo  e criar uma editora.  Nada de  bestsellers, porém.  A proposta é de publicar obras clássicas pouco conhecidas até mesmo no meio acadêmico.
E foi um pedacinho dessa história, quase uma gesta editorial, que três dos editores narraram  nos “Encuentros” de março. Andrea Vicentini é economista pela Universidade de Urbino, Itália, e foi diretor da Companhia Brasileira de Colonização e Imigração Italiana entre 1969 e 1975. Fani Goldfarb Figueira,   socióloga e  tradutora de livros como “Novos princípios de economia política (1819-1827)”, de Jean-Charles Léonard Simonde de Sismondi, publicado pela primeira vez em língua portuguesa, pela Segesta. Pedro de Alcântara Figueira, historiador, foi pesquisador do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e um dos autores da História Nova. A quarta das criadoras desse sonho editorial, Marzia Terenzi Vicentini foi lembrada,  in memoriam, como a estudiosa que se debruçou,  com dedicação,  às traduções e revisões dos originais, mesmo durante a enfermidade.
Vazio nas escolas
Nascidos em dois continentes e reunidos pela vida, os editores falaram brevemente de como suas  histórias  se cruzaram até chegar à criação da Segesta. Dedicaram, porém,  a maior parte do tempo para comentar as obras publicadas, preciosidades da literatura econômica clássica,   e para  esclarecer sobre o  intuito que os  anima a continuar  esse projeto de vida que escolheram depois de se aposentar.
Andréa Vicentini critica a prática do ensino na universidade, afirmando que o grande mal, aqui, como na Itália ou em Belize, é estudar por manuais. “Eu, por exemplo, estudei  em uma universidade italiana, onde me ‘deformei’ em economia”.    Ele conta como se sentiu despreparado para atuar na vida real quando chegou ao Brasil,  em 1967, com a tarefa de organizar uma cooperativa agrícola em uma colônia de imigrantes italianos.
“Só então percebi o vazio das escolas de economia, que  esquecem do trabalho e do homem, e só vêem a matemática”. Foi aí que entendeu não dispor dos elementos teóricos de que necessitava para enfrentar os desafios que se apresentavam no seu trabalho com humanos. Entre 1969 e 1975, Vicentini foi diretor da Companhia Brasileira de Colonização e Imigração Italiana.  Os estudos, porém, sempre ocuparam um lugar central na vida dos quatro amigos, que prepararam e semearam   o terreno até que, em 1990, nasceu a Segesta.
Raízes do pensamento
Desde o início, os quatro  se lançaram ao desafio de traduzir e publicar 20 obras centrais das raízes do pensamento econômico, das quais nove já estão publicadas. Entre a obras em preparação, encontra-se “Os Trabalhos e os Dias”, de Hesíodo. No horizonte, outro projeto, o de   publicar uma nova tradução de “O Capital”, de Karl Marx.
Em entrevista ao IHU On-Line – Revista do Instituto Humanitas, da Unisinos,    Vicentini  comenta que depois da queda da antiga União Soviética, “o trabalho teórico de Marx ganhou autonomia e eliminou a confusão que considerava, erroneamente, os regimes socialistas existentes como resultado do seu pensamento.”  Ele considera que não existe obra de economia tão clara, profunda, importante e atual como “O Capital”, publicado em 1867.
Andrea Vicentini explica  que o projeto para publicar a coleção   “Raízes do Pensamento Econômico”  veio à luz  como parte da trajetória de muitos anos de estudo na área de história, literatura, sociologia e economia. A idéia era de oferecer obras importantes e desconhecidas,  em textos integrais e editados com esmero. Para começar, o grupo teve o  apoio do Instituto Italiano de Cultura, que financiou a tradução de três textos.
O editor  lembra que todos os textos da coleção “Raízes do Pensamento Econômico” eram inéditos no Brasil e tratam de temas relacionados ao  conhecimento dos problemas da moeda. Na entrevista já citada, ele esclarece: “Observamos que esta linha de estudo está sendo implementada na França, onde está sendo traduzido Antonio Serra, na Alemanha, onde está sendo traduzida a obra de Galiani  “Da moeda”; e na Argentina, onde já foi traduzido o texto de Oresme. Quero sublinhar, assim, que a pesquisa da Segesta faz parte de um processo maior que está ativo no mundo todo.”
