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As exportações invisíveis

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Por IELA em 31 de julho de 2008

As exportações invisíveis
Por Nildo Ouriques – prof. de Economia na UFSC e Presidente do IELA
 
31/07/2008 – Após 1994, o orgulho nacional, tão limitado por vezes às conquistas futebolísticas, foi reforçado pelo insistente registro dos economistas pelos superávits comerciais. Já é impossível ocultar que, a partir do chamado Plano Real, um novo pacto de classe governa os destinos da política econômica com efeitos perversos para a nação: capital produtivo, financeiro, agrário – nacional e internacional – aliado a parte da classe trabalhadora que especula com os títulos da dívida pública. Desde então, não somente o superávit comercial foi reforçado, mas também sucessivos e inéditos superávits fiscais são exibidos como símbolos da saúde financeira da república. Mesmo os economistas que mantinham acesa a chama da crítica, finalmente se renderam a oportunidade que a conjuntura mundial oferece para dar sua educada contribuição intelectual ao governo de Lula e disputar “internamente” a condução da política econômica contra os “neoliberais” que estão sendo derrotados pelos fatos. Nada de novo no procedimento: já se tornou um hábito nacional entre os intelectuais contribuir educadamente com o governo, qualquer que seja sua origem e opção. Os economistas – a partir da educação que obtém atualmente nas universidades – são mestres na arte de enxergar virtudes nos governos, assuntos no qual os comuns dos mortais se revelam absolutamente incapazes.  
 
Com o talento de reproduzir idéias falsas de maneira simples e compreensível aos olhos do povo – “a inflação é o pior inimigo do povo” ou “a estabilidade econômica é um imperativo acima de ideologias”, por exemplo – os economistas magnificaram o saldo positivo da balança comercial, revogando a desconfiança que a economia política clássica sempre manteve em relação ao paradoxo apontado por William Petty no século XVII. Petty é um irlandês que publicou em 1662 o Tratado dos Impostos e Contribuições, numa época em que escrever sobre temas como tributação na Inglaterra poderia levar a perda do pescoço, pois o país pertencia a um “mundo de ponta-cabeça”, como o historiador marxista Christopher Hill denominou aquele período. Desde então os ingleses jamais esqueceram que uma balança comercial positiva não era necessariamente uma demonstração de riqueza econômica, assim como deixaram para trás a idéia mercantilista que acumular metal era sinônimo de solidez.
 
Ao contrário, Petty, ao analisar a relação entre Inglaterra e Irlanda deixou claramente estabelecido que os exportadores acumulavam riqueza e produziam um paradoxo: na exata medida em que enriqueciam, também empobreciam o país. Esta lição permaneceu valiosa para Adam Smith, que alimentou desconfiança ainda mais fundamentada em relação aos exportadores, pois sabia da importância da solidez do mercado interno em relação as possibilidade eventuais do mercado externo. Além disso, Smith sabia que com a mesma força que os exportadores sabem ganhar dinheiro, eles também desconhecem o caminho de enriquecer seu país. Isso simplesmente não fazia – como atualmente não faz – parte de seus negócios! De certa forma, os exportadores estão enquadrados naquilo que Quesnay chamou a “república geral do comércio exterior”, cujos membros apenas recordam a existência da nação quando se trata de impor aos demais países legislação que lhes desfavoreçam. Guardadas as devidas precauções, Petty foi certeiro ao afirmar que “… uma grande parte dos patrimônios, reais e pessoais, é possuída, na Irlanda, por pessoas que lá não residem e que carregam para fora os lucros conseguidos, sem nenhum reembolso, de modo que o país, exportando mais do que importa, cresce, tornando-se, porém, cada vez mais pobre, na forma de um paradoxo.”
 
Hoje a realidade é teimosa, mesmo considerando o clima intelectual construído pelos conservadores que dizem estarmos no “melhor dos mundos possíveis”! Mais consistente que a fé dos economistas, o noticiário começa lentamente a oferecer demonstrações de que há problemas sérios no horizonte. Até mesmo os mais apologéticos já admitem que é impossível desconhecer o déficit em transações correntes que por segundo ano consecutivo acende as luzes vermelhas. Para o leigo, é importante indicar que este déficit que subitamente passou a ocupar espaço nos cadernos de economia dos jornais paulistas e cariocas, é composto de poucas variáveis, entre as quais estão todas as negociações de bens e serviços com outros países. Mas a mesma imprensa trata de minimizar os efeitos do fenômeno e reforça o orgulho nacional: na verdade, afirma, parte do problema corresponde a “internacionalização das companhias brasileiras” que estariam abrindo plantas produtivas no exterior em função do novo cenário mundial e da particularidade da conjuntura supostamente favorável aos países periféricos.
 
Mas nem mesmo este “enfoque positivo” foi capaz de ocultar o dado fundamental, pois se sabe que o expressivo crescimento das remessas de lucros e dividendos foi responsável pela produção do déficit de US$ 18.993 bilhões de dólares, que em igual período do ano passado foi de US$ 9.807 bilhões. Os economistas não desistem e analisam com tal viés que tudo parece menos grave ao indicar que a valorização do real impulsionou as importações contribuindo desta forma com a redução do superávit. Mesmo a sabedoria convencional não oculta que é a valorização do real – em princípio indesejável para os exportadores que preferem cambio desvalorizado – a responsável pela estabilidade monetária que agrada a haute finance e setores produtivos importantes. A valorização da moeda nacional é também, obviamente, um desejo da classe média – onde reside grande parte dos críticos da política econômica – que pode viajar tranqüilamente para Paris e fugir por algumas semanas do detestável clima político e social que consideram existente no Brasil. As viagens foram responsáveis por aproximadamente 3 bilhões de dólares na já combalida balança das transações correntes e sua tendência não é outra senão aumentar até o final do ano. Já os juros consumiram pouco mais de 3 bilhões.
 
