Memória e Verdade: UFSC decide trocar nome do campus
Texto: IELA
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“Faz parte da lógica do poder produzir melancolia, nos levar a acreditar em nossa fraqueza e isolamento”, escreveu o filósofo brasileiro Vladimir Safatle (USP) em sua pequena-grande obra “Só mais um esforço”, de 2017. No texto, o filósofo aponta para a produção da melancolia coletiva no neoliberalismo com enfoque no contexto nacional e latino-americano, chamando o leitor a atentar-se para um tempo presente de urgências.
Para além das manchetes e chamadas no Youtube onde Safatle afirma que a “esquerda morreu” (e por isso é criticado, apenas pelas manchetes sensacionalistas sem o conhecimento de seu conteúdo), sua obra extensa e aprofundada a respeito dos poderes e contrapoderes que se estabelecem hoje, no continente latino-americano, vem ganhando novos escopos.
É chegado o momento de confluirmos algumas de suas principais reflexões a respeito do avanço do neofascismo global e de sua vertente latino-americana, numa aliança explícita entre as classes dominantes (proprietários, bilionários, financistas) e lideranças extremistas, por certo, com claro apoio de setores populares, parcelas significativas das classes trabalhadoras precarizadas, melancólicos e oprimidos, que acabam tragados pelas mesmas forças que anseiam destruí-los.
Este “poder” neoliberal que se impõe de maneira aparentemente irrefreável, ganha contornos sádicos quando acionamos outros conceitos de Safatle, como a impossibilidade de imaginarmos futuros alternativos frente a essa melancolia e realidade capitalista cruenta, a indiferença e a dessensibilização dos sujeitos perante a barbárie cotidiana e as chamadas “repetições históricas” que podem ocasionar novos e conhecidos momentos de terror, violência e medo extremos – as cenas de imigrantes acorrentados e algemados em massa, viajando em aviões norte-americanos ordenados por Donald Trump aos seus respectivos países, são apenas a cereja deste bolo. Trump está só começando.
Essas mesmas repetições, no entanto, também podem gerar potencialidades de ruptura nos planos simbólico e prático do universo político. Podem gerar a sua emancipação.
O retorno do bufão endinheirado e suas investidas neoimperialistas inaugurais contra o subcontinente americano, concretizadas na captura e aprisionamento de imigrantes ilegais, a sua maioria de famílias latinas de trabalhadores braçais e de serviços, são reverberados junto ao seu conhecido tom violento, soberbo e autoritário contra os governos da região, em especial aqueles que fazem parte da trôpega “segunda onda progressista” na América Latina, mas que mantêm (ainda) uma postura altiva e soberana perante o bafio extremista do presidente estadunidense.
Vale lembrar que a doutrina, imaginário e atitudes dos norte-americanos a respeito do subcontinente baseiam-se quase que “naturalmente” na premissa imperial de que as forças latino-americanas sozinhas – sem a sua ingerência e ordenamentos – são fracas a ponto de serem “insignificantes”, como escreveu o célebre historiador britânico Eric Hobsbawm. Não é à toa que Trump aponta o Brasil como o elo mais fraco das relações econômicas estabelecidas entre os países, como forma de peitar Lula da Silva: “eles precisam de nós, não o contrário”. Lula, no dia 30/01, replicou: “se ele taxar os produtos brasileiros, vai ter reciprocidade”. As animosidades, no etanto, perduram e tendem a intensificarem-se.
A reação da “segunda onda” progressista
Se antes, entre 1998, com a ascensão de Hugo Chávez, na Venezuela, até 2016, com a deposição de Dilma Rousseff, no Brasil através de um golpe brando, a América Latina experimentou modificações e avanços significativos em suas estruturas políticas, sociais e econômicas, os reveses logo se aglutinariam com a “ressaca conservadora” e o avanço da extrema direita.
