E vem o 2025
Texto: IELA
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A esquerda tem uma já relativamente longa tradição de negação da nação, à qual se filiam, com seu diferencial particularizante, as seitas multicultural-identitaristas. Mas, mesmo no âmbito do marxismo tradicional, que vem de Marx a pelo menos a esquerda negroafricana das revoluções anticolonialistas, a leitura do significado de nação é contraditória. Na teoria marxista clássica, a nação é vista como construto opressivo, superferramenta para anestesiar e manter sob controle as classes proletárias exploradas no sistema capitalista, obstáculo maior à realização da fraternidade comunista universal. Na prática esquerdista do século XX, no entanto, grande parte das vitórias objetivas da esquerda se deu em decorrência de lutas de libertação nacional. E esta realidade obrigou pelo menos parte da esquerda a repensar “a questão nacional”, deixando de parte a antinomia entre destino nacional e internacionalismo proletário. Régis Debray chegou a dizer que o futuro da esquerda dependeria da sua capacidade de reinventar uma política nacional para o século XXI.
Nesse contexto esquerdista, o multicultural-identitarismo tem a sua particularidade. Uma nação já não é uma “totalidade contraditória” formada por classes sociais distintas, como na teoria marxista. Para o identitarismo, antes que composta de classes, uma nação é feita de várias “nações”. É um construto opressor, mas que, antes de oprimir “classes”, agrupa de forma coerciva as diversas “nações” que vivem dominadas em seu interior. O identitarismo não lida com classes sociais, mas com grupos “oprimidos”, definidos em termos de raça, sexo, orientação sexual, língua, cultura. E esses grupos oprimidos costumam ser vistos, de sua perspectiva fragmentadora, como “nações” subalternas e até semiclandestinas, não reconhecidas pela nação dominante. Ou, no dizer do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o Brasil é uma ficção: o que temos aqui não é uma nação, mas um elenco de pequenas “nações” coabitando compulsoriamente um mesmo espaço geográfico, unificado sob “o tacão” do Estado. E o objetivo último é desintegrar esta nação. Destruí-la. Daí a gíria atual de que o Brasil não é uma nação, mas um “pluripaís”.
A “legitimação” desse ponto de vista antinacional se constrói por meio de uma reconstrução ideológica do passado do país. Mas uma reconstrução idiossincrática: onde a história confirma a ideologia, reportam-se os fatos; onde a história a desmente, descartam-se os fatos. É o método da falsificação. Constrói-se uma nova memória nacional não como forma de ampliar o conhecimento histórico, mas como instrumento de luta política e intimidação ideológica. O compromisso identitarista não é com a História, mas com uma suposta “justiça social”, de que seus militantes seriam os representantes (autodeclarados, evidentemente, já que ninguém os escolheu para este papel). Daí que seu instrumento básico de reconstrução do passado esteja nas exigências estratégicas ou táticas da luta atual. Precisa-se de uma mulher negra para posar de companheira de Zumbi dos Palmares? Fácil: inventa-se uma – e ela já vem prontinha da silva, com o curso completo de foclore afro e fazendo discurso identitarista tipo “globonews”. Aqui, a história não vale por si mesma, nem tem significado próprio: está a serviço da política e da ideologia. Resumindo: como a história não aconteceu como os identitaristas gostariam que tivesse acontecido, trata-se de falsificá-la. E assim os identitaristas provam que têm razão – especialmente num país que é de uma ignorância quase absoluta com relação ao seu passado.
