História e Pensamento Militar
Texto: IELA
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Por Antônio Goulart – engenheiro eletricista, especialista do setor elétrico, militante popular membro do Sindicato dos Engenheiros/PR.
É quase meio-dia, depois de vários dias de tempestades, os campos da região estão encharcados, os rios e riachos quase saindo do seu leito. Há pouca gente nas ruas enlameadas de Pato Branco (sudoeste do Paraná), naquele momento a chuva é mansa e persistente, as lideranças sindicais e dos movimentos sociais observam o céu carregado, preocupados se o mau tempo não vai atrapalhar a vinda das pessoas das comunidades afetadas pela construção das usinas no rio Chopim, houvera muito esforço para mobilizar o povo para esta audiência e a chuva poderia impedir a vinda das comunidades. Porém, pouco a pouco vão chegando os ônibus, o auditório vai sendo tomado por aqueles homens e mulheres de rostos firmes, na sua maioria de descendência européia, rostos marcados pelo sol da roça, no trabalho de cada dia. Das 250 pessoas esperadas, comparecem mais de 500, confirmando que as comunidades compreendem a importância fundamental de debater o assunto.
A audiência, convocada pela Frente Parlamentar de Acompanhamento aos Processos de Instalações de Centrais Hidrelétricas no Paraná, coordenada pelo deputado Tadeu Veneri, tem o seu caráter definido pelos Procuradores do Ministério Publico como extra-oficial. No entanto, para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), trata-se de uma pré-audiência, que tem como proposta promover um amplo debate preparatório para as audiências públicas oficias que ocorrerão brevemente, quando será necessário que todas as pessoas e a região impactada saibam em profundidade quais são as conseqüências e os impactos que estas centrais hidrelétricas causam nas comunidades, no meio-ambiente e na economia da região.
Ao longo dos 100 quilômetros do rio Chopim, estão previstas pelo planejamento energético nacional a construção de doze usinas, sendo que as três primeiras já tem o concessionário definido, duas delas são do grupo Gerdau e a outra será construída pela Copel, empresa pública. A audiência tem a finalidade de debater esta questão.
Uma mesa ampla coordena os debates, composta por procuradores do Ministério Público, deputados, vereadores, sindicatos e movimentos sociais. As ausências da Copel, Gerdau e do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) são registradas, cuja participação seria fundamental para o debate. As falas dos componentes da mesa debatem os aspectos do direito das pessoas atingidas, a compensação dos municípios, aspectos ambientais, a disputa entre municípios pelo posicionamento da casa de força, isto tem implicações tributárias, incertezas sobre a quantidade de terras alagadas, desconhecimento dos estudos de viabilidade. Há em alguns – embora defendo mitigar os impactos – a cautela de não se colocar contra a construção destas usinas.
É a partir das intervenções do plenário, das pessoas das comunidades que irão aparecer elementos, visões e debates. Para nós, urbanos, desconhecidos, relatos de experiências de profundas mudanças de vida, pessoas que viviam há gerações em uma localidade, foram arrancadas do seu lugar e colocadas a 500 km de distancia, em um local totalmente estranho, perderam toda sua referência de vida. Há outros casos nos quais as pessoas não conseguiram nem isto, não conseguiram ser reassentados, nem indenizados. Perderam tudo. Há depoimentos de suicídio de familiares que não resistiram a todas estas mudanças. Um agricultor, emocionado, relata que mora naquela terra há mais de 50 anos, vive junto com seus dois filhos casados, suas noras e netos, ele não quer vender nada, ele só quer a paz de terminar seus dias naquele local onde nasceu e se criou.
Lideranças do MAB relatam que em reuniões realizadas nos municípios, a Gerdau deixou claro que não pretende reconhecer o direito de reassentamento das famílias e que a forma de compensação será a indenização a partir do preço de mercado. Para a empresa, só será reconhecido o direito do proprietário das terras. Nesse caso, os filhos dos proprietários, parceiros, arrendatários, meeiros, funcionários e outros, além das famílias assentadas da reforma agrária não terão direito a nada, o que significa um enorme retrocesso e uma agressão aos direitos do povo. O MAB alerta que atingido é todo aquele que se sentir prejudicado pela construção da barragem.
Projetos desta natureza quando chegam à região apresentam dois argumentos poderosos, o primeiro é o do desenvolvimento, da necessidade do país por energia, da geração de emprego, o segundo argumento trata da modernidade, da importância da energia elétrica na vida das pessoas, de que esta energia é renovável, e que ela é produzida de forma limpa.
