Operação Águia – Aliança para o Progresso (E 10)
Texto: Camila Feix Vidal - IELA
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02/04/2007
Rosalvo Schütz – Doutor em filosofia pela Universidade de Kassel, Alemanha e pesquisador CAPES no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas.
A recente obra de Luiz V. Vieira “A democracia com pés de barro. Diagnóstico de uma crise que mina as estruturas do Estado de Direito” tem caráter inovador não apenas pelas reflexões inéditas, mas também pelo fato de ser perpassada por uma postura metodológica pouco cultivada entre nós: a crítica através da exposição. O autor se propõe a expor a lógica imanente do Estado liberal de Direito, ou seja, desvendar os elementos que este pressupõe para afirmar-se como legítimo. A expressão “diagnóstico de uma crise” revela que, a partir de um diagnóstico preciso, se abre a possibilidade da crítica interna, sem a necessidade de apelar para pressupostos ou moralismos externos.
Muito além de um simples estudo de filosofia, esta obra revela profunda atualidade porque tematiza a vida política latino-americana com uma originalidade raramente vista nos meios intelectuais (tanto de esquerda como de direita). O livro é, simultaneamente, uma “ducha de água fria” naqueles que vêem no Estado de Direito a expressão mais completa da democracia, e um “abrir de olhos” para aqueles que, de tanto indignarem-se já caíram na resignação. Utilizando-se do instrumentário teórico de Carl Schmitt, Rousseau e outros, mostra que o sistema representativo moderno não se coaduna com a democracia e que esta foi esvaziada de seus conteúdos materiais no decorrer do processo histórico de consolidação do Estado burguês de Direito. Na sociedade moderna a forma específica de estruturar o espaço do Político corresponde e se complementa com a sua base produtiva, produtora estrutural de injustiça. Ao apontar para a diferença entre o significado do Político e do Estado, entre “vontade geral” e “vontade de todos”, entre Democracia e Estado de Direito, o autor abre uma nova perspectiva para o agir político, não ficando mais preso aos pressupostos e aparatos jurídicos pelos quais a democracia moderna foi domesticada e instrumentalizada. Evidencia-se, assim, o quanto aquele agir político apegado aos parâmetros reconhecidos por este sistema está, de antemão, fadado a não interferir na base estrutural desta realidade. A resignação e a impotência diante da realidade se mostram, desta forma, como resultado de um diagnóstico equivocado e insuficiente, incapaz de visualizar as possibilidades que esta oferece.
Apontando para novas formas do fazer político, nos quais a democracia passa a ter um caráter mais substantivo e liberto das amarras formais do Estado de Direito, como é o caso de Movimentos Sociais na América Latina, o autor põe em evidência um potencial emancipatório que emerge diante da crise de legitimidade das estruturas formais de representação. Com estas teses, é diagnosticada a estrutura falaciosa do pensamento que aponta para a moralidade individual como origem dos problemas hodiernos. Segundo o autor, este tipo de perspectiva inviabiliza a discussão em torno do bem comum e do agir político num sentido mais amplo. Ao apontar para o Parlamento como apenas um espaço de negociação de interesses privados e não a expressão dos interesses públicos, em defesa dos quais este geralmente se apresenta, o autor evita cair em uma ética do discurso, como se fosse a chave de salvação para os problemas de legitimidade política. Esta crise seria, antes, expressão da progressiva falta de credibilidade do Estado de Direito como uma determinada forma de expressão do Político, que urge ser superada. Dito em termos hegelianos, antes seria um problema de eticidade do que de moralidade.
Na unidade constitutiva entre Estado Moderno e Sociedade Civil e, mais especificamente, entre democracia parlamentar e economia capitalista, o autor reconhece uma perigosa ameaça à Democracia. Experiências de caráter autoritário, como o Nazismo ou o Bolchevismo Stalinista, seriam decorrência de “crises agudas das próprias democracias modernas”, que insistem em não pôr em questão os seus fundamentos. Esta cegueira, diante do inexorável relação entre o direito liberal e a vida material determinada pelo capitalismo, é o que precisaria ser desobstruído, a fim de tornar possível um agir político genuíno. Portanto, compreender o fundamento e a função do sistema representativo moderno é tomado como uma referência central pelo autor. Por isto, o próprio conceito de representação é analisado logo no primeiro capítulo, onde se evidencia a contradição deste com a democracia direta. Como os representantes se dizem representantes do povo, também o conceito de povo adquire uma importância estratégica na análise. Fica claro que, na democracia moderna, não é a vontade geral do povo que é representada, mas sim a soma de indivíduos e de interesses particulares. Povo, enquanto unidade política, é simplesmente ignorado dentro do horizonte liberal. Em vez de uma referência substancial para o agir político, é tomada apenas a igualdade formal diante da lei, onde o povo enquanto unidade originária e com interesses públicos comuns, fica simplesmente excluído do cenário das decisões políticas modernas. Impede-se, assim, uma intervenção substantiva na base produtiva geradora de desigualdade.
