Acordo de Livre Comércio União Europeia/Mercosul
Texto: IELA
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Danilo Carneiro nas Jornadas Bolivarianas
Danilo Carneiro esteve no IELA desde os primeiros dias naquele julho de 2004, quando o Instituto nasceu. Vinha religiosamente, todos os dias, para conversar com a estudantada e para estudar. Eram épicas as suas aulas livres, dadas na cozinha do Instituto, com a turma se espremendo para ouvi-lo falar. Formou gerações. Acompanhava os eventos, as lutas particulares de cada um de nós, as grandes batalhas pela cidade e pelo país. Era um revolucionário de verdade. E tanto que deu sua vida na batalha contra a ditadura. Garoto ainda pegou em armas e foi defender a liberdade na Guerrilha do Araguaia e em tantas outras ações revolucionárias. Foi preso e barbaramente torturado. Nunca se recuperou das sequelas. Até os últimos dias sua vida foi uma luta constante para se manter são e para ver reconhecido seus direitos. Afortunadamente, para nós, viveu muito. Foi até os 80 anos e sua contribuição certamente está marcada indelevelmente na vida de cada estudante que passou pelo IELA, assim como na nossa vida.
Estudava todos os dias até às 10 horas da noite, quando então deixava o IELA para ir para sua casa. Não sem antes deixar embaixo das nossas portas – minha, do Maicon ou do Nildo – algum texto que tinha lido e que, a seu ver, nos ajudaria a melhor analisar a conjuntura. Estava sempre inteirado dos grandes temas mundiais e foi um dos primeiros a ver que o que acontecia na Ucrânia iria dar muito fuzuê. Seu mantra era: temos de nos organizar. “Uma pessoa sozinha não pode fazer a luta, tem de estrar organizada num partido revolucionário”.
Na última vez que o vi, no seu apartamento, quando fomos nos despedir porque ele decidira ir para o Rio de Janeiro se tratar, lá estava ele repetindo seu velho bordão. Sentado com as pernas cruzadas uma sobre a outra, a maneira de um yogue (era como conseguia suportar a dor), dava suas últimas lições. “Tem que se organizar”, dizia, e sorria seu riso de menino travesso. O último abraço foi demorado, sabíamos que não haveria outro, nunca mais. Só aí ele deixou que viessem as lágrimas. Esse homem valente, que enfrentou as dores mais absurdas, sempre se recusara a emoções.
A última cena foi ele, no sofá, segurando o boneco do Saci Pererê que eu lhe dera, dizendo pra gente seguir firme, em frente, no rumo do comunismo. Nunca mais o veríamos depois daquele dezembro de 2022.
O texto a seguir é um relato do seu martírio pessoal, escrito para entregar ao judiciário brasileiro, “em nome da dignidade humana”. Nele, relata as brutais e horrendas torturas a que foi submetido pelos torturadores, todos gente do exército brasileiro, aos quais dá nome e sobrenome. Vinculado ao grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, Danilo deixa um legado de respeito, força e valentia. Um homem que manteve suas convicções até o fim.
Aqui, neste texto, ele se denuda. Ler é doloroso, mas necessário. Danilo Carneiro, presente!
(Elaine Tavares)
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RELATO DE DANILO CARNEIRO
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito
Em nome da ética e da dignidade humana se faz necessário este relato, que acompanha a presente ação, sem o que não é possível haver justiça.
A dignidade humana exige, diante do horror, o princípio da moralidade e o respeito escrupuloso à vida e à integridade pessoal. Não se pode ignorar que o nosso país é signatário da Convenção Internacional Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis (Decreto n 40, de 15.02.1948) e que torturar alguém é um ato frontalmente contrário ao espírito e à letra dessa convenção e afrontoso à dignidade internacional do país.
Continuamos até hoje, como no passado, no plano ético, a sofrer a discriminação, o desrespeito por parte das autoridades e dos governos, as injúrias à nossa memória, como vítimas que fomos. Tripudiam sobre a nossa dor e de nossos parentes e amigos, quando a minha anistia não é acompanhada pela reintegração ao trabalho e, ao mesmo tempo, são nomeados para altos cargos e funções torturadores e assassinos, além de serem condecorados, como aconteceu recentemente. Em contrapartida, do meu reclamo e requerimento solicitando a reintegração ao trabalho, o governo e as autoridades, não tomam conhecimento.
Este é o embrutecimento moral em que decaiu o país e isso exige algo mais do que simples registro dos fatos que hora faço, pois diante do horror, toda palavra é insuficiente, o que peço é justiça com dignidade.
Quero relatar aqui as brutais, horrendas e insidiosas torturas a que fui submetido:
A perseguição começou nos idos de 1964, quando da quartelada militar que violando a Constituição e o Estado de Direito vigente depôs através das armas o governo popular legitimamente eleito. Desde esse momento passei a defender o pronto restabelecimento da democracia e a volta ao Estado de Direito. A partir dessa atitude legítima e plenamente legal, comecei a sofrer perseguições que duraram mais de quinze anos, mas que até hoje ainda continua no plano ético a injuriar nossa memória. No mês de maio de 1964, fui ameaçado de expulsão da Universidade Federal de Juiz de Fora e, logo a seguir, tive cassado os estágios necessários à conclusão do meu curso. Só me entregaram o diploma cinco anos após ter concluído o curso, além de sofrer injúrias, ameaças e difamações a meu nome e pessoa.
Vi-me, após estes fatos, obrigado a refugiar-me na clandestinidade para garantir a minha própria segurança. Após passar dois anos clandestino no interior do país, dirigi-me para o Rio de Janeiro, onde algum tempo depois, fui processado pelo 1° Exército, sendo absolvido pela absoluta falta de provas.
As perseguições, entretanto, se sucediam e novamente fui cassado pelo decreto 477/69 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde cursava a faculdade de jornalismo.
Fui processado e perseguido pelas forças ilegais da repressão, quando batidas foram feitas pela equipe de busca e apreensão dos organismos militares e tive minha residência invadida sem nenhum mandato judicial. Vi-me, então, mais uma vez devido à perseguição implacável, obrigado a refugiar-me no campo no interior do Sul do Pará, onde passei a desenvolver a organização e conscientização dos camponeses.
Em abril de 1972, as forças de repressão militar, invadiram a região, havendo conflito, que durou até 1974, decorrendo daí várias mortes, num total de aproximadamente setenta opositores à ditadura militar.
Neste mês de abril deu-se a minha prisão. A ferocidade com que a repressão se abateu sobre nós e o horror estabelecido foi de causar indignação a qualquer ser humano. Houve violação de todas as normas da Convenção de Genebra e da Convenção Contra a Tortura, entre tantas outras. O terror do Estado sobre o cidadão materializou-se de forma absoluta.