Podemos ver esta falsificação operando até na dimensão da linguagem. Como se aqui existissem não só algumas “nações”, como suas respectivas línguas. Ora, encontramos no planeta diversos países multiculturais, assim como multilinguísticos. São dezenas de grupos étnicos e de línguas na Nigéria. É grande a variedade étnica e idiomática da China e da Indonésia. A Espanha tem quatro línguas tradicionais – o castelhano, o galego, o catalão e o basco. Etc. E temos até mesmo a diversidade dialetal alemã, com a língua-padrão e uma dezena de dialetos, onde um alemão de Berlim pode não entender um da Baviera. São coisas que nada têm a ver com o Brasil. O português brasileiro é a língua falada em todo o país, das praias do Amapá aos campos do Rio Grande do Sul. Partilhamos os mesmos códigos de cultura – e o código central é a língua. Apesar de variações idiomáticas internas, de ondulações dialetais, o fato é que nenhum de nós tem dificuldade para entender nossos conterrâneos.
Uma série de falsificações da história e da vida brasileiras é gerada, em especial, pela importação e aplicação, ao Brasil, de categorias “nativas” dos Estados Unidos, que nasceram em resposta a realidades específicas daquele país. Como quando se quer impor, à nossa realidade policromática, a fantasia racista norte-americana do país bicolor. Fantasia que, definindo os Estados Unidos como nação formada por “duas raças”, acrescenta que a cada uma dessas raças corresponde uma cultura distinta. Aqui, também o Brasil aparece como país de duas “raças” e duas “culturas” – bobagem solenemente repetida por um prestidigitador camaleônico chamado Fernando Henrique Cardoso, quando lançou seu programa nacional de direitos humanos. O fato de que o Brasil não é bicolor é coisa prontamente reconhecida pela vasta maioria da população brasileira, que é e se declara mestiça, como agora no Censo 2022. Quanto à ideia de nação de “duas culturas”, o Brasil não é país multicultural – é país sincrético. Entrelaçaram-se em profundidade todos os elementos, formas e práticas de cultura que aqui desembarcaram através dos séculos.
Veja-se a música brasileira. À exceção do que se toca nos terreiros de candomblé, não existe música negra no Brasil. Claro: a partir do momento em que opera com o sistema tonal – uma criação exclusivamente europeia que a música negroafricana jamais conheceu –, a pretensa música negra, como o samba, é na verdade música mestiça. Escreve o musicólogo Flávio Silva, em Musicalidades Negras no Brasil: “A adoção do sistema tonal inventado na Europa, propagado no Brasil pelas músicas sacras e profanas trazidas pelos portugueses, obrigou à utilização de instrumentos que possibilitassem a prática de melodias e de harmonias baseadas em escalas de sete sons temperados. Os variados ritmos negroafricanos foram substituídos pelo compasso binário e pelo ternário; no candomblé podem ser ainda encontradas melodias em escalas tetratônicas e pentatônicas. Ou seja: as músicas brasileiras – folclóricas, populares ou eruditas – decorrem, basicamente, do sistema clássico europeu, com alguma influência negra e, em menor escala, ameríndia, em variações que dependem da geografia e dos diferentes contingentes humanos originais. Não tem a menor sustentação a ideologia racista da predominância negra em nossa música. […] as variedades de sambas que vieram da África Negra foram aqui profundamente modificadas para se enquadrar no sistema tonal e no esquema da canção em duas partes, cuja introdução, no chamado samba urbano, nada tem a ver com tradições afronegras. […]. O samba urbano, depois transformado em esteio da nacionalidade, foi fabricado no Rio de Janeiro no final da década de 1920, e não só pelos que descendiam, parcial ou integralmente, de escravos”. O que aconteceu então no Brasil, musicalmente, foi um processo generalizado de tonalização do ouvido nacional.
