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Cultura popular e anti-imperialismo na América Latina: as armas sonoras contra o gigante do Norte

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Por Luís Felipe Machado de Genaro em 03 de outubro de 2025

Cultura popular e anti-imperialismo na América Latina: as armas sonoras contra o gigante do Norte

Residente – a nova canção latina – Foto: Libertinus CC

No dia 20 de maio, publiquei neste portal “Aqui não é a América: o neoimperialismo trumpista e a encruzilhada latino-americana”, uma análise breve a respeito das ações e discursos do atual governo Trump sobre aquilo que considera seu “quintal” – o continente latino-americano – e a forma vil e brutal com que vem agindo contra aqueles considerados “ilegais” em solo estadunidense: os latinos, trabalhadores braçais, agricultores, um precariado de bens e serviços que luta cotidianamente para construir uma vida menos indigna na terra da liberdade (para quem possui um Visa ou Mastercard).

A ideia de que aqui, nessas terras tropicais, governariam sujeitos fracos, “subversivos”, “terroristas”, dúbios e à chantagear (como ocorreu com o Brasil durante o julgamento de Bolsonaro) não encontra eco apenas no presente vivido, de urgências e absurdos, mas foi uma constante nos corredores da Casa Branca ao longo do último século – com graus variados, dependendo de qual senhor engravatado estava sentado à escrivaninha Resolute.

Apesar do mar de absurdos cotidianos e da barbárie neofascista em marcha, a realidade bateu à porta daqueles que se consideram os grandes donos do mundo. Se os Estados Unidos da América afundam abruptamente na decadência doentia que lhes é característica – com o intuito de levar consigo a frágil arquitetura civilizacional do Ocidente –, lideranças latino-americanas inseridas na fragilizada segunda onda progressista mostraram ao presidente norte-americano que o tabuleiro geopolítico global é diferente dos tempos de Guerra Fria.

Como se percebe pelos noticiários, a presidenta do México e o mandatário colombiano permanecem na linha de frente, encontrando estratégias domésticas que contrariem o discurso e as ações do bufão do Norte. Em entrevista recente à BBC News, Gustavo Petro foi categórico: “os filhos de Bolívar não são súditos. É isso que o senhor Trump não entendeu”. Enquanto isso, acerca dos dois países apontados como “terroristas”, Cuba e Venezuela, a retórica belicista permanece (ainda) como retórica – quando tudo pode acontecer, inclusive ações militares pelas latitudes marítimas.

No gigante tropical, a situação é outra: Trump percebe que enfrentar diretamente Lula da Silva pode ser mais desgastante do que imaginava. Tirando uma porção de entreguistas, lambe-botas e fiéis ignóbeis ao chorume bolsonarista, os três Poderes independentes não irão se curvar à América do Norte. E a América Latina reage na ONU, como bem evidenciaram os discursos proferidos, com especial atenção às palavras do chileno Gabriel Boric e de Gustavo Petro – comparados aos de Che Guevara e Fidel Castro ainda nos anos 1960.

A década citada, por sinal, é marcante no tocante ao enfrentamento contra o imperialismo norte-americano a partir da cultura popular de Nossa América. Reitero o que redigi em meu último texto neste portal (20/05 – “Aqui não é a América”). Em meio a este período tenebroso que se delineia à nossa frente, onde assistimos a tudo assustados e muitas vezes impotentes, precisamos recuperar os ensinamentos de nossa intelligentsia: a própria tradição hispano-americana e a origem do nome “América Latina” construíram-se em oposição aos Estados Unidos, como escreveu o historiador argentino Carlos Altamirano: “concebida como expressão de identidade – ‘nós’ – em um discurso que denunciava a expansão da república norte-americana e chamava à união defensiva contra ‘eles’ – o anti-imperialismo era inerente ao conceito de América Latina”.

O complexo cultural engajado de nossas terras, ricamente produzido e consumido na segunda metade do século passado – a literatura, as artes plásticas, o cinema, o teatro e a canção popular –, estreitamente vinculado ao universo político das esquerdas regionais, abraçou o anti-imperialismo de forma a combater, através das figurações artísticas, sonoras, simbólicas e poéticas, a brutalidade concreta das ações norte-americanas para conosco.

No que tange à canção popular, como um belo exemplo desse enfrentamento e combate de ideias a partir dos sons, o movimento da Nova Canção Latino-Americana, com suas correntes regionais de renovação sonora (Nova Trova Cubana, Novo Cancioneiro Argentino, Nova Canção Chilena, Canción Protesta Uruguaia, MPB etc.), fez com que artistas renomados e comprometidos com as causas populares e nacionais recuperassem a tradição integracionista de figuras históricas, como Simón Bolívar e José Martí, compondo e entoando músicas com forte teor anti-imperialista.

Compositores, músicos e intérpretes carregaram os germes desse imaginário combativo e consciente já na década de 1950, como o cancioneiro argentino Atahualpa Yupanqui, ao lançar a canção Basta Ya! (1963), em clara referência à ingerência norte-americana no subcontinente, às desigualdades sociais e aos conflitos de classe que sua presença articulada às forças dominantes regionais provocava: E quanto aos meus irmãos/ do México e do Panamá?/ Seus pais eram escravos, seus filhos não serão!/ Basta! Basta! Basta! Chega de ianques no comando!