No momento da minha prisão, fui retido à força, na localidade de São Domingos das Latas, próximo à Trans-Amazônica. Ato contínuo fui espancado, escorraçado, repudiado e ferido com golpes de baioneta e coronhadas de fuzil. Em decorrência tive várias perfurações de baioneta pelo corpo, traumatismo na cabeça, esmagamento facial e renal, além de várias escoriações. A seguir fui algemado, amarrado a uma corda presa a uma viatura e arrastado pela Trans-Amazônica. Tal brutalidade resultou em escalpelamento de toda a parte frontal do corpo, ficando em carne viva, tórax e membros. Quando a viatura onde estava sendo transportado, atolava, colocavam minha cabeça entre a vala e a roda da viatura e incontinente colocavam a mesma em movimento a fim de retirá-la do atoleiro. Este ato feroz provocou-me escalpelamento na cabeça e orelha. Após tal atrocidade fui colocado algemado de mãos e pés, em um círculo feito por soldados fortemente armados que me faziam ameaças de fuzilamento. O sol escaldante da Amazônia e o esgotamento físico em que me encontrava provocava-me uma sede desesperadora e, quando pedia água, espancaram-me a pontapés e a seguir colocavam à minha frente um galão de água, a fim de instigar ainda mais minha sede. Depois de passar várias horas ao sol, e com o corpo em chagas comecei a ter desmaios.
Voltando a mim, clamava, devido à sede insuportável, por água. Aí, então, penduraram-me de cabeça pra baixo em uma viatura e enfiaram o gargalo do galão da minha boca provocando afogamento e levando-me a desmaiar. Após recobrar os sentidos fui transportado até as margens do Rio Araguaia, onde fui colocado em um barco, e durante a travessia afogaram-me no rio, até desmaiar.
Logo que recobrei os sentidos, transportaram-me até o quartel do Tiro de Guerra de Marabá, onde fui pendurado por uma corda na soleira da porta, ao tempo. Devido ao estiramento provocado pelo peso do corpo, e após horas nessa posição horrível e dolorosa, desmaiei novamente. No período em que permaneci nesta posição e com ferimentos graves, o corpo em chagas, com os mosquitos, que na região são um inferno, a devorar-me pelo corpo, sem que pudesse defender-me dos mesmos, tornou-se insuportável tal situação, levando-me a mais um desmaio.
Quando acordei encontrava-me em uma sala perto de um galpão, dentro do prédio. Faminto e com sede horrível, suplicava por água e comida e, ao invés de ser-me dada água e alimento, como determina a Convenção de Genebra, assinada pelo governo do meu país (todo prisioneiro tem direito a tratamento digno e humano) começaram a torturar-me, levando-me a sucessivos e novos desmaios.
Tal tortura consistia na aplicação de choques elétricos nos pontos mais sensíveis do corpo, além de espancamentos com cassetetes e pontapés de coturno. Os choques foram aplicados nos testículos, pênis, nariz, em cima dos ferimentos de baionetas e no ânus. A dor provocada pelos choques eram horrendas, depois de sucessivas aplicações não resistindo, desmaiei. Quando recobrei os sentidos, a dor e a sede eram maiores, pois os choques elétricos aplicados insistentemente provocam desidratação e a sede humana em escala assustadora.
Haviam se passado até então mais de quatro dias, em que todos os tipos de ameaças eram feitos. Após este tempo, onde constantemente suplicava por água e comida, foi me dado uma ração fria, mas no momento em que, com muita dificuldade, preparava-me para comê-la fui surpreendido com um pontapé dado em minhas mãos algemadas, por um capitão que estava na minha frente. Tal atitude, além de provocar-me mais ferimentos nas mãos, jogou no chão toda a ração, me fazendo permanecer sem alimento. Vociferava o Capitão que “terroristas como vocês deveriam morrer comendo formiga”. Os atos de terror e tortura continuaram por várias vezes, seguidas de desmaios devido ao meu precário estado físico. As feridas por todo o corpo, misturadas à lama, começaram a provocar um estado corporal de decomposição e, mesmo assim, não tive qualquer assistência. Em contrapartida, aumentavam as torturas.
No quinto dia, fui levado para uma aeronave militar sob ameaça de ser jogado para fora do voo. O avião decolou, não tendo eu a mínima ideia de para onde estávamos sendo levados, ou se tais ameaças se concretizaram. Como as ameaças e o terror continuavam, comecei a ficar em dúvida do que poderia vir a ocorrer. Na aeronave haviam soldados fortemente armados, em roupa de campanha, mas também haviam três pessoas, que pelo aspecto pareciam prisioneiras como eu (tratavam-se de Riocco Kaiano, Eduardo Monteiro Teixeira e um barqueiro do rio Araguaia, como pude identificar mais tarde). Daquele momento em diante, cheguei a conclusão que as ameaças se concretizariam e que seríamos todos jogados da aeronave, pois esse tipo de crueldade já havia sido praticado com outros companheiros que foram, após inúmeras torturas, jogados em alto-mar pelo Parasar. Contudo, as dores insuportáveis eram maiores do que qualquer temor que poderia vir a sentir.
Durante algum tempo, tentei manter-me calmo, porém o sofrimento e as dores eram ainda maiores. No esforço interior de superá-las comecei a ficar zonzo e logo desfaleci. Ao acordar deste torpor, a aeronave estava aterrissando, pude sentir o impacto, quando bateu no solo. O torpor continuava e as dores horríveis também.
A seguir fui agarrado pelos braços e foi colocado sobre a minha cabeça um espesso capuz de lona, tirando-me a respiração e a seguir gritos estridentes e brutais foram dirigidos a nós para que saíssemos do interior da aeronave. Após ser agarrado pela mão por um militar, fui levado para a porta onde subitamente fui empurrado para fora, escada abaixo, provocando outros ferimentos. Seguidamente fomos todos jogados num veículo.
Passado algum tempo de viagem fomos retirados e conduzidos até um prédio e lá foram removidos os capuzes. Aos gritos estridentes e brutais, com pontapés e pancadas de cassetetes, puseram-me nu e, desta forma, fui lançado em uma solitária com aproximadamente 3m2, de piso de ladrilho, sem janela. A seguir, pela porta da cela, foi jogada uma lata de água que cobriu todo o piso. Exigiram que me mantivesse de pé, por todo o tempo, porém devido ao meu estado de fraqueza e ferimentos por todo o corpo, prostrei-me e tive que ficar deitado naquele chão todo molhado.
Pela conversa dos soldados que ficavam de vigília, pude verificar que se tratava do quartel do 22. Batalhão de Infantaria de Selva, em Belém, Pará.
Nesta masmorra onde me enfurnaram, reduzindo-me à condição de molambo humano, comecei a sofrer todo o tipo abominável de tortura. Nas altas madrugadas, por dias sucessivos, fui chicoteado com cabos elétricos, cintos militares e cassetetes, pelos oficiais que vinham das incursões nas selvas. Além dos espancamentos era submetido a ameaças de fuzilamento sumário, às vezes obrigavam-me a lamber o chão da cela, onde fazia as minhas necessidades fisiológicas. Algemado nos pés e mãos era-me impossível sequer reagir. Foi neste período que, pela primeira vez, após dez dias, recebi minha primeira alimentação, que consistia em pirão de água com feijão ralo e batata. Não podendo mastigar os alimentos devido às perfurações nas bochechas e língua provocadas pelos choques elétricos, além de seis dentes quebrados e fraturas da face e do maxilar, fui obrigado a fazer uma papa e com os dedos empurrar a alimentação goela abaixo, pois seria o único meio de me alimentar para tentar sobreviver.