Mas vou me concentrar aqui no maior de todos os estelionatos. No maior de todos os negacionismos de esquerda. É a negação do que o historiador marxista Caio Prado Júnior definiu como a característica central do nosso país e da nossa gente: a mestiçagem. Hoje, para negar o Brasil, o multicultural-identitarismo submete a mestiçagem a uma dupla falsificação. De uma parte, falsificação da mestiçagem no passado histórico nacional. De outra, falsificação da mestiçagem na sociedade presente. Com relação ao passado, tenta-se reduzir a mestiçagem a um tão colossal quanto irrealizável estupro em massa. Com relação ao presente, promove-se sistematicamente, com o apoio de uma legislação racista, o sumiço do mestiço. A fantasia mórbida da mestiçagem como estupro pode ser desmentida desde logo. Nossa primeira onda miscigenadora não contou com negros. Foi exclusivamente euro-ameríndia. E sem qualquer interferência estatal. É o “período caramuru” da vida brasileira, quando os brancos eram muito poucos, sem condição de impor qualquer coisa aos índios. Não seriam loucos de violar códigos indígenas de conduta ou de violar uma índia. As coisas só mudam quando a economia do escambo é substituída pela cultura dos canaviais. As realidades da guerra e da escravização se impuseram. Mas toda vez que algum fanático pretende absolutizar o estupro, é obrigado a fechar os olhos para três realidades que desmantelam a tese: o lugar da mulher na sociedade indígena, o caminho cultural do concubinato interétnico e, principalmente, a prática da mestiçagem entre iguais.
No primeiro caso, devemos lembrar que, no mundo indígena, as fêmeas eram servas dos machos, providenciando o pão de cada dia da aldeia. E eram encaradas como mercadorias do circuito das trocas comerciais. Quanto ao casamento interracial, escreve João Azevedo Fernandes: “… é impossível ver a miscigenação unicamente como um ato de força do colonizador, na medida em que esta só teve lugar junto àqueles povos indígenas que possuíam, em sua organização social, mecanismos de integração dos estrangeiros através do casamento”. No caso da mestiçagem entre iguais, o estupro não faz sentido. E aqui se deu a maior parte da mistura genética com grupos ameríndios. Mestiçagem de índios e brancos pobres, de par com a mestiçagem de índios e negros, resultando na imensa presença de cafuzos na população brasileira, de que temos milhões de exemplos modernos, do jogador Garrincha (descendente dos índios fulniôs) a músicos como Luiz Gonzaga e Djavan.
Costuma-se agora saltar a fase da mestiçagem luso-ameríndia porque ela contraria a fantasia ideológica do Brasil Bicolor, um país dividido entre brancos e pretos, igualzinho aos Estados Unidos. Mas o fato é que nossos primeiros mestiços foram pardos, sem gota de sangue africano e se distribuíram ao longo de todo o espectro social. Nos séculos XVI e XVII, a fatia maior dos mamelucos engrossaria o segmento social das pessoas mais pobres. Outra fatia, ao contrário, teria assento nas salas iluminadas da classe dominante. Boa parte dos senhores rurais e comerciantes urbanos ricos era mestiça. Descendia de índios que andavam nus, cultuavam entidades mágicas nada cristãs e praticavam a poligamia e a antropofagia. Famílias poderosas da região eram, na verdade, agrupamentos mamelucos. Com a chegada de negros africanos, a mestiçagem não se deslocou para o círculo circunscrito das trocas genéticas entre negros e lusos. Permaneceu mestiçagem generalizada. Mestiçagem entre índios e as camadas populares de brancos, mestiçagem entre índios e negros. Isto é o fundamental: aqueles processos de mesclas biológicas e culturais floresceram nas esferas menos formais e menos institucionalizados da vida social. Menos em gabinetes e alcovas senhoriais do que ao ar livre, nas clareiras, em caminhos públicos, nos mercados, nos arraiais que se formavam. Foram misturas em todas as direções. Mas, principalmente, entre pessoas do mesmo estamento social ou em situações socialmente próximas, fosse no segmento intermediário da sociedade ou em círculos proletários. Mestiçagem como processo popular e não necessariamente preso à vida rural. E a dinâmica e o dinamismo dos ambientes extracampestres incrementaram as misturas.