O mesmo pode ser observado na canção Rompiendo Relaciones, do “poeta da Revolução”, o cubano Carlos Puebla, explicitando o rompimento das relações diplomáticas entre os EUA e Cuba, ocorrido em 1961, cantando entre versos recheados de metáforas e sátiras, apontando para esses “ratos infelizes” que tinham na sua “embaixada infame” o controle da ilha antes da Revolução não mais o teriam após 1959: eles não vão nos assustar/ com rompimento de relações/ porque nós temos canhões/ e nós temos o resto.

Mesmo antes de figuras artísticas históricas como a argentina Mercedes Sosa e o chileno Victor Jara despontarem entre os anos 1960 e 1970, este anti-imperialismo inerente de que nos fala Carlos Altamirano era compartilhado pelas “raízes” da Nova Canção – não como prática ou discurso xenófobo ou mesmo de isolamento completo daquilo que era produzido más allá de seus agentes ou setores culturais estadunidenses (e europeus).

Na Venezuela, a composição América Latina Obrera (1973), do músico comunista Ali Primera, também denuncia o imperialismo estadunidense, dado o tom de denúncia apontado para a figura do yankee, representante dos interesses imperialistas da burguesia e do patronato venezuelanos, explicitado em versos: o yankee teme/ que você se levante/ América Latina trabalhadora/ não sei por que você não faz isso? Interligados pela região amazônica, o grito yankees go home é ecoado pelo continente, e ele vem subindo o Amazonas/ o grito rebelde do carioca/ e vem se unir com seu irmão/ o trabalhador venezuelano, evocando os ideais unionistas presentes no repertório da Nova Canção, com tons radicalizados semelhantes à canção Basta Ya! de Yupanqui.

Outra bela canção de Primera, Con El Martillo Dando (1984), dá ritmo e tons sublimes à figura histórica de Bolívar, como forma de corporificar a emancipação e a integração continentais almejadas na composição. O patriotismo evocado pelo compositor recai na defesa daquilo que compreende serem as riquezas e a soberania da Venezuela frente ao imperialismo estadunidense: e hoje se unem defendendo/ O que Bolívar soube conquistar/ E hoje se unem defendendo/ O que Bolívar soube conquistar. Não por acaso, o presidente colombiano Gustavo Petro recupera a imagem do Libertador das campanhas de Independência.

Apesar desses ínfimos exemplos no tocante à nossa cultura musical engajada de um tempo não muito distante, a cultura latino-americana comprometida com a soberania e a autodeterminação de seus povos permanece caminhando, mesmo aos trancos e barrancos, entre negociações e resistências perante a maquinaria global de sucatas culturais efêmeras produzidas pelos tentáculos da indústria cultural e fonográfica. Exemplos contemporâneos como Residente, Bad Bunny, Soledad, Milo J, Emicida, Jorge Drexler, Criolo, etc. evidenciam a potência das novas gerações latinas, cada qual à sua maneira – mesmo que distantes do ato composicional radicalizado característico das décadas de 1960 e 1970.

Se hoje, frente aos ataques estadunidenses e às tentativas de ingerência em assuntos domésticos de países latino-americanos, não cessamos de demonstrar nosso desgosto frente à prepotência do Norte, não iremos cessar na luta contra o imperialismo. Como apontou o literato e intelectual uruguaio Ángel Rama, ainda em 1972: “Assim, a América Latina resultou existir na arte como unidade de sentido. As múltiplas estrelas separadas entre si confluíram oferecendo-se como uma harmônica, sábia, esplêndida constelação. É a América Latina que não cessa”.

Referências

ALTAMIRANO, Carlos. A invenção de Nossa América: Obsessões, Narrativas e Debates sobre a Identidade na América Latina. São Paulo, Ed. Edusp, 2023.
RAMA, Ángel. Incessante América Latina. Tradução de: Maíra Vasconcelos. Jornal GGN, 202?. Disponível em: https://jornalggn.com.br/cronica/incessante-america-latina-de-angel-rama/. Acesso em: 3 out. 2025.
PRIMERA, Ali. America Latina Obrera. In: Lo Primero de Ali Primera. Venezuela, Promus, 1973. Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=Xptj6Ihcnww]. Acesso em: 10/2025.
PRIMERA, Ali. Con El Martillo Dando. In: Entre La Rabia Y La Ternura. Venezuela, 1984. Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=XSPcGgvvBeg]. Acesso em: 10/2025.
PUEBLA, Carlos. Rompiendo Relaciones. Intérprete: Carlos Puebla y sus Tradicionales. In: Canciones Revolucionárias. Cuba. BASF, 1962. Disponível em: [https://open.spotify.com/intl-pt/album/5urEbwPCPXHMLLuMHe66cD]. Acesso em: 10/2025.
Youtube. “No somos súbditos, eso Trump no lo entiende”: Gustavo Petro en entrevista con la BBC News: https://www.youtube.com/watch?v=N5OmrzxRXbM
YUPANQUI, Atahualpa. Basta Ya!. Intérprete: Atahualpa Yupanqui. In: El Payador Perseguido. Argentina: RCA Victor, 1963. Disponível em: [https://open.spotify.com/intl-pt/track/4oRsnTAAfWP07ROBWbOLp3]. Acesso em: 10/2025.

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