Neste período sombrio, começaram a aparecer na cela, oficiais da Marinha, Aeronáutica, DOI-CODI e Polícia Federal, que retiravam-me arrastado, pois não conseguia permanecer de pé. Levaram-me para uma mata contígua ao quartel, localizado nos fundos, onde sofri bárbaras torturas que consistiam em amarrar-me pés e mãos, ora em árvores, ora em estacas, com as pernas abertas, começando um espancamento, principalmente nos testículos, para que desse informações dos companheiros.
Isto era uma atrocidade inimaginável para qualquer humano. Tal barbaridade acabava por provocar-me sucessivos desmaios, momento único que levavam os torturadores a para com as atrocidades, pois com a minha morte não poderiam obter as informações.
Na condição de cidadão digno e honrado cujo ideal e compromisso era com o povo e com os companheiros, fui obrigado a escolher diante desta tragédia entre a morte e a loucura. Pois não poderia informar coisas de que não sabia e, por outro lado, não poderia permitir dar informações para que pudessem continuar a matar pessoas que não praticavam qualquer violação à lei e à pessoa humana. Esses dias de horror e insanidade prosseguiram em sucessivas formas de tortura. Os guardas destas celas, que eram recrutas, olhavam-me com espanto e estarrecidos revelavam uma fisionomia assustadora. Quando vinham colocar a comida na cela, tapavam o nariz, pois o mau cheiro que exalava de meu corpo, devido ao estado de decomposição das feridas, era insuportável.
Numa manhã, fui levado carregado ao salão nobre do 22. Batalhão, onde existia uma mesa imensa. Nela estavam sentados mais de vinte oficiais Generais das três armas, Marinha, Aeronáutica e Exército. Puseram-me em uma das cabeceiras e começou um longo interrogatório. Ao meu lado estava um oficial da Aeronáutica, que com um cigarro aceso, queimava-me o corpo, ora no rosto, ora nas costas, porém tal atitude foi repreendida por um General, pois aquele momento não se prestava a tal atitude, Depois de passarem sucessivos slides, filmes e um grande acervo de fotografias para que pudesse identificar pessoas, suspenderam a sessão, pois não consegui fazer nenhuma identificação, a não ser de muitos que já haviam sido mortos. Estas fotos eram de difícil reconhecimento devido ao fato dos corpos estarem bastante mutilados.
Após a retirada dos oficiais Generais, o oficial da Aeronáutica começou a aplicar-me choques elétricos, mas como os meus gritos eram ouvidos até no lado de fora, colocou-me uma toalha na boca, para que não gritasse. Tal atitude não durou muito tempo devido ao meu precário estado, pois poderia vir a morrer a qualquer momento. Levaram-me para a cela e, pela manhã do dia seguinte, fui acordado pelos guardas, era a hora do café. Pude perceber nos seus semblantes um estado de compaixão, talvez devido ao fato de serem muito jovens. Aproveitando-me desta situação solicitei ao sargento, implorando, que trouxesse um chumaço de algodão com iodo. Felizmente este sargento atendeu ao meu pedido e, de forma dissimulada, entregou-me o iodo.
Comecei lentamente e com pequenos pedaços a remover, primeiramente a lama e, em seguida, o pus. Assim consegui fazer uma primeira assepsia. Nos locais perfurados com baioneta, que às vezes sangravam um pouco, coloquei pequenos chumaços de algodão para estancar o sangue. No dia seguinte, pude verificar que a intensidade do odor havia diminuído um pouco e o processo inflamatório, também.
Num período de três dias, cessaram as torturas, o que me deixou apreensivo. Na manhã do outro dia, após o café, chegou à porta da cela um Coronel, que passou a observar-me e depois perguntou qual o motivo da minha prisão. Mesmo achando estranho tal pergunta, respondi-lhe que havia sido preso em São Domingos das Latas. Nada mais perguntou. Com o lenço permanentemente no nariz e olhar estranho, retirou-se. Minutos depois chegava à minha cela uma equipe de soldados comandados por um sargento, que abriu a cela colocando-me numa maca. Começaram a lavar e escovar a cela, lançando creolina no chão e a secaram. Colocaram uma cama de campanha e a seguir levaram-me para um banheiro. Aí começaram, com um chumaço de gaze a remover toda a lama e pus das feridas. Ao voltar à cela, fui colocado na cama de campanha e, a seguir, o sargento do corpo de saúde aplicou-me soro na veia. Senti uma sensação muito estranha e, aos poucos, adormeci.
Despertei com um barulho, e gritos. O soro foi atirado ao chão e a agulha com tal violência, provocando um sangramento. Fui atirado ao chão da cela. Retirada minha roupa e ficando nu, algemaram-me. Retiraram a cama de campanha e jogaram água no chão da cela novamente, ficando eu no chão molhado. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão que o comandante do quartel havia se afastado naquele final de semana, assumindo seu vice, que vendo as condições em que me encontrava, resolveu cumprir a lei. Quando houve a substituição do comando na segunda feira, tudo voltou à situação anterior. Logo a seguir fui transferido ao quartel da Marinha, às margens do Rio Mucura, em Belém, onde as torturas começaram. Ao lado da cela onde fui colocado, havia outra, e nela havia uma prisioneira que era Riocco Kaiano. O mesmo oficial da marinha que já havia me torturado outras vezes, retirou-me da cela levando-me para um prédio bem ao lado desta e continuamente me torturava, aplicando choques elétricos, esmagamento dos dedos das mãos com um alicate, além de inúmeras ameaças de fuzilamento. Os gritos e gemidos que eu dava ajudavam a provocar horror à companheira presa na cela contígua.
Tudo isso era feito de forma planejada para que o sofrimento de um prisioneiro pudesse causar medo ao outro, na medida em que as torturas eram revezadas. Infelizmente não pude identificar este oficial.
Depois de permanecer alguns dias nesta solitária às margens do Rio Mucura, uma manhã fui surpreendido na cela com gritos brutais e pontapés dados por agentes da Polícia Federal, que colocaram-me um capuz e jogaram-me numa caminhonete. Somente foi retirado o capuz na escada de uma aeronave, para onde subi algemado com um agente da polícia Federal sempre ao meu lado, que me espancava com cotoveladas no rosto, acusando-me de ter matado um oficial e um soldado na região da Araguaia, chamada Metade e Bacaba, o que era mentira.
Durante o período da viagem continuei a ser espancado pelo agente, o que provocou intenso sangramento na boca e nariz, pois tinha várias fraturas no rosto. Impedido durante a viagem de ir ao banheiro fui obrigado a urinar na roupa e poltrona o que provocou a ira do agente federal, passando o mesmo a esbofetear-me continuamente. Tal brutalidade cessou apenas quando a aeronave pousou e logo a seguir foi colocado o capuz. Ato contínuo, fui empurrado escada abaixo da aeronave.
