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Crítica à Razão Acadêmica – reflexão sobre a universidade contemporânea, uma resenha

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Por IELA em 21 de setembro de 2012

Resenha: Crítica à Razão Acadêmica – reflexão sobre a universidade contemporânea
Rampinelli, W. J. e Ouriques, N. (org.), Editora: Insular, Florianópolis, 2011. 223 p.
Por Lighia B. Horodynski Matsushigue*
21.09.2012 – No final de 2011 foi lançada pelos organizadores, os professores Waldir Rampinelli e Nildo Ouriques da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), uma coletânea sob o sugestivo título – Crítica à Razão Acadêmica, cuja leitura recomendo, em particular, aos estudantes, docentes e técnicos que não tiveram a chance de conhecerem uma outra universidade pública brasileira. O livro contém, além de artigos dos próprios organizadores, mais cinco contribuições, bastante diversificadas, além da reprodução de uma entrevista, concedida por Maurício Tragtenberg à Folha de São Paulo, em 3 de dezembro de 1978. Esta última, ao ser incluída, parece ser tomada pelos organizadores como uma espécie de fecho ao livro, por entenderem que o entrevistado foi capaz de perceber “precocemente o surgimento de uma séria ameaça sobre a vida universitária” , que, em grande parte, está corporificada na “figura do intelectual burocrata, do funcionário intelectual, que mais reproduz do que produz conhecimento próprio”, nas palavras de Tragtenberg .
No espaço relativamente generoso das cinco páginas dedicadas à Apresentação, os organizadores introduzem o leitor aos objetivos da coletânea, pois afirmam que :
Este livro pretende ser uma contribuição para que as possibilidades abertas pela crise global não se frustrem e que ajudem a um despertar no campus universitário, este mesmo despertar cujas vozes vindas das ruas já se podem ouvir.
Apesar da dificuldade em compartilhar o otimismo dos editores quanto às possibilidades abertas pela atual crise global e quanto ao alcance efetivo de uma publicação como a que ora se apresenta ao público, não há dúvida de que a leitura de vários dos textos, assim reunidos, pode contribuir para a análise de alguns dos muitos percalços atualmente postos entre a universidade e sua potencial função social. Por outro lado, permito-me discordar que o livro tenha alcançado o objetivo, também declarado na Apresentação, de “mostrar a função social da universidade pública na sociedade brasileira” . Os textos, à exceção de quatro deles, que, conforme detalharei, tratam de questões mais gerais, partem de situações relacionadas à UFSC, que, se passíveis de extensão às outras universidades em vários aspectos, conforme advogado pelos organizadores, não tocam essa importante discussão com o necessário grau de abrangência.
 Da lista das questões mais gerais, destaco, de saída, o artigo bem-humorado A Liberdade Sacrificada, de Fábio Lopes da Silva; quem não se perder no emaranhado da competente escrita deste lingüista espirituoso, sairá convencido de que nem sempre sabemos usufruir da liberdade, mesmo limitada, que, nas atuais condições de exercício da profissão, ainda nos é concedida. No mínimo, o texto é um convite à reflexão.
Outro texto da mesma lista é o do professor Frank Donoghue, da Universidade Estadual de Ohio; num artigo detalhado, de 20 páginas, nos traz informações, tanto históricas quanto atuais, sobre a Educação Superior nos Estados Unidos, cumprindo, assim, com destaque, o papel a ele atribuído pelos organizadores de contribuir para desfazer a adoração nutrida “por parte da consciência ingênua que orienta a atividade universitária na periferia capitalista latino-americana e, especialmente no Brasil” . Assim, em total contraste com nossa situação local, onde há várias décadas, mais da metade do ensino nesse nível é fornecido por instituições que visam o lucro, de forma aberta ou dissimulada,  o autor nos informa que “o último e mais novo tipo de instituição americana de ensino pós-médio é a universidade com fins lucrativos. Tendo como pioneira a Universidade de Phoenix, fundada em 1994, […]”. Afirma, ainda, que, mesmo atualmente, esse setor abrange não mais do que 10% das matrículas , embora se encontre em rápida expansão. 
