História e Pensamento Militar
Texto: IELA
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Um dia estou em casa toca o telefone. Uma voz conhecida. “Meu caro”, era assim que ele me chamava. Cláudio Abramo, um dos maiores jornalistas do Brasil, admirador de Trotsky e conhecedor da obra do revolucionário bolchevique. Poucos sabem que Claudio Abramo enriqueceu duas famílias: Mesquita e Frias. Dirigiu os dois maiores jornais de São Paulo.
Claudio Abramo foi um criador de casos, no bom sentido da expressão. Sabendo que eu estava desempregado, duro, liso que nem bunda de santo, como dizia meu pai Zolachio, ele veio com a seguinte artimanha: quero que você faça uma entrevista com você mesmo sobre aquele sujeito que você gosta tanto lá do Rio Grande do Norte. Tratava-se de Luís da Câmara Cascudo. Nisso já me mandou um cheque pelo banco, não me lembro mais o valor. Claro que fiquei maravilhado com a perspectiva de descolar um troco, mas não poderia imaginar que o cheque era assinado pelo próprio Cláudio Abramo com a sua imensa generosidade.
Uma das conversas recorrentes de Cláudio Abramo era mencionar com tristeza que algum amigo dele estava desempregado, o que é bastante comum no mundo do jornalismo.
O conversador mais agradável e inteligente que já existiu no meio jornalístico. Engraçadíssimo e ao mesmo tempo trágico. Dizia-me: se vier o socialismo eu quero dirigir a polícia para colocar um bando de empresários na cadeia. Foi por intermédio dele que eu conheci o cineasta Glauber Rocha no ano de 1978 que foi visitá-lo na direção do jornal. Esse encontro alterou a minha vida, como reclamou um dia Otávio Frias Filho supondo que eu poderia seguir uma carreira de jornalista áulico tornando-me quem sabe senador pelo PT ou PSDB. Isso evidentemente não aconteceu. Otávio Frias Filho atribuiu esse fato ao encontro que presenciei entre Cláudio Abramo e Glauber Rocha. Um encontro histórico. Maravilha. Estou em falta com meu amigo por não ter feito ainda o seu retrato, mas nunca deixo de pensar nele, sobretudo nesses tempos bicudos de carreirismo e mau caratismo intelectual.
Aproveito minha amizade com Elaine Tavares, que é uma jornalista idônea, para publicar a entrevista que fiz comigo mesmo. Autoentrevista. Ei-la:
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– Há quem diga por aí que Luís da Câmara Cascudo não é cientista, é folclore.
– Eu desafio publicamente quem apontar um outro cientista no século 20 que se lhe compare. A obra de Cascudo poderia alfabetizar os meninos do Brasil através da ciência do povo. Se alguém quiser saber se jacaré dorme à noite, se a jangada tem parafuso, ou de onde vem o lobisomem, ou como nasceu o Sacy Pererê. Sua biografia pode ser resumida no seguinte: ensinou e escreveu. Nada mais lhe sucedeu.
– Qual o motivo de sabotar sua obra?
– Antes de tudo, trata-se do imperialismo do método. Nunca Luis Câmara Cascudo se arrependeu de não ter tido método em seus 150 livros. Ninguém até hoje apontou-lhe um erro, um defeito, um deslize que fosse, o que causa inveja aos medíocres. Cascudo é um dos grandes escritores da América Latina.
– De que serve conhecer essas crendices e bicharadas?
– O Lobisomem, o Sacy Pererê, o Curupira, o Papa Figo, o Diabinho da Mão Furada não são crendices inventadas por Cascudo, existem há milênios no mundo. Introduz o regional no universal e vice-versa.
– O folclore é modernidade?
– Essa histeria em torno da modernidade é uma grande bobagem. Nenhum pensador genial a utiliza como categoria de importância. Claro que haverá um folclore dos astronautas, assim como já existe um folclore dos choferes de automóvel e pilotos de avião. O astronauta desce e sobe a Lua com uma figa no bolso, os transatlânticos não dispensam até hoje o número 13 em suas poltronas; os nossos indígenas, depois de cinquenta anos de descoberto o Brasil, só saiam à noite com um tição aceso na mão. Bobagem pensar que desenvolvimento industrial anula o folclore, ou que a superstição seja coisa de idiotas. Superstição existe em Goethe ou num caiçara sem INPS. As novidades no mundo são antigas: vinte mil anos. Dar adeus, saudar agitando a mão não tem idade, mostrar a língua era desaforo três séculos antes de Cristo em Roma.
– Por que não existe a disciplina do folclore nos currículos escolares?
– Acho que ninguém no Brasil sabe o que é folclore, tratado de modo pejorativo em Brasília, na Unicamp, na vanguarda, no “high life”. De minha parte estou convicto de que ele é o grande filósofo brasileiro.
– Cascudo foi um homem feliz?
– Claro que foi. Só escreveu o que quis. Não se importava se era ou não lido por um jovem da USP ou do Museu Nacional. O poeta russo Maiakovski percebeu que no Brasil havia um brasileiro feliz. Era ele.
– E a sua relação com o dinheiro?
– Foi menino rico, adolescente também rico, mas na mocidade, estudando no Recife, em Salvador, no Rio, ficou pobre; seu pai perde a fortuna, volta para Natal, sendo obrigado a trabalhar e trabalha a vida inteira até se aposentar como professor universitário. Já na velhice evoca o dia terrível em que uma agência imobiliária lhe ofereceu dinheiro para comprar sua casa. Enraivecido, o folclorista botou porta a fora os mercenários: “para que eu quero dinheiro?”. O sobrado da rua Junqueira Aires era a casa em que sua mulher, Dona Dália, havia nascido. Repetidas vezes citou o conhecido aforisma anglosaxônico segundo o qual tempo é dinheiro, acrescentando: “mas dinheiro não é tempo”. Recebendo várias propostas sedutoras de emprego fora de Natal, inclusive de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek, ele as recusa; tampouco se empenha em fundar instituto de pesquisa ou fundação que tem enriquecido muita gente nas ciências sociais. Trabalhou sozinho, sem secretária, apenas com os olhos e os dedos, escrevendo direito na máquina de escrever.
– E a vaidade dele como autor?
– Acredito que um escritor que demora 40 ou 50 anos preparando alguns livros não se preocupa com a indolência do nosso público intelectual. Ele dizia que sua função de escritor era igual a de um mamoeiro: era produzir mamão. O resto é silêncio.
Texto: IELA
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