Fui jogado em um veículo juntamente com outros prisioneiros que não pude identificar. Fomos todos levados para um local que não sabia onde ficava, lá chegando foram arrancadas nossas roupas e, a pontapés e pauladas de cassetetes, lançados em uma solitária. Momentos depois, ouvi batidas na parte inferior da cela, respondi às batidas e logo a seguir ouvi a voz de um prisioneiro que passou as informações de onde estava. Dizia ele: “Você está no PIC – Polícia de Investigação Criminal (Brasília, setor militar)”. Perguntei-lhe onde estava a barra e ele respondeu estar muito “pesada” e que vários prisioneiros haviam sido torturados até à morte, entre eles Honestino Guimarães, antigo dirigente da UNE. Deu mais algumas informações sobre a posição física do presídio, os oficiais comandantes do mesmo e citou vários torturadores. A seguir passei informações dando meu nome e tudo o mais que pudesse ser útil para o futuro, pois pela primeira vez, após mais de vinte dias, falava com alguém. Algum tempo depois foi servida a comida, mas não pude comê-lo devido aos ferimentos.
Este prisioneiro que passava as primeiras informações tratava-se de Paulo Fonteles, que se encontrava detido junto com a sua mulher Hecilda Mary Veiga Fonteles. Esta acabara de dar à luz a uma criança, dentro das dependências militares. paulo Fonteles, mais tarde foi assassinado na condição de deputado do Estado do Pará.
Comecei, após receber informações sobre a situação, a preparar-me ideologicamente, pois devido às barbáries que estavam sendo cometidas naqueles dias tenebrosos, comecei a perceber que o pior estava por vir.
Fiz uma profunda reflexão sobre toda a minha vida e cheguei à conclusão de que não havia outra saída a não ser a morte e preparei-me da melhor forma possível. Revia os princípios básicos do comportamento diante dos inimigos do povo: humildade sem submissão, não aceitar provocação, o absoluto não existe. Sairia desta prisão, nem que fosse morto, mas jamais daria qualquer informação a assassinos inescrupulosos, pois nenhum crime havia cometido. Devido às dores e à tensão insuportável, não consegui dormir, e o único elo possível era com o meu próprio interior. Foram horas decisivas e horríveis, sabia que as torturas haveriam de recomeçar a qualquer momento, porém jamais imaginei que pudessem atingir as atrocidades a que chegaram.
Pela manhã, bem cedo, pontapés na porta da cela tiraram-me de minha reflexão, e a seguir entraram, algemaram-me e encapuzaram-me, levando-me arrastado pelos corredores do presídio, pois não tinha condições de locomover-me. jogado escada abaixo, fui ter a uma sala, onde ouvi diversas vozes e, repentinamente, uma vez que se dirigiu a mim, dizendo: “Até agora você conversou com quem não sabe ‘falar’ mas novamente fique sabendo que temos todo o tempo do mundo, e que aqui temos gente que sabe ‘dialogar’”. Repentinamente fui chutado e empurrado, caindo. Ao cair, soltou um pouco o capuz e pude reconhecer o assassino e torturador Sérgio Paranhos Fleury, que havia sido recrutado pelo regime militar no bando denominado Esquadrão da Morte, que a pretexto de eliminar criminosos comuns, chegou a assassinar centenas de brasileiros, muitos dos quais não registravam qualquer tipo de antecedente criminal.
Encontrava-me eu diante da besta fera, esse homem sem escrúpulos e sanguinário, que acabaria mais tarde morrendo em circunstâncias suspeitas e nunca esclarecidas, devido ao fato de saber demais, o que poderia comprometer o regime militar vigente. Na sua insanidade, começava de uma forma cínica a dizer que dispunha de todo o tempo possível, um dia, uma semana, meses ou anos, e na medida mesmo em que aumentava o tempo, aumentava também o tom da voz, até explodir em gritos histéricos e ameaçadores, como se fosse o dono do mundo. Começou a ironizar minha situação e de forma provocativa tentava desmoralizar-me e agredir-me. Dizia ele que a melhor forma de me fazer ‘dialogar’ era provocar o rompimento entre a minha psique e a minha estrutura física, colocando-me em conflito com as dores que iria começar a sentir a partir daquele momento, e que quando este processo se desse eu provavelmente não mais existiria, ou estaria num manicômio. Tudo isso era dito num tom zombeteiro e cínico. Ao mesmo tempo, descrevia os processo de tortura à sua disposição. Ato contínuo, comecei a ser espancado a pontapés por vários torturadores ao mesmo tempo. A seguir bateram-me com cassetete na coluna e nas nádegas, ameaçando fazer empalamento, que consiste em introduzir um cassetete pelo ânus a varar o intestino e atingir a garganta. Depois de estar zonzo, fui despido do calção que usava e foram-me aplicando choques em todas as partes do corpo até que comecei a ter hemorragia na boca, o que provocava-me sufocamento pelo excesso de sangue. A partir daí comecei a desmaiar repetidamente, e quando recobrar os sentidos recomeçava tudo de novo. Aplicavam-me sucessivos espancamentos com uma raquete cheia de alfinetes que perfuravam a pele e logo a seguir, com um spray, jogavam produtos químicos que provocavam queimadura insuportável.
Aplicaram-me injeção de éter na sola dos pés, deixando-me em estado exasperador de sofrimento e dor. Logo a seguir penduraram-me no “pau-de-arara” com aplicações sucessivas de choques elétricos, em todas as partes do corpo, principalmente as mais sensíveis: nariz, olhos, pênis, testículos, ânus, pontas dos pés e dedos, além de aplicação em cima dos ferimentos expostos. Para aumentar a intensidade dos choques, molhavam-me o corpo constantemente, momento em que aplicavam também o afogamento por meio de uma toalha molhada na boca que consiste em prender a respiração repentinamente e lançar um jato de água nas narinas. Após ter perdido a noção do tempo, a visão e ter desmaiado sucessivas vezes, fui levado desacordado para a cela só recobrando os sentidos a altas horas da noite. Devido aos gemidos intensos e taquicardia, soquei a parede da cela e pedi ao companheiro Paulo Fonteles, que conversasse comigo, embora quase não tivesse voz e pronúncia, dificultadas pelo excesso de choques e espancamentos na cabeça. Ele dava-me força para prosseguir vivo, pedi-lhe algum medicamento para aliviar as dores insuportáveis, mas nada tendo, solicitei que se algum dia saísse dali denunciasse ao povo brasileiro o que se passava nas masmorras do regime militar e também que avisasse a minha família em caso de morte. Passei-lhe todas as informações possíveis e também a um companheiro de Icó, que se encontrava na solitária do outro lado. Disse-lhe que provavelmente morreria nas próximas sessões de tortura e que ele passasse as informações a todos os outros companheiros, pois já se haviam passado mais de um mês que eu vinha sendo torturado.
A partir desse isolamento tão único e cruel não mais consegui dormir. Para poder comer, os companheiros da cela ao lado deixaram de tomar o café da manhã, deixando-o para mim, pois era o único alimento possível de ingerir. Fazia uma papa de leite e pão e empurrava com o dedo goela abaixo.