O Banco Central indicou as razões pelas quais se produziu esta situação indesejável, nesta ordem: a maior lucratividade das empresas transnacionais instaladas no Brasil, os ganhos derivados da apreciação da taxa de câmbio, que turbinou o lucro das empresas no momento de conversão de reais em dólar e, finalmente, a crise internacional que motivou as empresas multinacionais a repatriar mais rapidamente os lucros e dividendos como mecanismo de proteção. Podemos então concluir que, em grande medida, é precisamente a política econômica considerada a melhor tanto pelo governo quanto pela oposição, a responsável pelo “tropeço” que ficou impossível ocultar.
 
As eventuais críticas da oposição ao manejo (gestão) da economia não a isenta de responsabilidade sobre os destinos do país, pois a grande característica do “debate” atual em matéria econômica é precisamente o consenso entre as forças partidárias dominantes de que o rumo é correto e que todos devem evitar as “aventuras” do passado.  
 
E o saldo comercial positivo? Segue exuberante e certamente terminará mais um ano reforçando o orgulho nacional, mas será também incapaz de evitar que as exportações invisíveis corroam, lenta e silenciosamente, a riqueza do país. Os economistas brasileiros que nutrem especial desprezo pelos pensadores latino-americanos jamais leram José Carlos Mariátegui, este notável intelectual peruano. Mas deveriam lê-lo com urgência. Em um pequeno artigo publicado em janeiro de 1926, Mariátegui analisou a “economia colonial” que dominava o Peru sinalizando aspectos importantes que valem para toda a América Latina:
“Esta dependência da economia peruana se deixa sentir em toda a vida da nação. Com um saldo favorável em seu comércio exterior, com uma circulação monetária solidamente garantida em ouro, o Peru, a causa desta dependência, não tem, por exemplo, a moeda que deveria ter. Apesar do superávit no comércio exterior, apesar das garantias da emissão fiduciária, a libra peruana se cotiza com 23 ou 24% de desconto. Por que? Nisso, como em tudo, aparece o caráter colonial de nossa economia. O saldo do comércio exterior, mesmo numa análise rápida, resulta fictício. As nações européias possuem “importações invisíveis” que equilibram sua balança comercial: remessas dos imigrantes, benefícios dos investimentos no estrangeiro, utilidades na indústria do turismo, etc. No Peru, como em todos os países de economia colonial, existem, em cambio, “exportações invisíveis”. Os lucros da mineração, do comércio, do transporte, etc., não ficam no Peru. Vão, em sua maior parte, na forma de dividendos, juros, etc., ao estrangeiro. Para recuperá-los, a economia peruana necessita pedir empréstimos.”      
 
Mariátegui propunha a peruanização do Peru que, segundo ele, somente poderia ser produto de uma Segunda Emancipação. Não conseguiu, obviamente. No Brasil, semelhante propósito (a brasileirização do Brasil) se tornou mais difícil, mas também mais necessário, pois o orgulho burguês com a situação econômica não pode ocultar a natureza colonial da economia, mesmo que a Embraer exporte aviões de maneira crescente nos últimos anos. No fundo, a maior parte do superávit comercial brasileiro não é conquistada com produtos de densidade tecnológica, mas a partir da exportação de produtos agrícolas e minerais. Contudo, mesmo este superávit, tão festejado nos últimos anos, não é capaz de competir com as exportações invisíveis que sabotam um projeto nacional e exibem claramente os caminhos por onde a riqueza aqui produzida é drenada para os países centrais.
 
Qual será a resposta das classes dominantes ao “tropeço” atual? Certamente manterá a tendência a elevação da taxa de juros consagrando a superexploração dos trabalhadores por meio de elevado desemprego, expulsão de milhões de brasileiros para fora do país e resistência nas negociações salariais nos setores mais organizados politicamente. De resto, tal medida manterá o poder de compra do real a custa de nova espiral de endividamento público com crescente presença de capitais estrangeiros em sua composição. Enfim, as elites potencializam uma nova “quebra do estado”, destinada a manter o controle sobre os postos estratégicos da administração pública, a elevação da natureza rentista da acumulação privada e a austeridade sobre os serviços essenciais a população. Não há dúvida de que a campanha contra os “elevados gastos do governo” com a máquina pública será ativada pela oposição com apoio dos meios de comunicação. Enfim, o segredo da engenharia econômica não poderia ser mais claro: austeridade em tudo que se refere aos serviços públicos (segurança, educação, ciência e tecnologia, transporte, cultura, saúde, etc.) e elevados gastos com o custo financeiro do endividamento programado.
 
Há alternativa ao acordo partidário tácito produzido pelo terrível consenso construído em torno do Plano Real em 1994? A aliança de classe consolidada então dá mostras de evidente esgotamento, ainda quando analisada pelo limitado enfoque do estrangulamento do balanço de pagamentos. Pode parecer pouco, mas a perda da timidez na crítica a um programa que reforça a economia exportadora, perpetua a superexploração dos trabalhadores e transfere riqueza para fora do país, é o primeiro passo importante para superar a difícil situação em que o país se encontra. Mas a crítica necessária não pode ser aquela que pretende abrir espaço para que o economista crítico de hoje se transforme no ministro tacanho de amanhã. Portanto, a crítica necessária retira a análise da economia da administração manualesca da política econômica e a devolve ao terreno fértil da economia política.

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