Duas coisas parecem impedir as pessoas de assimilarem de imediato a informação de que a mestiçagem brasileira foi processo popular: a desconfiança de que tenham existido por aqui brancos pobres e a crença de que o que tivemos foi uma sociedade drasticamente dicotômica, dividida entre senhores brancos e escravaria negra. Mas brancos pobres existiram aos montes. E a sociedade que aqui se configurou nunca foi dicotômica. A miscigenação se produziu sobretudo entre as massas socialmente menos favorecidas. Camadas de brancos pobres, pretos cativos ou libertos, índios livres, servis ou semisservis. Os brancos pobres sempre foram (como ainda hoje) a maioria dos habitantes brancos do país. A fantasia de que todo branco fosse senhor e todo escravo fosse negro não tem correspondência factual. O fluxo migratório de brancos pobres para cá foi estabelecido pela própria coroa lusitana. O velho reino enviou muitos mendigos, vadios e larápios para o continente africano, a Índia e o Brasil. Aliás, toda a Europa mercantilista enviava degredados para suas terras nas Américas: a Inglaterra desterrou vadios, ladrões e ciganos para suas possessões no Novo Mundo. Mas nem todo mundo veio para cá de modo compulsório. Quando decidiu sair de Viana do Castelo, o jovem Diogo Caramuru deixou para trás um Portugal que não oferecia maiores perspectivas de vida. Brancos pobres fizeram a travessia atlântica para povoar capitanias hereditárias. Colonos, pescadores e pequenos agricultores vieram para a Capitania de Porto Seguro. Duarte Coelho levou para Pernambuco lavradores pobres do norte de Portugal. Thomé de Sousa trouxe 600 soldados e 400 degredados: todos brancos – todos pobres. Em 1580, a Bahia contava já com 15 mil moradores. Apenas 36 eram senhores de engenho.
Para os dois séculos seguintes, muitos documentos ressaltam a penúria colonial. Alcântara Machado fala da pobreza em São Paulo, meio em que se deu intensa mestiçagem euro-ameríndia. Gregório de Mattos fala de pobreza e fome na Bahia do século XVII. Viajantes estrangeiros registram a pobreza da grande maioria da população do Rio de Janeiro, ao tempo em que veem a mestiçagem imperando na cidade Em todo o Brasil daquela época, foram raríssimos os brancos que conheceram a riqueza. E a situação permanecerá a mesma no século XVIII. Com relação a Salvador, Luiz Vilhena define o grosso da população branca e mestiça local como “uma congregação de pobres”. Diversos estudiosos das coisas mineiras negritam esta mesma realidade. Em Desclassificados do Ouro, Laura de Mello e Souza abre o foco: “Alusões à pobreza, à ruína, ao abandono a que ficavam relegadas as populações mineradoras representam a tônica dominante dos documentos do século XVIII mineiro”. E a pobreza pós-ouro foi também um fato. Ou seja: o luxo e a ostentação existiram, sim – mas como coisa de poucos. O que se viu, nas Minas Gerais do século XVIII, foi um mundo de pobreza e mesmo de miséria. Com relação a São Paulo, veja-se o censo realizado entre 1765 e 1767, por determinação do governador Morgado de Mateus. Censo que é mais uma porrada no estereótipo do branco rico cercado de legião de escravos pretos.
Falando dos segmentos menos favorecidos da população das Minas Gerais, Laura de Mello e Souza observa: “Brancos, pretos, mestiços, homens livres ou escravos fugidos, esses indivíduos aproximavam-se uns dos outros mais do que se tem dito… apresentavam intenso convívio e interpenetração”. Havia ali o encontro sexual de escravo com escrava, de negro ou mulato com negra ou mulata – mas, também, cruzamentos genéticos envolvendo brancos pobres, mulatos, cafuzos, pretos, cabras, caboclos, curibocas. E nem mesmo no cativeiro predominava a relação sexual entre o amo e sua propriedade. Mais da metade dos nascimentos no cativeiro derivavam da união de pais e mães escravos. Mas o principal aconteceu fora desse círculo. Fora do complexo casa-grande/engenho/capela, assim como fora dos sobrados senhoriais urbanos do Recife, de Salvador, de Ouro Preto. O principal aconteceu – e só poderia acontecer – em meio à multidão popular, nos mais variados cantos e recantos de nossas cidades. E foi aí, em meio a uma imensa multidão de oprimidos de todas as cores, que a mestiçagem se alastrou irresistivelmente, num processo biológico de massas.