Começaram também intensas torturas psicológicas, que consistiam em retirar-me da cela como se fosse começar outra sessão de tortura e nada acontecia. Este estratagema foi aplicado várias vezes, por dias e noites, a fim de que eu perdesse o controle e desarmasse as minhas defesas.
Ora torturavam-me, ora não, até que perdia o controle, não sabendo o momento em que a tortura se daria. isto era feito dia e noite, a fim de não permitir que eu tivesse o controle da situação. Outras vezes, retiravam-me da cela e acenavam com a possibilidade de tratamento médico. Colocavam-me numa sala confortável, ofereciam-me café, cigarro e os próprios torturadores, travestidos de “pessoas íntegras” faziam críticas sobre maus tratos e torturas, dizendo-se contrários a todas essas barbáries. Colocavam um grande espelho na minha frente para que eu pudesse ver o estado precário e horrível em que me encontrava, e logo a seguir acenavam com um bom tratamento hospitalar dizendo do conforto que teria e da possibilidade de recuperação. Tudo isso dependeria exclusivamente de mim, desde que estivesse disposto a “colaborar”. Diziam que meus familiares não sofreriam coação, nem seriam incomodados, mas caso não concordasse, não poderiam fazer nada, e não se responsabilizariam pelo que pudesse acontecer comigo e com a minha família. Nesses momentos apresentavam sua face inescrupulosa e cínica. Mandavam chamar médicos, bandidos ao serviço do regime militar, para examinarem-me, que apontavam o estado precário em que me encontrava. Diziam que as fraturas que eu tinha na face só eram possíveis de serem tratadas em hospital, caso contrário ficaria alijado e com problemas para toda a vida. Estes fatos se sucederam inúmeras vezes. Consistia numa rotina tática de mostrar-me como poderia sair daquele inferno e sofrimento, provocando uma contradição entre minhas convicções e o sofrimento desesperador, para romper minhas defesas. Durante todo o tempo em que permaneci sob tortura e pridsão este método foi aplicado. Chegaram-me a oferecer trabalhos com ganhos altíssimos e uma “boa vida” para que denunciasse companheiros e amigos como se eu fosse vendedor de dignidade ao serviço de uma ética de lucro. Nunca poderiam esses mercenários, ao serviço do capital e do lucro, compreender uma ética comprometida com o povo e o ser humano. Para estes excrementos da humanidade, que funcionam através de 30 dinheiros, seria impossível a compreensão de uma ética revolucionária.
Os dias de horror iam passando na única esperança de que a morte chegasse para mim o mais rápido possível, pois esse era o único cenário que se deslumbrava. Contudo, a vontade de permanecer vivo, também estava presente, surgindo daí uma contradição enlouquecedora. O objetivo principal da tortura é provocar um estrangulamento entre a dor física insuportável, que entra em contradição com o desejo de viver e a necessidade psíquica de transpor o sofrimento. A tortura psicológica provoca o mesmo sentimento em sentido contrário, o que coloca o torturado em um beco sem saída, qualquer que seja sua posição. Em caso de rendição, estará liquidado de forma inexorável. Se sobreviver fisicamente morre definitivamente moral e eticamente. Esse dilema o leva à loucura ou à morte física, como sendo a única saída.
As torturas se sucediam durante dias e noites e eu cada vez mais definhava… Tive meu peso reduzido a aproximadamente 38 kg, era um trapo humano. Após uma sessão de tortura em que desmaiei mais de oito vezes, todas praticadas pela equipe de Fleury, fui removido para uma solitária, toda escura, onde permaneci mais de umna semana.
Nesta referida sessão, onde as juntas e extremidades ósseas estavam inchadas devido aos choques intensos, fazendo meu corpo levantar do chão e cair com grande intensidade, arrebatando no solo duro, provocando-me dores e escoriações insuportáveis. Quando me encontravam completamente desidratado aplicavam o que eles chamavam de soro da verdade, que consistia em obrigar-me a tomar um copo de água completamente salgada, a fim de provocar sede e aumentar a intensidade da carga elétrica.
Em outra dessas sessões, após recobrar os sentidos, tive minha cabeça arrebentada pelas bengaladas dadas pelo General Bandeira, que interpelando Fleury, perguntava se já havia fornecido informações. Neste momento, Fleury lhe respondeu: “Este bandido não abriu a boca”. O General Bandeira retrucou: “Quero informações, e rápidas, nem que tenha de trucidá-lo”. Este foi o diálogo que ouvi entre o General Bandeira e Fleury. Após este momento, desencadeou-se várias sessões de tortura, com tal ferocidade que levou-me à loucura. Ao entardecer do dia seguinte fui retirado da cela, encapuzado e levado a várias dependências do centro de tortura de Brasília.
Inicialmente fui levado para um local, onde se formou um corredor polonês, que consiste em uma fileira de soldados, armados de cassetetes, e me introduziram no meio. Começaram um espancamento selvagem, com pontapés, cassetadas, joelhadas, pisoteamento e quando não pude mais ficar em pé, arrastaram-me, enquanto os demais pisoteavam e espancavam.
A seguir, puseram-me em cima do capô de uma caminhonete, saindo em disparada. Freavam bruscamente, fazendo com que o meu corpo fosse lançado ao solo, esborrachando. Senti que seria o meu fim, pois poderia a qualquer momento ser atropelado pelo veículo. Depois de sucessivas aplicações deste método, puseram-me nu, levaram-me até à beira do lago e vendaram-me os olhos com um pano fino, pois podia continuar a viver. Diziam-me que seria a última vez que veria a luz, seria o meu fim, que me seria dado a última chance de “colaborar”. Não tive dúvida de que seria, pois estava na minha mente o diálogo entre o General Bandeira e Fleury. Inicialmente senti-me trêmulo, mas a seguir, senti um alívio generalizado, pois não sofreria mais. Era o momento que já estava ansiando há algum tempo, pois não aguentava mais sofrimento.
Como eu nada respondi, prosseguiram a operação. Afastaram-se, colocaram uns quatro soldados em posição, a uns oito metros, ergueram as armas,que eram metralhadoras, e a seguir vi um enorme clarão saindo das armas. Um frio fino correu-me a espinha e cheguei mesmo a sentir os projéteis penetrar-me a carne. Desfaleci.