A segunda onda de lideranças de esquerda e centro-esquerda enfrenta dificuldades ainda maiores que aqueles do raiar do milênio, sem contar os riscos internos e conflitos entre forças que deveriam se solidarizar entre si – vide as batalhas intestinas na Bolívia, entre o presidente Luís Arce e o ex-presidente Evo Morales, ou as farpas trocadas entre Maduro, da Venezuela, e Boric, presidente chileno.
Hoje, mais que a percepção e crítica ao neoimperialismo em sua formatação financeira – através de mecanismos de sanções e bloqueios econômicos como arma de guerra – a realidade aponta para futuras ingerências militares nada suaves. Um futuro, no mínimo, sombrio.
Entre o temor de represálias e a angústia paralisante do status quo, Gustavo Petro, presidente da Colômbia, e Claudia Sheinbaum, presidenta do México, foram os primeiros a “subir o tom” em suas declarações, ao lado de Xiomara Castro, em Honduras, e Lula, no Brasil, que se colocam de prontidão e vigília, orientando ministérios responsáveis e forças de segurança internas para darem aos imigrantes deportados o mínimo de dignidade que o “grande irmão do Norte” desconhece, propositalmente.
A resposta de Petro aos desmandos e abusos de Trump através de uma carta que já pode ser alçada a documento histórico, ecoou por toda a América Latina e, naquele dia, o presidente colombiano acionou diferentes “passados” – o colombiano e latino-americano – como fizeram, em outros momentos, figuras como Salvador Allende na iminência de um golpe de Estado.
Petro tentou retirar o “passado” latino-americano de seu próprio “exílio”, vinculando a força dos povos do continente ao território visto pela América do Norte como seu “quintal”: “Você nunca nos dominará. O guerreiro que cavalgava nossas terras, gritando por liberdade, chamado Bolívar, se opõe a isso”, escreveu o mandatário.
Aos que acreditam em interesses diplomático-comerciais genuínos e recíprocos do governo norte-americano para conosco, se depararam (alguns bem surpresos) com a frase lapidar do secretário de defesa de Trump, Peter Hegseth, no dia 12 de abril: “Vamos recuperar o nosso quintal”, em menção ao território latino-americano “ameaçado” pela “forças” chinesas. Uma frase carregada de permanências coloniais em pleno 2025, evidenciando o arcaísmo e a brutalidade simbólica daqueles que gerenciam a potência do Norte e a maneira como nos enxergam perante o restante da humanidade.
Quando Vladimir Safatle aponta para as “repetições históricas”, tão urgentes no atual estado de coisas, não está falando de acontecimentos que se repetem, igualmente e essencialmente iguais aos que já passaram. O que soaria ilógico. São “repetições” que funcionam como “afirmações de si através do pertencimento a um território”, o que tem implicações políticas diversas, pois é “a reprodução do tempo que produz o espaço”, explica.
Quando Gustavo Petro aciona diferentes passados em sua carta a Trump, lideranças e forças políticas de resistência à ingerência norte-americana no continente ao longo dos séculos, tenta romper com a paralisa, a melancolia e o medo gerados por Trump e seus asseclas, ativando a memória histórica de seus concidadãos latinos: “eu ergo uma bandeira, e como disse Gaitán: Ainda que fique só, ela continuará erguida com a dignidade latino-americana, que é a dignidade das Américas. Essa dignidade seu bisavô não conheceu, mas o meu sim, senhor presidente, imigrante nos EUA”.
Tanto o “Libertador” das guerras de independência, Simón Bolívar, como a liderança popular colombiana Jorge Eliécer Gaitán, assassinado em 1948, são figuras acionadas e recuperadas no documento que “retornam” ao presente vivido e permanecem como “espectros” de um passado que insiste em não passar – e que agora são posicionados “em ação” neste presente de urgências. A mesma coisa repete-se na Venezuela, com a figura de Bolívar e também de Chavéz, e em Cuba, com a imagem histórica de Fidel Castro – ambos os países, é bom que se diga, enredados em dilemas e obstáculos internos singulares. Mas a história, aqui, é a mesma.