Conhecimento livreNo  início os editores haviam pensado que os livros pudessem ser vendidos para os acervos das bibliotecas públicas e universidades, mas isto não se concretizou. “Quando o governo faz compras para estas entidades, a Segesta esbarra no lobby das grandes editoras que monopolizam o fornecimento.” Por isso, antes de se comprometer com a edição, os editores  buscam assegurar o capital necessário para custear cada publicação.
O interesse maior deles é de oferecer esse conhecimento de forma livre. Eles  vendem os livros pela internet e em livrarias, mas fazem  doações a muitas  bibliotecas públicas. Só para o Ceará, enviaram livros para 200 bibliotecas. “Colocamos os textos na internet para download gratuito. Somos pessoas aposentadas com mais de 65 anos de idade. De um lado, podemos ir ao cinema gratuitamente, como podemos viajar de ônibus sem pagar, de outro, acho que temos o dever de difundir o conhecimento,” diz Vicentini . 
A intenção dos editores é de dar a conhecer amplamente os textos publicados, mas eles valorizam de modo especial  as obras impressas, que têm um acabamento cuidadoso   “A impressão é feita no melhor papel disponível.  A capa é forte e bonita. Já imprimir o texto fica caro, pois o cartucho é custa mais do que o livro.”
Ideias novas nos clássicos
Andrea Vicentini cita Antônio Vieira,  quando  diz,  num sermão: “Se queres ver o futuro, lede as histórias e olhai para o passado, se quereis ver o passado lede as profecias e olhai para o futuro. Se no passado se vê o futuro e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado”. Lembra que alguns textos do passado são mais importantes quando chegam a ser clássicos, isto é, quando  a cada nova leitura o leitor  encontra ideias novas para compreender a atualidade.
 “Vivemos martelados pela  mídia, dentro de um confuso e intrincado labirinto de idéias que escondem o verdadeiro caminho do conhecimento dos fatos políticos. A saída pode ser encontrada em textos do passado que tratam questões importantes, como a chegada de ouro e prata do Novo Mundo ao velho continente, a primeira emissão de papel moeda com John Law, os debates sobre comércio de cereais dos iluministas antes da Revolução Francesa.”
Para Vicentini, o desconcerto da máquina do mundo está   tão grande, e a mudança na sociedade é tão profunda,  que sequer se pode prever o que vai nascer dos despojos do atual imperialismo. Sem dúvida, ele avisa, “o estudo de acontecimentos e fatos do passado vai ajudar a entender o presente.”
Fazer política com livros
Na sua conversa sobre a empreitada quase solitária que conduzem, Fani Goldfarb Figueira, professora universitária aposentada e uma das editoras, vai logo deixando  claro: “Nós não somos loucos. Quando nos perguntam o que estamos fazendo, respondemos que temos interesse político em publicar os clássicos. A tradução é feita, assim como a publicação,  porque acreditamos que assim estamos fazendo política.”
Lembrando o período da ditadura, que também sofreram, Fani diz que, no dilema de como enfrentá-la, os quatro amigos não eram favoráveis à luta armada. Mas eles já estudavam Marx, e foram tocados por uma advertência que ele fazia: pobres dos comunistas que pensam que vão poder fazer revolução sem ter lido os autores da burguesia. Vários dos autores que hoje os editores traduzem e publicam pela Segesta, vieram diretamente indicados da obra do próprio Marx, que os cita em seus livros, como acontece com Galiani e Sismondi, por exemplo.
“Mas antes de decidir publicá-los, estudamos muito esses livros. Assim,  a publicação é resultado de uma concepção que tínhamos dessas obras clássicas. Entendemos que o conjunto desses livros nos ajuda a pensar e ajuda os jovens a refletirem sobre o que estão fazendo.”
Na verdade, os quatro amigos, agora três, criaram a Segesta por acreditarem  que,  trazer à luz   livros,   ajuda na compreensão do mundo e contribui para a transformação da sociedade. Por isso, o compromisso deles em publicar as obras que estudam, traduzem e editam, é uma forma de viver.

Últimas Notícias