Acordei zonzo, sem saber momentaneamente o que se passava, era como saísse de um pesadelo. Tive dificuldade de me “sintonizar”, pois havia perdido a memória temporariamente. Jogavam-me baldes de água fria, e após algum tempo comecei a recobrar a memória. Fiquei assustado, pois achei que estava morrendo e nada entendia. Arrastaram-me sobre a grama e só então pude perceber que o fuzilamento não ocorrera, era apenas uma simulação e uma tortura psicológica. Senti-me muito estranho, não consegui raciocinar. Os pensamentos não faziam sentido, e não conseguia memorizar as coisas. arrastaram-me até um prédio próximo e jogaram-me a um canto. Aos poucos fui me refazendo, e logo a seguir, voltaram, arrastaram-me até uma sala onde estava presente Fleury e sua corja. Fui colocado nu em um tamborete de ferro, algemado mãos e pés. Os pés estavam entrelaçados aos pés do tamborete e virados para trás. A seguir, começaram a me aplicar telefones ( tapas dados nos dois ouvidos ao mesmo tempo sem que a pessoa esteja esperando, o que provoca surdez por vários dias). Seguidamente aplicaram-me choques elétricos em todo o corpo, e com o temor provocado pelos choques, os pés atados ao tamborete de ferro, começaram a bater seguidamente contra a trave, provocando dores insuportáveis, além de produzir sangramento devido ao aperto das algemas que foram fechando. Os torturadores que estavam nas minhas costas aplicavam-me “telefone” e os da frente espancavam-me no estômago, com intensidade e brutalidade. Após horas de tortura, levaram para a sala um cão pastor, que pulava em cima de mim de forma ameaçadora, sob o comando de um oficial que o acompanhava. Ele instigava o cão a abocanhar-me os testículos que ficavam pendurados para fora da banqueta, a fim de provocar-me o terror. Às vezes o cão apertava tanto os testículos que meus gritos eram aterradores. as sessões prosseguiram com variadas formas de tortura: “pau-de-arara”, dobradores de tensão, pimentinha, afogamento e cadeira do dragão, que consistia numa cadeira parecida com a do barbeiro, onde era amarrado e com fios elétricos aplicados nas partes sensíveis do corpo, iniciavam então uma série de choques elétricos. Nesta cadeira havia uma trave que era utilizada para empurrar para trás as pernas de forma a provocar muita dor nas batidas contra a trave. Após chegar aos limites de minhas forças, e já que ainda permanecia vivo, comecei a relatar uma porção de estórias, para ganhar tempo e sair daquela situação. Este foi o único momento em que foi feito uma pausa e como estava à beira da morte, levaram-me para a cela, após ter sofrido vários desmaios. minha cabeça estava cheia de hematomas devido às pancadas, e o sangramento era intenso. A chegar à cela carregado, jogaram-me no fundo, retirando-se a seguir. Não tinha a mínima noção de quanto tempo havia se passado, talvez dois dias de torturas incessantes. Sem poder falar direito, comecei a sentir emoções estranhas, o único desejo que manifestava dentro de mim, era o de morte. A tensão era insuportável, provocando-me dores horríveis no peito, além das demais em todo o corpo. Subitamente fui acometido de um tremor e convulsões, sentia meu coração disparar, o meu cérebro começou a ficar “entumecido” e meus pensamentos desordenados. Pressenti que ia enlouquecer e comecei a dar cabeçadas nas grades de ferro e na parede da cela. Pulava com a cabeça no chão a fim de interromper minha confusão mental. Neste momento, com os barulhos provocados pela minha autoagressão, o companheiro do lado, Paulo Fonteles, gritou e perguntou o que se estava passando. Como não havia entendido bem o que perguntava, respondi-lhe que estava enlouquecendo, que não aguentava mais as torturas. Ato contínuo, o companheiro
Paulo começou a gritar comigo, porém nada entendia. De repente, tive uma fração de lucidez e foi possível ouvi-lo. Fazia-me uma reflexão sobre nossas responsabilidades, que precisaria acalmar-me e dizendo muitas coisas significativas, conseguiu despertar minha atenção. Depois de uma longa exposição, conseguiu finalmente dialogar comigo. Compreendendo profundamente a gravidade da situação, enviou a seguir uma mensagem para todo o presídio. Logo, mais de 200 companheiros que se encontravam no presídio levantaram suas vozes. Cantavam para mim, muitos faziam discursos, o que elevou a minha moral e por um milagre recobrei os sentidos e minhas energias vitais. Foi o momento mais esplendoroso de toda a minha vida, com forças redobradas interiormente. Senti que a loucura poderia ser superada com a solidariedade dos companheiros. Fiz um discurso vigoroso de minha cela, solicitando ajuda e redobrar minhas energias com o apoio incomensurável dos companheiros.
De um traste humano em que haviam me reduzido, transformei-me inteiramente numa avalanche de forças capaz de prosseguir na luta contra os assassinos bestiais. Canções ternas e cheias de amor à humanidade foram cantadas para mim. Com este gesto de solidariedade na luta, pude prosseguir até o fim.
Durante semanas continuaram as torturas, mas felizmente mantive-me de pé, até que me isolaram numa solitária por mais dois meses, sem nenhum contato. Era uma solitária que fazia com que perdesse a noção do tempo, totalmente escura e sem ventilação. Felizmente sobrevivi.
Passado este tempo, fui novamente colocado em uma viatura e levado ao aeroporto e colocado num avião militar. Durante toda a viagem, que durou um tempo que não é possível precisar, estive encapuzado e não ouvi vozes. Ao parar a aeronave fui colocado para fora e removida para um veículo que me levou para um presídio que não sabia onde estava. Quando me retiraram da cela e me levaram para uma sala de tortura pude reconhecer a voz do bandido Fleury que com ares de zombaria disse-me que se não o levasse ao aparelho da direção iria me escalpelar, esse foi o termo exatamente usado.
A partir daí fui novamente submetido a torturas físicas e psicológicas e, depois, colocado em uma viatura. Sempre com algemas e sem capuz, rodam comigo pelas ruas de São Paulo para que eu reconhecesse algum lugar que pudesse conduzir ao aparelho da direção. Sempre partiam da proximidade da rodoviária, onde dizíamos ter sido conduzidos, com venda nos olhos, até ao aparelho. Como rodamos por mais ou menos uma hora, ficava evidente que seria impossível chegar a qualquer conclusão sobre a sua localização. Foi só no momento em que comecei a circular pela cidade que identifiquei São Paulo como a cidade para onde havia sido levado e reconheci que me encontrava na Operação Bandeirantes, sede do organismo criado pelo aparelho de repressão e financiado pelos empresários de São Paulo, para perseguir, torturar e matar os que lutavam contra o regime militar.
Neste centro de tortura sempre fiquei em uma cela isolada, sendo retirado para as sessões de interrogatório e tortura que tinham por finalidade localizar o aparelho de direção. A obsessão do bandido Fleury, neste instante, era tentar localizar tal aparelho, visto que desde os interrogatórios em Brasília, torturava a todos que haviam sido presos no Araguaia e depois os conduzia a São Paulo na tentativa de descobrir o aparelho. Por mais de 20 dias estive em uma solitária na Operação Bandeirantes, em São Paulo, sendo interrogado todos os dias, sempre com esse mesmo objetivo: localizar o aparelho de direção.
As torturas a que fui submetido foram choques elétricos, afogamento e pau-de-arara, além de espancamentos. Em São Paulo ocorreu-me uma sensação muito estranha e ao mesmo tempo irracional. Tinha tanto ódio dentro de mim que ficava aguardando os torturadores. Estava ansioso pelo confronto, pois dele podia surgir a minha morte. Quando tentava aplacar dentro de mim essa necessidade de confronto, ficava confuso, então o desejo tornava-se maior. Fundamentalmente o objetivo das torturas físicas e psicológicas era quebrar minha resistência interna desarmando-me psicologicamente.