De outra parte, tivemos a ascensão econômica de pretos, mulatos, cafuzos, etc. Além disso, muita gente ainda se surpreende com o que qualquer historiador sério está cansado de saber: no Brasil, muitos brancos não tiveram um só cativo – e muitos pretos e mulatos foram senhores de escravos. Pretos e seus descendentes ascendiam, entre outras coisas, através da alforria, da mestiçagem, do trabalho remunerado (serviços sexuais, inclusive). Isto aconteceu desde o início da colonização e em todos os embriões do processo colonizador. Escreve a historiadora Mary del Priore: “Pequenos engenhos, alambiques, plantações, criações de animais, a venda dos serviços de escravos, o pequeno comércio e mesmo a prostituição azeitavam a mobilidade de mulheres e homens livres, descendentes de africanos”.
Este processo ascensional, em sua dimensão econômica, marcou todo os espaços de implantação e avanço da empresa colonial desde o século XVI. Na Bahia, vamos encontrar negros libertos comandando armações da pesca da baleia, a exemplo de Marcos Pimental, ex-escravo que se tornou homem rico na Ilha de Itaparica. Assim como no caso das chamadas sinhás pretas da Bahia. Mulheres negras e mestiças de um modo geral – algumas africanas, outras já brasileiras – que conseguiram o que pareceria impossível: ganharam dinheiro, compraram sua liberdade e, já ricas, passaram a investir, preferencialmente, em escravos, imóveis e joias. Recebiam o respeitoso tratamento de “dona” nas principais cidades do Brasil colonial, a exemplo de Salvador, do Rio e dos núcleos barrocos das Minas Gerais. Algumas delas estão na origem mesma do candomblé jeje-nagô do Brasil. Escravas que se tornaram senhoras de escravos – como as ialorixás Iyá Nassô, fundadora do terreiro da Barroquinha; Marcelina Obatossí, fundadora da Casa Branca; Otampê Ojaró, fundadora do Alaketu; ou Maria Júlia Nazareth, fundadora do terreiro do Gantois – criaram os hoje famosos templos do nosso candomblé. Essas negras escravistas não só conquistaram sua liberdade, como lideraram ações político-religiosas que enriqueceram em profundidade a vida e a cultura brasileiras. E o contingente demográfico de libertos, entre nós, nunca cessou de crescer. Desde fins do século XVIII, o elemento livre foi numericamente preponderante no conjunto da população brasileira – e, nesse meio livre, negros e mestiços apareciam com destaque. Uma realidade objetiva que desmonta um mito criado pela sociologia marxista de São Paulo e ainda hoje cultuado pelos movimentos negros: o mito de que o 13 de Maio foi uma catástrofe social, na medida em que multidões de escravos teriam sido subitamente atirados, sem preparo nenhum para isso, na roda viva das cidades brasileiras. É uma tremenda mentira. Naquela época, no Brasil, escravos constituíam um conjunto bastante reduzido da população de cor. Em 1822, escravos somavam cerca de 50% da população do país. No 13 de Maio de 1888, mal chegavam a 5%.