De fato, se observarmos do ponto de vista técnico, o processo da hidroeletricidade é fantástico, com um rendimento superior a 95 por cento do aproveitamento energético, se comparado aos 30 por cento das termelétricas, com uma confiabilidade e um tempo de vida das instalações muito maior. E, acima de tudo, do ponto de vista do capital, o custo de produção é irrisório, isto sem considerar o polêmico aspecto ambiental. Do ponto de vista social, viver sem energia elétrica seria igual a dar um salto para trás, regredir para século 19, por isso o apelo e a justificativa para a instalação destes complexos são tão fortes – o que também explica o por quê de tanta cautela de algumas autoridades.
É necessário compreender em que contexto se insere a construção destas usinas hidráulicas, sempre há uma aparência e uma essência, como ensina Marx, e a análise precisa ir além da superfície. A América Latina, e o Brasil em particular, cumprem um papel fundamental, conforme explica Ruy Mauro Marini, em seu livro “América Latina – Dependência e Integração”.
“Hoje, como ontem, os Estados Unidos estão interessados em restabelecer as bases de uma divisão internacional do trabalho que permita a plena circulação de mercadorias e capitais. A pressão que exercem sobre os países da America Latina vai, assim, no sentido de fomentar o modelo exportador, o que implica, em maior ou menor grau, uma reconversão produtiva que não apenas respeite o principio da especialização, segundo as vantagens comparativas, mas abra maior espaço ao livre jogo do capital”.
Na perspectiva desse projeto neo-liberal, começa a desenhar-se o futuro que o capitalismo internacional reserva a região: uma America Latina integrada ainda mais estreitamente à economia mundial, mediante a sua transformação em economia exportadora de novo tipo, ou seja, uma economia que, ao lado da exploração mais intensiva de seus recursos naturais, redimensione a sua indústria para torná-la competitiva no mercado externo e complementar a produção industrial dos grandes centros.Para todos os países da região, isto implica a destruição de parte do seu capital social, sobretudo na indústria, porque somente ramos com vantagens comparativas reais ou que absorvam alta tecnologia e grandes massas de investimento aparecem como viáveis, nessa nova divisão do trabalho….Para as massas, o preço da reconversão é o agravamento da superexploração do trabalho e a generalização do desemprego, qualquer que seja a sua forma, como resultado da destruição de parte do capital social e a rápida modernização tecnológica.”
A usinas do Rio Chopim, embora pequenas se comparadas com as usinas Jirau e Santo Antonio no Rio Madeira, ou com Belo Monte, no Rio Xingu, inserem-se exatamente na mesma lógica, embora neste caso a energia gerada atende um dos ramos industriais mais competitivos, que é a siderurgia, voltada para a exportação e cujos processos são movidos basicamente a energia elétrica.
O professor emérito da USP, o engenheiro Célio Bermman, em trabalho recente, demonstra de forma detalhada os processos industriais eletro-intensivo, verificando que, muito mais que o consumo residencial, o planejamento das usinas hidrelétricas é determinado pela necessidade dos grandes complexos industriais ligados aos capitais internacionais e nacionais, que respondem por quase 50 por cento do consumo de energia elétrica do país. E o pior: não há nenhuma correspondência na geração de emprego – são setores, como diz Marini, absorvedores de alta tecnologia, fortemente automatizados.
Repete a mesma estrutura que se dá na agricultura, onde o latifúndio detém 76 por cento da propriedade da terra, e contam anualmente com um financiamento de 100 bilhões de reais, produzindo soja, cana e eucalipto, enquanto o pequeno agricultor, com financiamento de 13 bilhões, e tão somente 24 por cento da terra, produzem 87 por cento da mandioca nacional, 70 por cento do feijão, 46 por cento do milho, 58 por cento do leite, 59 por cento dos suínos, 50 por cento das aves e 30 por cento dos bovinos.
O uso social da energia elétrica pelas pessoas promove mudanças que transcendem o simples valor econômico, situa-se no marco civilizatório entre o “viver com luz” e “viver sem luz”, isto é, viver no século 21 ou viver no século 18, em que pese toda esta potência e alcance social, o objetivo destes empreendimentos se insere muito mais na lógica do interesse do capital do que na lógica humanitária, por isto o drama das populações atingidas pelas barragens deve ser fraternalmente o drama de cada um e de cada uma de nos. Em recente entrevista com o MAB, o presidente Lula reconhece a divida histórica com esta massa de um milhão de pessoas atingidas pelas barragens. É necessário, porém, compreender todo este complexo processo, não se posicionar simplesmente a favor ou contra, mas entender a quem realmente servem estes projetos, não entrar na onda do crescimento e da modernidade. Em síntese, parafraseando o MAB, para que e para quem toda serve toda esta energia?
“Todos os dias temos que lutar para que esse amor à humanidade vivente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo, de mobilização”, Ernesto Che Guevara
Texto: IELA
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