Colocaram-me no pau-de-arara durante muito tempo e, ao mesmo tempo, aplicavam-me choques elétricos nas partes mais sensíveis do corpo e, algumas vezes, afogavam-me com um galão de água introduzido na boca, estando eu de cabeça para baixo. A outra maneira era tapar a minha boca e despejar água pelas narinas. Isso causava um sufocamento e uma irritação muito grande, parecia que a água ia até o pulmão, produzindo uma sensação horrível. No momento em que não tinha mais forças para prosseguir, as torturas cessavam por alguns dias.
Algum tempo depois, fui colocado encapuzado dentro de uma viatura e novamente fui levado para uma aeronave, sem saber para onde ia. Fui transportado para outro presídio. Ao longo do caminho, pude perceber que se tratava de uma cidade à beira mar, pois os sentidos do prisioneiro estão sempre atentos e pelo olfato tive a certeza de estar à beira mar, além disso aquele cheiro era-me familiar; era o Rio de Janeiro, quase de certeza.
Na cela, ao receber alimentação pude confirmar minha previsão. Pelo sotaque do soldado, não tive dúvidas de que estava no Rio de Janeiro, porém não sabia onde. À noite, no jantar, perguntei ao soldado e ele respondeu-me que estava no PIC da Barão de Mesquita. Fiquei um pouco apreensivo, pois sabia tratar-se de um centro de torturas famoso. No outro dia, pela manhã, fui algemado, encapuzado e retirado da cela e, logo a seguir, iniciaram-se novamente as sessões de torturas. Repetia-se tudo de novo e com uma intensidade brutal. Pela primeira vez, após ter experimentado toda espécie de torturas, apresentaram uma nova modalidade. A chamada “geladeira”, que consistia num cubículo, onde fui colocado nu e algemado. As paredes eram acolchoadas, com uma luz, às vezes azul, outras, vermelha.
Depois de sofrer espancamentos, choques e afogamentos, colocaram-me dentro da “geladeira” e aos poucos a temperatura subiu a 50° e, logo a seguir baixou para 0°. Esta oscilação de temperatura foi enlouquecedora, provocando calafrios e esgotamento físico e mental. Quando estava quase enlouquecendo, retiravam-me e submetiam-me a novos interrogatórios e assim sucessivamente.
Durante várias semanas fui submetido a estes processos brutais e desumanos, por agentes do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Federal.
A esta altura, era um mulambo humano, e como só restava para mim a morte, e como já haviam conseguido, através dos camponeses um número grande de informações, resolveram colocar-me numa solitária, onde ruídos constantes e persistentes eram provocados, a fim de enlouquecer-me. Depois passaram a adotar a tortura da insônia, que consistia em colocar-me em sala toda branca, sentado numa cadeira do dragão, e aplicar sons em alto volume nos ouvidos, choques, palmatórias, afogamento e holofotes intensos nos meus olhos a fim de não permitir que eu dormisse. As equipes se revezavam de duas em duas horas, por noites e dias até minar minha resistência.
Após quatro dias mais ou menos sem dormir, entrei num processo de descontrole psicológico. E como encontrava-me completamente afetado psicologicamente, não sabendo o que falava, resolveram abandonar as torturas, achando que devia ter enlouquecido definitivamente.
A partir deste momento, fui abandonado à própria sorte, com minhas dores, ferimentos graves, e totalmente desestruturado psiquicamente. Transportavam-me de volta a Brasília onde fui encerrado numa solitária, e durante longos dias lá permaneci. Após, pela primeira vez, fui colocado no chamado coletivo X1.
Durante o período em que permaneci nesta solitária e no X1, era constantemente torturado pelos guardas do presídio, que se julgavam no direito de torturar-me sob qualquer pretexto. Por exemplo: quando apanhado falando com um prisioneiro em outra cela ou simplesmente por ter deixado uma pequena toalha pendurada na mureta da cela. Tudo era motivo para que eu ou outro prisioneiro qualquer fosse retirado da cela, encapuzado, espancado até a prostração e com aplicação de choques elétricos.
Naqueles anos de horror da ditadura militar, onde a impunidade total falava mais alto, qualquer barbaridade e crime podia ser cometido respaldado na famigerada Lei de Segurança Nacional.
Aproveitando-se de tal impunidade, qualquer militar, de qualquer patente, se julgava acima da lei, e da ética, podendo cometer todo tipo de atrocidade.
Durante o período em que estive no coletivo X1, fui acometido de uma infecção dentária, pois os dentes quebrados entraram em processo de decomposição. As dores que sentia eram insuportáveis, e eu era motivo de chacota por parte dos torturadores que comandavam o presídio. Durante mais de cinco dias, gritei e gemi de dor sem obter nenhuma assistência, e fui torturado porque estava sentindo dores, pois tais gritos e gemidos prolongaram-se por dias e noites, o que provocava a irritação dos torturadores. Somente a partir do quinto (5) dia retiraram-me da cela e levaram-me a um consultório dentário dentro do centro de tortura. Lá chegando fui tratado de forma bárbara. Não retiraram as algemas. Fui empurrado em cima da cadeira pelo oficial. E sem nenhuma anestesia, usou o boticão, arrancando os pedaços dos vários dentes. Tinha dor e nada podia fazer. Tudo era permitido fazer a um preso político, não importando em que condição estivesse.
As dores, provocadas pela infecção e a estupidez do oficial dentista, prolongaram-se por vários dias. Para tentar aliviá-la, companheiros do coletivo conseguiram com as visitas de familiares, medicamentos, que eu tomava para diminuir a infecção.
Após longo período neste coletivo, fui novamente colocado em uma solitária, permanecendo aí por volta de duas semanas. A seguir o General Bandeira, comandante da Brigada, autorizou minha soltura.
Com uma prisão ilegal e clandestina, sem inquérito e sem processo, fui colocado em liberdade em Brasília, sendo acolhido por Edmundo Magela Carneiro, que me levou para sua residência em Goiânia.
Ao sair da prisão, senti reações muito estranhas: não consegui caminhar, parecia que estava pisando em nuvens. Sentia com frequência tremores e perda de memória, além de alucinações e hipersensibilidade, ou seja, qualquer reação provocada pelo mundo exterior levava-me a chorar. Não conseguia uma sintonia lógica com meus pensamentos, além de constantemente me fixar em determinadas coisas, sem conseguir fazer raciocínio abstrato.
Tive desmaios com uma certa frequência, o que me deixava muito preocupado. As lesões na coluna provocavam-me dores constantes, além de problemas com a visão.
Procurei assistência médica logo nos primeiros dias, quando fui atendido, primeiramente por um dentista, que fez os reparos iniciais, fazendo raspagem na fratura do maxilar, e quanto a fratura da face, fui encaminhado pela Dra. Rejane Fraisa, que me deu os primeiros atendimentos médicos.
Levou-me ao hospital onde fui submetido a vários e exames, onde foram constatados problemas renais, e na coluna, sendo que a fratura na face já estava em processo de calcificação.
Minha visão estava alterada pelos frequentes espancamentos na face, o que levou-me mais tarde a procurar um oftalmologista.
