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Josué de Castro e a proposta trabalhista de superação da fome

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Por Itamá do Nascimento - Sociólogo e Historiador em 08 de agosto de 2025

Josué de Castro e a proposta trabalhista de superação da fome

O Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) existe desde 2006. Enxergo hoje o IELA como o principal grupo de estudos da universidade brasileira, marcada hoje por uma debilidade intelectual de quem acredita que importar teorias e temas é produzir conhecimento. Desses longos e frutíferos 19 anos de IELA, debatendo grandes pensadores da América Latina e trazendo à tona debates profundos sobre a sociedade brasileira, acredito que este texto seja o primeiro sobre Josué de Castro. Um teórico tão importante como ele não poderia ficar tanto tempo fora do radar do IELA e nada melhor que um conterrâneo para quebrar esse tabu.

O objetivo do texto é duplo. Primeiro, rememorar Josué de Castro como um pensador da Pátria Grande. Um crítico ardente do subdesenvolvimento e suas chagas. Segundo debater a fome, seu principal tema de pesquisa e alvo hoje de maquiagem por parte de governos e órgãos internacionais. Recifense, Josué de Castro nasceu numa família de retirantes. Seu núcleo familiar chega em Recife se refugiando da seca e aposta no cenário urbano como perspectiva de uma vida melhor. Socializado nos mangues que cortam o rio Capibaribe, Josué de Castro vivenciou a fome e a desigualdade social logo cedo. Sua juventude no Recife marcou profundamente sua produção teórica e práxis política, transformando-o num médico e geógrafo defensor da superação da fome e do subdesenvolvimento.

Josué de Castro foi presidente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e embaixador brasileiro na ONU. O cargo ocupado não fez o médico pernambucano se acomodar, pelo contrário, resultou numa severa crítica a esse órgão internacional que ao ter o domínio das potências capitalistas era incapaz de apresentar uma real proposta que superasse a fome no mundo. Sua decepção no cargo foi assumida em seu discurso final:

Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista (…) Não fomos suficientemente ousados, não tivemos coragem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência, sem querer, na verdade, resolvê-lo, por falta de coragem de desagradar a alguns. Precisamos, a meu ver, ter a coragem de discordar de certas opiniões para aceitarmos a imposição das circunstâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade. [i]

Essas “certas opiniões” significava o posicionamento político e econômico dos países imperialistas, hegemônicos na ONU. Países sem nenhum compromisso ideológico com a superação do subdesenvolvimento, pois dessa lógica desigual dependia para a manutenção de seus privilégios. Como crítico dessa lógica, Josué de Castro opta por romper com a FAO e cria a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam), visando debater um problema de alcance mundial. A Ascofam, dentro de suas limitações assumidas por seu criador, buscava: “promover, encorajar e organizar no mundo a luta contra a fome, notadamente despertando, desenvolvendo, apoiando, difundindo, preparando, supervisionando, realizando, direta ou indiretamente, estudos, pesquisas, iniciativas, atividades e ações de natureza a fazer conhecer, diminuir ou eliminar a fome no mundo” {ii} , tal tarefa grandiosa se diferenciava da FAO por sua profundidade e independência, diferenciando também a fome aguda da fome endêmica, sendo esta última mais silenciosa e maquiada por organismo internacionais tendenciosos. Abertamente anti-imperialista, Josué de Castro denuncia no prefácio da primeira edição de Geografia da Fome, sua obra-prima:

É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. É a dura verdade que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos. [iii]

O texto e o que foi apresentado por ele até aqui dialoga absolutamente com acontecimentos recentes do Brasil. Segundo notícia veiculada e festejada pelo Governo Lula III, o país voltou a sair do Mapa da Fome, um indicador de prevalência de subnutrição organizado pela ONU. O Mapa da Fome tem como base os seguintes parâmetros: a) disponibilidade de alimentos, ou seja, mede a quantidade total de alimentos disponíveis no país; b) consumo alimentar, ou seja, analisa a distribuição desses alimentos; c) necessidade calórica, ou seja, determina uma quantidade mínima de calórias que uma pessoa precisa ter para ser considerada saudável e ativa. Caso o cálculo mostre que mais de 2,5% estão em situação de insegurança alimentar, considera-se automaticamente que o país está incluído no Mapa da Fome.