Um outro impedimento para que as pessoas percebam que a nossa mestiçagem foi processo fundamentalmente popular, impossível de ser reduzido a mero estupro senhorial branco, está no equívoco generalizado de tratar a sociedade colonial brasileira como sociedade dicotômica – um mundo social drasticamente dividido entre senhores brancos e escravos pretos. Isto é falso. Aliás, em Novo Mundo nos Trópicos, deixando de lado a visão esquemática de Casa-Grande & Senzala, Freyre chegou a escrever: “Não nos esqueçamos de que a mestiçagem – a meia-raça – fez no Brasil as vezes de classe média”. Mais recentemente, outro meio termo, nestas análises, foi encontrado pelo marxista Jacob Gorender, em O Escravismo Colonial. Mas o ponto alto desta revisão crítica do Brasil está em O Arcaísmo como Projeto, de João Fragoso e Manolo Florentino, obra fundamental para o entendimento da vida econômica e social do Brasil entre os séculos XVI e XIX, enfatizando a verdade histórico-sociológica de que sempre fomos sociedade não-dicotômica. Sociologicamente, os brancos sem escravos ou brancos pobres, que eram a maioria da população branca no Brasil, não pertenciam à classe senhorial. E pretos e pardos economicamente bem-sucedidos, juntamente com brancos pobres e remediados, confluíram para a composição de uma camada intermediária na vida brasileira.
A estrutura social que aqui principiou a se configurar, já ao longo do século XVI, não se caracterizava pela divisão drástica entre os polos do senhor e do escravo, nem por uma rigidez extrema. Veja-se o que o historiador português Jorge Couto diz o assunto, em A Construção do Brasil, estudo dedicado exclusivamente ao nosso mundo quinhentista. Diversas categorias sociais entraram nesse jogo. Lavradores, criadores de gado, rendeiros, mercadores, artesãos livres, fundidores, alfaiates, mestres do açúcar, oleiros desempenharam um papel intermediário na estratificação social do Brasil Colônia. Jorge Couto vai ao grão da questão: “Esta estrutura social não era estanque, caracterizando-se, antes, pela existência de um importante grau de mobilidade”. Tínhamos já abertos, no século XVI, caminhos para a ascensão de escravos – negros ou mestiços – alforriados. Caminhos que se alargariam de forma impressionante nos séculos seguintes, conduzindo grupos expressivos de ex-escravos ao segmento intermediário da sociedade. Ou seja: mesmo numa sociedade escandalosamente desigual, conduzida por uma classe dominante/dirigente racista, a ascensão econômica e social de negros e mestiços é fato reconhecido por todos os que se detêm a examinar a matéria. E isso fazia com que a mestiçagem, que era franca nos horizontes abertos da massa popular, permeasse também os processos ascensionais da gente de cor.
Insistimos primeiramente em sublinhar a mestiçagem em sua dimensão mais popular. Brancos pobres e pretos e mestiços livres, mas igualmente pobres, não pertenciam à classe senhorial, vivendo mais próximos entre si, nos mais diversos instantes e instâncias da vida social. Era esta a base sociológica objetiva, material, que os aproximava, produzia encontros e convívios, gerava mais mesclas simbólicas e misturas genéticas. Em seguida, focalizamos a mestiçagem no estrato intermediário da população colonial. Cruzamentos e intercruzamentos entre brancos, negros e mestiços que tinham já suas posses, bens móveis e imóveis e alcançaram mesmo o patamar de proprietários de escravos. Juntando as duas coisas, podemos falar então de dois planos principais em que aconteceram as mestiçagens extra-senhoriais no Brasil: aquela que se processou em meio à base mais popular da sociedade colonial – e aquela que se processou no âmbito dos segmentos intermediários, da classe média desta mesma sociedade. Mas vamos agora pegar as coisas de outro ângulo. Iluminar um outro aspecto de nossos processos de cruzamentos genético-simbólicos: mestiços mestiçando-se com mestiços. Sim. À entrada do século XVIII, boa parte das mestiçagens brasileiras acontecia entre pessoas já mestiças. As misturas prosseguiam, mas agora em meio a uma população que já se vinha misturando há uns bons duzentos anos e que, àquela altura, mostrava-se já visível e significativamente mestiçada. A mescla não mais se dava apenas entre seres nitidamente distintos, “puros”, envolvendo um branco europeu e um índio brasílico ou um desses dois e um negro africano, por exemplo. Não. Muitos dos elementos que participavam desses jogos genéticos eram “impuros”, “contaminados”, produtos de misturas e combinações anteriores. Amálgamas não só dos tipos “puros” que entraram em cena com o trio rácico original, mas já de mulatos, caboclos e cafuzos com outros cafuzos, caboclos e mulatos. Maré das mestiçagens entre seres já mestiços. Foi o que permitiu que atravessássemos dois dilúvios etnoculturais, entre o início do século XVIII e o início do XIX – ou entre o avanço do mundo aurífero nas Minas Gerais e o desembarque da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Foi este o período fundamental que estruturou e garantiu a nossa futura projeção diferenciada como povo no horizonte mundial. Aí se deu a consolidação do Brasil Mestiço. Uma realidade que o multicultural-identitarismo pretende atirar na lata de lixo.