Permaneci em Goiânia o tempo suficiente para me recompor um pouco, e a seguir dirigi-me para São Paulo. Lá fui atendido pelo Dr. Jorge Kaiano, que me deu assistência e levou-me para o Hospital das Clínicas onde fiz tratamento por um longo período.
Após uma melhora mais substancial, procurei Dr. Geraldo Défilipe, que me fez cirurgia nas duas vistas, em sua clínica Ibiapaba, em Minas Gerais. A seguir fui para o Rio de Janeiro onde fiz tratamento renal por três anos com o Dr. Roger Bonow Mendes, nefrologista do Hospital Geral de Jacarepaguá “Cardoso Fontes”.
Embora nunca consegui voltar a ser o que sempre fui, prossegui no tratamento e paralelamente à procura de trabalho. Tive grandes dificuldades neste período, pois a perseguição política continuava, através da exigência do famigerado atestado ideológico. Era impossível conseguir trabalho sem apresentação do dito atestado, o que para mim era impossível de conseguir.
Nesta época, o único trabalho que me foi possível conseguir foi na construção civil, um dos raros que não exigia atestado ideológico. Durante a permanência neste trabalho, fui acometido de desmaios por várias vezes, porém sem saber a causa. Foi também neste período que apareceram as primeiras crises de depressão.
No final de 1975, quando a exigência de atestado ideológico cessou, consegui meu primeiro trabalho na minha profissão, quando fui para Florianópolis – SC, onde empreguei-me na Eletrosul.
Durante os primeiros anos de trabalho nesta empresa, tive um período de certa estabilidade na minha saúde, porém em 1979, comecei a sentir-me mal. Fui acometido de violento estresse e logo a seguir tive uma grande crise de depressão com sucessivos desmaios.
Neste período fui internado na clínica psiquiátrica São José, e logo que pude saí, devido às precárias condições da clínica. Imediatamente segui para Curitiba, local de melhores condições médicas, onde fui assistido por mais de (8) anos pelo Dr. João Manoel Cardoso Martins, do Centro Médico Batel. Foi nesta clínica que houve a confirmação, após vários exames, de que havia sofrido traumatismo craniano, no lóbulo direito e esquerdo, o que me provocava os desmaios (ataques de epilepsia)
Desde os primeiros desmaios, que senti, tanto na prisão como logo após, sempre achei que era pelo estado de fraqueza, e nunca tinha percebido que pudesse ser devido às torturas. Tenho estado, desde que saí da prisão, em permanente peregrinação por hospitais e clínicas médicas, numa batalha constante para tentar superar definitivamente os problemas que sofri.
Após ter esperado por quase (20) vinte anos, pela abertura dos arquivos do DOPS – quando então pude recorrer à Justiça para ver meus direitos serem reconhecidos.
Contudo, os governantes têm se negado a dar minha reintegração ao trabalho, ao mesmo tempo em que condecora e nomeia para altos cargos vários torturadores.
Espero que meu pleito, justo e fundamentado na anistia, acordo selado entre governo e sociedade, não seja desconhecido pela Justiça.
Agradeço ao Tortura Nunca Mais, RJ, que tem me proporcionado atendimento e assistência médica, através do projeto da ONU (Organização das Nações Unidas) para vítimas da tortura.
Concluo este relato deixando aqui registrado o nome e patente de todos aqueles que participaram diretamente, dentre os que me foi possível identificar, do covarde e atroz crime de tortura, em nome da Segurança Nacional, a um prisioneiro indefeso o qual jamais cometera qualquer crime.
1. ANTONIO BANDEIRA: General de Exército; como Coronel de Infantaria serviu em Recife na época do Golpe (1964) chefiou a Censura Federal; comandou o III Exército depois foi para a reserva, recebeu a medalha de “Pacificador”.
2. ANTONIO CARLOS VASCONCELOS: Segundo Sargento do Exército, em janeiro de 1969 foi transferido para o BPE-Brasília, sendo que em 1971 e 1972 atuava no PIC.
3. SÉRGIO FERNANDO PARANHOS FLEURY: Delegado da Polícia Civil; dirigiu a OBAN, mantinha ligações com a CIC, recebeu a medalha de “Pacificador”; era conhecido como Comandante Barros, pertencia ao esquadrão da morte de São Paulo.
4. HARRY EGON PRASS: Segundo Sargento do Exército; servia no PIC do BPE Brasília (1971-1972).
5. JAMIRO FRANCISCO DE PAULA: Cabo do Exército; serviu no PIC-BPE-Brasília (1972), é negro; recebeu a medalha do “Pacificador”, (1973).
6. JOAQUIM CALEGARIO FILHO: Cabo do Exército; servia no PIC do BPE-Brasília (1972), recebeu a medalha do “Pacificador”, (1973).
7. JOEL PERES DE VASCONCELOS: Coronel de Infantaria do Exército; comandou o BPE-Brasília até dezembro de 1972; recebeu a medalha do “Pacificador” (1972).
8. LUIZ HENRIQUE NAZARENO: Cabo do Exército; serviu no PIC do BPE-Brasília (1971-1972).
9. MARTINS: Cabo do Exército; servia no PIC do BPE de Brasília (1972).
10. OLAVO VIANNA MOOG: General de Divisão; em 1964 servia no 1° BPE-RJ; foi Secretário de Segurança Pública-SP (1969); um dos organizadores do Esquadrão da Morte – SP, em 27 de dezembro de 1971 foi nomeado Comandante Militar do Planalto, comandando a repressão à Guerrilha do Araguaia; recebeu a medalha do “Pacificador”.
11. OSWALDO PUGLIA: Tenente Coronel de Infantaria do Exército; comandou o BPE-Brasília a partir de dezembro de 1972, recebeu a medalha do “Pacificador”.
12. OTTO DENIS GOMES PORTO: Major de Infantaria do Exército; comandou o PIC do BPE-Brasília (1972-1973).
13. RIBEIRO: Sargento do Exército, servia no PIC do BPE-Brasília (1970-1972).
14. SEBASTIÃO RODRIGUES DE MOURA: Capitão de Infantaria do Exército; serviu no RJ (1970); em fevereiro de 1972 foi transferido para o comando militar do Planalto, atuando no SNI e na repressão à Guerrilha do Araguaia; ganhou a medalha do “Pacificador” (1972); foi Deputado Federal pelo PDS (1982-1986) conhecido como Major Curió.
15. THAUMATURGO SOTERO VAZ: Major de Infantaria do Exército; era paraquedista; possui curso de contra guerrilha na selva feitos na Zona do Canal, com diplomas da School of the United States of America Army e o The Army Commendation Medal; participou da repressão à Guerrilha do Araguaia, recebeu a medalha do “Pacificador” (1969). (Erroneamente algumas fontes registram “Daumaturgo”)
16. TOREZAN: Cabo do Exército, servia no PIC-BPE em Brasília (1972-1973).
17. TULIO PINAUD MADRUGA: Capitão de Quadro de Material Bélico do Exército; serviu no PIC do BPE-Brasília (1971-1972), conhecido como Meireles
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Transcrição: Ruan Mazza
Texto: Rafael Cuevas Molina
Texto: Elaine Tavares