O cálculo da ONU não inclui, por exemplo, a questão da propriedade da terra. Em 2019, segundo dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o Brasil registrou recorde de concentração de terras [iv]. Um defensor do Governo Federal talvez questione, tendo em vista que a matéria do jornal O Globo (longe de ser um editorial pró-reforma agrária) data de 2019 e se refere a números de 2017. Tudo bem, mas em julho de 2025, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), longe de serem antipetistas, estava cobrando do Governo Lula III avanços na questão o que prova que o cenário não mudou [v] . Pelo contrário, talvez o cenário tenha piorado o aumento de ameaça de morte em 2024, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) [vi] , assim como o número de conflitos por terra [vii .

Analisando dados do Mapa da Fome, disponibilizado pela FAO e divulgados pelo G1 [viii], surge uma observação: dentro dessa lógica frágil de medir a fome com base em números abstratos e sem colocar em debate a questão da propriedade da terra (extremamente importante na produção e consequente distribuição de alimentos), o Brasil sai deste mapa entre 2013-2020. Ou seja, até mesmo dentro dessa lógica superficial os governos petistas se mostraram incompetentes, tendo em vista que em 2013 estávamos no último ano do primeiro Governo Dilma Rousseff. Durante os governos Lula I e II o Brasil esteve presente no Mapa da Fome. Mas o pior é que a entrada ou saída do Brasil neste artificial mapa é medido, tanto pela mídia burguesa quanto pela esquerda liberal, pelo sucesso ou não de políticas assistencialistas de alcance limitado. Isso fica claro na matéria da BBC Brasil que, justificando o retorno do Brasil ao Mapa da Fome, culpa Governo Bolsonaro, a pandemia e o enfraquecimento do Bolsa Família [ix]. O horizonte estrutural de uma reforma agrária se perdeu, até mesmo entre aqueles que deveriam levantar tal bandeira como compromisso histórico.

Porém, o que esse debate sobre Mapa da Fome e Governo Lula III tem ligação com Josué de Castro? Absolutamente tudo! Como um verdadeiro reformista, representante do projeto trabalhista, Josué de Castro foi ferrenho defensor da reforma agrária como único meio de iniciar um processo de real superação da fome e do subdesenvolvimento. Em países como o Brasil, não se elimina chagas como fome (ou o analfabetismo, por exemplo) sem tocar nas raízes do problema: o subdesenvolvimento e a dependência. Fora isso, tudo é ilusão baseada em números artificiais que não objetiva eliminar mais administrar a fome em números. Como se pontuar abaixo de 2,5% significasse um alívio caridoso que permite líderes baterem no peito e afirmar: “superamos a fome no Brasil”. Para quem mora em Recife, terra de Josué de Castro, basta andar por avenidas como Boa Vista, Guararapes e Dantas Barreto para sentirmos que esses números excluem dos cálculos diversos homens e mulheres. E fora a fome crônica, sofrida por essas pessoas, também exclui a fome endêmica que segue silenciosa no seio da classe trabalhadora.

No século XXI, marcado por hegemonia petista no campo política da esquerda, a fome pode ser superada por intermédio de políticas sociais que administram a pobreza com base na numerologia. Já no século XX, onde predominou o Trabalhismo Brasileiro como corrente política dominante, a fome só poderia ser superada com o combate ao subdesenvolvimento e tal enfrentamento seria encarnado em reformas estruturais como a agrária. Na elaboração do “Programa de 10 Pontos para Vencer a Fome” de autoria de Josué de Castro, o ponto 1 e 2 afirmavam, respectivamente: “Combate ao latifúndio” e “Combate à monocultura em largas extensões sem as correspondentes zonas de abastecimento dos grupos humanos nela empregados”. Hoje o combate ao latifúndio do petismo se configura na execução do maior Plano Safra da história, com R$ 516 bilhões visando o turbinamento do agronegócio [x] , e acordos com a China que favorecem esse mesmo setor que impede a reforma agrária e atola o país no atraso absoluto [xi] .

A reforma agrária, esquecida do horizonte da esquerda liberal, foi defendida por Josué de Castro como compromisso militante. Como Deputado Federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mais votado no estado nas eleições de 1958, apresentou em 1959 a Lei nº 11 que definia casos de desapropriação por interesse social. Na justificativa do projeto, destacava abertamente: “Com este projeto, que define os casos de desapropriação por interesse social, visamos a tornar exequível no país a implantação de uma reforma das estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evolução econômico-social brasileira” e ao mesmo tempo que alertava “Não se deve, pois, conceber a reforma agrária como simples expediente primário de desapropriação e redistribuição da propriedade, mas sim como um instrumento técnico de utilização racional da terra na defesa do bem estar coletivo” [xii] . Qual Deputado Federal tem hoje tamanha coragem e envergadura? A proposta trabalhista de superação da fome, baseada em reformas estruturais, foi inteiramente esquecida e relegada a memória política. Inclusive, pelos próprios ditos “trabalhistas” de hoje, como é o caso do Partido Democrático Trabalhista (PDT) que, tirando algumas exceções internas e minoritárias, não passa de uma organização satélite do polo hegemônico maior.