Sobre a ilha caribenha bloqueada financeiramente há mais de 60 anos por sua Revolução, que hoje encontra-se entre a utopia e o cansaço, o presidente Díaz-Canel juntou-se ao coro das lideranças latino-americanas. Em Cuba, onde a penúria não se agrava mais em razão dos esforços hercúleos dos trabalhadores cubanos, Trump não apenas reinseriu a ilha na “lista de terroristas” novamente (retirada simbolicamente por Biden) como orientou que as forças de segurança anti-imigração iniciem a levada de detentos para a famosa Baía de Guantánamo, base/prisão norte-americana em território cubano, um espaço espectral de tortura, desaparecimento e exceção intocado pelos “direitos humanos ocidentais”. Mais um santuário de morte e soberba estadunidense em território latino.
A mesma coisa ocorre em território salvadorenho. Bukele, presidente de extrema-direita de El Salvador, estendeu as suas mãos ao governo Trump, abrindo celas e mais celas que irão recpcionar “imigrantes ilegais” em suas mega-prisões.
Acionar o passado para mudar o presente
Em suas reflexões, Safatle coloca o sujeito histórico como potência, quer dizer, aquele que tem a capacidade de “acionar” diferentes passados e agentes históricos com o intuito de transformar o presente, rompendo com a melancolia paralisante e com o sentimento de temor: “podemos dizer que o poder nos melancoliza e que é dessa forma que ele nos submete. Essa é sua verdadeira violência, muito mais que os mecanismos clássicos de coerção e dominação pela força, pois se trata aqui de violência de uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a paralisar sua capacidade de ação”.
Em meio ao início de um período tenebroso que ameaça a soberania e os povos latino-americanos, precisamos recuperar que a própria tradição hispano-americana e a origem do nome “América Latina” construiu-se em oposição aos Estados Unidos, como escreve o historiador argentino Carlos Altamirano: “concebida como expressão de identidade – “nós” – em um discurso que denunciava a expansão da república norte-americana e chamava à união defensiva contra “eles” – o anti-imperialismo era inerente ao conceito de América Latina”.
Não obstante, se do linguajar acadêmico-político amontoado de modismos e discussões intelectuais assépsias, a categoria “imperialismo” saiu de voga, seria bom recordarmos, como fez Eduardo Galeano, que as forças imperialistas não apenas permanecem vivas como atuantes e mais articuladas que antes. Em determinado momento, o uruguaio escreve que “a palavra imperialismo está fora de moda e já não existe no dicionário político dominante, mesmo que o imperialismo exista, se faça presente e mate”…
Por essa razão, é chegado o momento de lideranças políticas instituídas, movimentos sociais e populares, acadêmicos e intelectuais comprometidos honrarem a tradição de luta de seus milhares de mortos, daqueles que caíram em momentos de resistência e insurgência. Como cantou o rapper porto-riquenho Residente em “This is Not America”, “aqui estamos, sempre estamos/ América no es solo U.S.A., papá”.
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Luís Felipe Machado de Genaro é Historiador e professor. Mestre pela Universidade Federal do Paraná (Ufpr) e doutorando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
lmachadodegenaro@gmail.com
Referências:
ALTAMIRANO, Carlos. A invenção de nossa América, 2023.
GALEANO, Eduardo. El niño perdido en la intemperie, 1990.
HOBSBAWM, Eric. Viva La Revolución: a era das utopias na América Latina, 2017.
SAFATLE, Valdimir. Só mais um esforço, 2017.
SAFATLE, Vladimir. Livrar o passado de seu próprio exílio, 2022-2023.
Carta de Gustavo Petro a Trump: https://vermelho.org.br/2025/01/27/carta-aberta-de-gustavo-petro-presidencia-da-colombia-para-trump/
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