Outro conceito chave é o de soberania, pois, através de sua tematização, tornam-se claros os alcances da concepção política moderna. A análise histórica e teórica deste conceito revela que ele passou por um processo abstraidor, ou seja, um processo que progressivamente tirou dos governos e povos a possibilidade do agir político autônomo e o submeteu a regras e leis racionalizadas. Este processo é agravado com a divisão dos poderes, baseado na crença mistificada de que o resultado da concorrência entre poderes seria automaticamente o melhor para a sociedade, independente do seu conteúdo. Recorrendo a vários pensadores, como Locke, Hobbes, Montesquieu, Kelsen, Hayek, Schmitt o autor mostra como o espaço político foi progressivamente perdendo sua autonomia e sendo atrelado a uma ordem abstrata, cada vez mais mancomunada com a “ordem espontânea do mercado” até ser totalmente submetida a esta. A lei enquanto “norma geral e abstrata” passa, assim, a ser uma das condições para a implantação e manutenção da economia de mercado. A redução do caráter político, presente em toda a comunidade humana, ao seu caráter estatal ou, ainda mais especificamente, ao caráter partidário, tornou-se uma necessidade para a manutenção do sistema. A discussão pública, a publicidade e mesmo a separação dos poderes se revelam falaciosos e enganadores quanto aos objetivos anunciados, uma vez que não são resultado do equilíbrio do discurso público, mas de negociatas reservadas de interesses privados. A crise de legitimidade, portanto, não reside na deficiência moral dos integrantes dos governos, mas nos pressupostos e na própria estrutura instituidora do Estado moderno, expresso de modo exemplar na forma e função do Parlamento.
Não há moralização ou caridade individual, nem discurso ético que possa por fim a esta crise de legitimidade. Sua superação exige uma práxis social que ultrapasse os limites da legalidade formalizada e de seu jogo político-institucional correspondente, a fim de fundar uma nova forma de agir e de poder para re-estabelecer o espaço político como autônomo e livre. É nesta perspectiva que o autor, nos dois últimos capítulos, analisa experiências políticas latino-americanas que poderiam estar apontando novas perspectivas para o Político. Desta forma, a teoria exposta no livro mostra sua força compreensiva, capaz de revelar potenciais emancipatórios do interior da atual crise.
Um dos limites do livro pode ser atribuído a uma tomada demasiadamente apressada, pelo menos do ponto de vista do leitor, de conceitos relativamente perigosos como, por exemplo, o de homogeneidade, tomado de Carl Schmitt e pouco questionado. Como sabemos, este conceito foi muito bem instrumentalizado pelo Nazismo, tendo a raça como referência. O fato de o autor, mais para o final do livro, passar a utilizar o conceito de unidade orgânica em vez de homogeneidade, revela que o autor se movimentou de forma progressiva, numa perspectiva emancipatória e democrática, sem cair na tentação iluminista de abstrair do substancial. Talvez o autor tenha sido imunizado deste mal por diversas décadas de militância e engajamento político e social.
Após a leitura do livro, podem até permanecer questionamentos e incertezas, próprios de um novo olhar sobre as coisas, mas não há dúvida de que o diagnóstico feito encontra ressonância na realidade e de que o “diagnóstico correto de qualquer patologia não constitui nenhum perigo para o paciente, muito pelo contrário, é o primeiro passo para a restauração de sua saúde” (VIEIRA:2006, 106). As conseqüências político-pedagógicas deste diagnóstico, em grande parte, precisam ainda ser elaboradas e construídas e, certamente, hão de ter perspectivas bastante diversas de muitas atualmente em voga.
VIEIRA, Luiz Vicente, A democracia com pés de barro. Diagnóstico de um crise que mina as estruturas do Estado de Direito. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006 (120p.).
Texto: Camila Feix Vidal - IELA
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