Em suma, encerro o texto satisfeito de ter apresentado Josué de Castro pela primeira vez no IELA. Um autor tão importante, impactante e necessário. Inclusive, com assumida perspectiva latino-americana, como podemos perceber em discurso por ocasião do dia panamericano em que disse:

Não se pode esquecer que este movimento se originou e tomou consistência como expressão de uma política de emancipação do jugo do colonialismo. Foi a política anticolonialista do século passado que deu origem a este sentimento, chamado de pan-americanismo; tanto assim que, quando se busca as raízes vamos encontrá-las fincadas na grande obra política de Bolívar, o grande pioneiro da emancipação política e econômica das repúblicas latino-americanas.

E encerra de forma categórica:

Tenho esperanças de que o panamericanismo tome um rumo novo, dentro deste sentido de admitir que a cooperação entre os povos não se deve fazer apenas nos termos vagos daquela assistência técnica e financeira que as grandes potências dispensam aos países pobres e subdesenvolvidos  [xiii] .

É esse intelectual firme e coerente que o presente texto buscou resgatar e apresentar ao IELA. Josué de Castro ajuda a pensar o Recife, o Nordeste, o Brasil, a América Latina e o mundo inteiro. Ajuda a pensar o flagelo da fome como produto do subdesenvolvimento, formando uma consciência nacionalista, latino-americana e anti-imperialista. Tal autor, a quem considero ser o maior nome da Geografia Brasileira e que teve como castigo uma morte melancólica durante seu exílio, deve ser lembrado constantemente pelo IELA e por qualquer intelectual ou militante comprometido com os verdadeiros interesses do povo brasileiro. Convido o IELA a anexar seu nome entre os “Pensadores da Pátria Grande”, assim como convido o leitor e ler e pensar criticamente com Josué de Castro.

Referências

i   FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. Josué de Castro: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 48.
ii  FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. Josué de Castro: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 49.
iii FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. Josué de Castro: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 110.
iv  CAPETTI, P. Concentração no campo bate recorde e 1% das propriedades rurais tem quase metade da área do Brasil. O Globo, 25 de out. de 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/concentracao-no-campo-bate-recorde-1-das-propriedades-rurais-tem-quase-metade-da-area-no-brasil-24040134. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
v  MST cobra Lula por reforma agrária: ‘Soberania nacional só é possível com soberania alimentar’. UOL, 21 de jul. de 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/07/21/mst-cobra-lula-por-reforma-agraria-soberania-nacional-so-e-possivel-com-soberania-alimentar.htm. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
vi   BOND, L. Violência no campo: 2024 teve recorde de ameaças de morte. Agência Brasil, 23 de abr. de 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-04/violencia-no-campo-2024-teve-recorde-de-ameacas-de-morte. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
vii  NASCIMENTO, L. Número de envolvidos em conflitos por terra salta para 900 mil em 2024. Agência Brasil, 23 de abr. de 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-04/numero-de-envolvidos-em-conflitos-por-terra-salta-para-900-mil-em-2024>. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
viii RESENDE, T. Brasil sai novamente do Mapa da Fome, segundo relatório da ONU. G1, 27 de jul. de 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/28/brasil-sai-novamente-do-mapa-da-fome-segundo-relatorio-da-onu.ghtml. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
ix  VEIGA, E. Como o Brasil oscilou no Mapa da Fome no século 21. BBC Brasil, 29 de jul. de 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz71wqy7p39o. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
x  PASSOS, G. Governo anuncia Plano Safra recorde de R$ 516 bilhões para agronegócio. Agência Brasil, 01 de jul. de 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/politica/audio/2025-07/governo-anuncia-plano-safra-recorde-de-r516-bilhoes-para-agronegocio. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
xi  QUEIROZ, V. China firma acordo para “rasgar” Brasil com ferrovias. CNN Brasil, 07 de jul. de 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/china-firma-acordo-para-rasgar-brasil-com-ferrovias/. Acesso em: 06 de ago. de 2025.
xii  FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. Josué de Castro: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 43 e 44.
xiii  FERNANDES, B. M.; GONÇALVES, C. W. P. Josué de Castro: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 42.

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