Por outro lado, nos é recapitulado que várias das universidades particulares não lucrativas são muito antigas, como as de Harvard e Princeton, que datam de inícios do século XVII ou Cornell, e Johns Hopkins, com quase século e meio de existência, mas que não absorvem a maioria dos potenciais candidatos. Contudo, deve ser informação nova para a maioria de nós que o modelo das State Universities – o próprio autor leciona em uma delas – foi instituído também no terceiro quarto do século XIX e como universidade pública. Estas universidades, desde então, são beneficiárias de recursos de uma lei federal específica e sempre admitiram determinados segmentos da população, em particular, mulheres . No pós-segunda guerra e/ou pós-guerra da Coréia, um segmento importante a ser beneficiado foi o dos militares, então desmobilizados. A legislação (Lei dos G.I.) que propiciou essa inclusão foi responsável por uma rápida expansão das matrículas no ensino superior e, já em 1960, essas alcançaram 7,5 milhões nos EUA, número acima das atualmente verificadas em nosso país. Donoghue toma efetivamente essa Lei como responsável pela criação da classe média americana . Hoje, mais de um quarto de todas as 18 milhões de matrículas no ensino superior nos EUA estão nas State Universities e outro tanto, se não mais, nos Community Colleges, ou seja, Faculdades locais de educação geral de apenas dois anos de duração. Não obstante, Donoghue avalia que o ensino superior, nos EUA, “está em constante declínio” , o “sistema de impostos do país é severamente tendencioso em favor dos muito ricos”  e que, “se nada mudar […] o país simplesmente não será capaz de financiar educação para todos.”  Alguma semelhança com a situação por estas nossas paragens?
O artigo de Nildo Ouriques, professor de Economia, toca em questão de extrema relevância: a atual submissão do sistema de pós-graduação brasileiro aos ditames de uma agência, a Capes, que, arbitrariamente, escolheu o número de artigos, especialmente os publicados em revistas internacionais indexadas, como o melhor parâmetro para a medição da “produção científica”. Argumenta, com toda razão, que não existe tal tipo de revista, elas sempre são produzidas em determinado país, submetidas a, também determinados, interesses. Contudo, se é correto concordar com o autor que o resultado, afinal, é a alienação científica, mal disfarçada por justificativas que se valem da suposta meritocracia, quem trabalha nas áreas como Física – que é o meu caso – dificilmente há de concordar que toda a produção universitária deva ser mensurada pelo número de patentes. As patentes e outros atos de “inovação” são pertinentes a outro espaço, o da tecnologia e da técnica, e estas áreas são, mais corretamente, abrigadas em instituições de intermediação, muito bem representadas pela ação, outrora muito mais arrojada, do IPT, em São Paulo, da Emprapa e de outras mais.
Completa a lista dos textos de caráter geral o artigo de Ciro Correia, geólogo, professor e sindicalista que, entre outros vem se debruçando sobre o desvirtuamento introduzido pelas fundações, ditas de apoio, no seio das universidades brasileiras. Tais fundações são, nas palavras do autor, uma “causa privada a serviço da constituição de patrimônios também privados, às expensas da credibilidade das instituições públicas às quais se vinculam e dos recursos públicos que a elas deveriam se destinar.”  Profundamente envolvido com a temática, tendo ocupado a presidência da Adusp-S. Sind, de 2001 a 2003 e, posteriormente, a do Sindicato Nacional – ANDES-SN -, de 2008 a 2010, Ciro nos brinda com uma análise detalhada dos interesses que embasam esse modelo de uso privado de verbas, predominantemente públicas, dentro do espaço das universidades, tanto estaduais quanto federais, também públicas. Cita uma série de exemplos onde os desmandos se tornaram amplamente divulgados, como nos casos da USP, da UFSC, UFSM e da UnB. Alerta para as reiteradas iniciativas de dar suporte jurídico ao modelo, cujo passo mais recente é a lei 12.349/10; descreve ações da Justiça, que, contudo, encontraram limitações que as situam aquém do que seria necessário para coibir, de fato, a atuação dessas fundações, ditas de apoio. Seu artigo é um libelo a favor do gerenciamento público, democrático e transparente de nossas universidades.
Por fim, os três longos artigos – todos com da ordem de 30 páginas – que tentam ser a ponte entre o particular, ou seja, acontecimentos na UFSC e o geral, no caso os determinantes sócio-políticos, têm o mérito de levantar algumas questões cuja relevância extrapola o contexto local. Contudo, poderiam, ao procederem a uma confrontação e revisão de conteúdo, muitas vezes repetitivo, ter chegado mais próximo ao objetivo de, por meio da discussão entre os autores, colocar a público um trabalho mais concatenado, conciso e livre de algumas imprecisões. Um exemplo, banal, se encontra no trabalho Movimento Docente na UFSC, ao colocar, por duas vezes, os planos econômicos que assolaram o país na seguinte ordem – Real, Bresser, Collor, FHC – e, uma vez, numa mais próxima a uma seqüência histórica – Cruzado, Collor, Bresser e FHC.
Os professores, Rampinelli (com o texto A democracia na Universidade Brasileira: simulacro ou arremedo?), Célio Espíndola e Marli Auras (Movimento Docente na UFSC – os longos anos oitenta), ao lado da jornalista Elaine Tavares (A Universidade e os Técnicos-administrativos: uma tensão permanente) são todos ligados à Universidade Federal de Santa Catarina e nela se inspiram, mas fazem retrospectivas mais gerais, muito elucidativas para as novas gerações que vêm construindo seus vínculos com as universidades brasileiras. O primeiro desses textos, recapitula que “ o grande movimento pela democratização da universidade se deu no final da década de 1950 e início da de 1960.”  Efetivamente, para quem adentrou a vida acadêmica em 1959, como eu, na antiga FFCL/USP, na velha Maria Antônia, todas as Reformas de Base, inclusive a Universitária, estavam na esquina, era só contornar mais uma curva…Contudo, não foi bem isso que aconteceu. Tomando Vieira Pinto como guia, Rampinelli explicita seis funções que colocam a universidade à serviço das classes dominantes, exemplificando-as competentemente por fatos relacionados à UFSC. E, chega à triste conclusão de que, entre outros, “a universidade deseduca sua comunidade na escolha de seus dirigentes” .
Expressando vividamente sua reprovação pelo status quo na universidade, quando parte de seus servidores se submete à “servidão voluntária”, até em troca de pequenos privilégios, e docentes frequentemente ainda se ancoram na pretensa divisão entre trabalho intelectual e manual para defender seus pequenos poderes, Elaine descreve os seguidos esforços para construir um movimento conjunto de oposição a esse estado de coisas.  Usa sua intensa vivência como sindicalista nessa tarefa. Não obstante, acaba por concluir que o “processo iniciado pelo grupo mais avançado na UFSC, desde os anos 70 […] voltou ao ponto de partida” .
Os professores Espíndola e Auras, o primeiro economista e a segunda professora aposentada da área de Educação, fazem uma abrangente retrospectiva que, entre outros, liga o papel da UFSC, nos seus primórdios, ao acordo MEC-USAID, da década de 60 ; descrevem ações da ditadura militar e apresentam dados que indicam subserviência de dirigentes da universidade a seus desígnios . Em contrapartida, descrevem a ascensão do Movimento Docente e sua importância na discussão de questões educacionais e outras de interesse social. Entretanto, sinto falta de serem resgatados alguns envolvimentos importantes da própria APUFSC, por intermédio de vários de seus representantes, como, por exemplo, na construção de vários dos Coneds (Congressos Nacionais de Educação), que resultaram na elaboração do PNE da Sociedade Brasileira, em 1997, sendo citado apenas o PEE, de 1983. Mais sérias, nesse texto, por chamar a atenção de quem acompanha o sindicalismo mais de perto, são algumas afirmações equivocadas, como por exemplo, a de que A Conlutas vence a eleição para a diretoria do ANDES-SN ; desse modo, além de confundir uma organização, que se construiu como semente de uma Central Sindical e Popular, com o nosso sindicato, a ela filiado, mas não submisso, a frase parece querer indicar que esse deixou de se constituir, como historicamente o é, em entidade autônoma frente a governos, direção de instituições e partidos políticos.
Não obstante os deslizes acima indicados, a obra, como um todo, vale a pena de uma leitura atenta e criteriosa, pois é inegável que a universidade brasileira se encontra em um contexto em que, se não houver um contra-ponto, em curto prazo podem ser completamente revertidas conquistas devidas aos muitos homens de visão que a habitaram durante sua curtíssima existência. Eu, pessoalmente, apenas para citar alguns, ainda tive a grande chance de ser contemporânea de Florestan Fernandes, Antônio Cândido – sempre disposto a falar em eventos sindicais, Milton Santos e Mario Schenberg, este citado por Ouriques em seu texto, em feliz escolha, à página 105.
NOTAS
*professora (aposentada) do Instituto de Física da USP, ex-diretora da Adusp e ex-vice presidente regional do ANDES-SN
 

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