Vamos tratar agora da falsificação do nosso presente, sublinhando que ambas as falcatruas exibem o mesmo objetivo: o combate à mestiçagem. Em tela, a fusão forçada de pardos e pretos num amplo segmento “negro” da população brasileira. Mas, antes de narrar os fatos, vamos a uma rápida ressalva. Justificada e merecidamente, costumamos atribuir o embuste ao IBGE. Claro. Embora mantenha a categoria “pardo” em seus mapeamentos censitários, o IBGE não se manifesta sobre a fraude estatística feita em seu nome. Logo, comete, no mínimo, crime de omissão. E no máximo, o que é mais provável, pactua com a violação da verdade demográfica brasileira. A ofensiva fraudulenta se configura entre o final da década de 1970 e a entrada do decênio seguinte, com a já famigerada importação do binarismo racista norte-americano, sob pressão da esquerda racialista, do identitarismo negrista local. “Nos anos 1980 organizações do Movimento Negro esforçaram-se por influenciar o desenho do censo nacional. Além de demandar a reintrodução da questão da cor, que havia sido excluída do censo de 1970, elas também propuseram a substituição das categorias preto e pardo por negro, a fim de reorganizar as identidades raciais em torno do seu novo projeto político”, escreve a socióloga Verônica Toste Daflon, em sua tese Pretos e Pardos e o Enigma Racial Brasileiro. Tratava-se de uma jogada: instrumentalizar a massa mestiça demograficamente maioritária em função dos interesses de grupos da minoria preta. Mas logo eles viram que a substituição de preto e pardo por “negro”, no questionário do censo, reduziria espetacularmente o tamanho da população negra. E mudaram de tática.
Em todo caso, o tópico da cor foi reinserido no censo, sob pressão acadêmico-militante. E, a partir daí, dados quantitativos sobre pretos e pardos, embora coligidos separadamente, são depois fundidos nas análises e tabulações dos interessados. O próprio governo federal passou a solicitar isso. E assim teve início o processo de promoção de um enegrecimento artificial do povo brasileiro. No relato de Denis Moura dos Santos sobre o mesmo assunto, A Visão das Pessoas Pardas pelo Estado Brasileiro, são realçados outros aspectos do que aconteceu: “No final da década de 1970, os sociólogos Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva passaram a estudar os dados existentes em pesquisas do IBGE, por meio de intersecção entre os dados econômicos e os dados raciais. A conclusão desses estudos mostra que os índices econômicos e sociais entre a população parda são semelhantes ao da população negra, e diferentes em relação à população considerada branca.
Desse modo, em um momento em que existiam reivindicações para que fosse realizada a divisão da população entre ‘brancos e negros’, em uma linha birracial criada pelos Estados Unidos, esses resultados passaram a ser usados como base para que entidades relacionadas às questões da população negra passassem a recusar os termos oficiais e extraoficiais (cafuzo, mulato, caboclo, pardo) para a classificação da população mestiça, que não era negra ou branca. O fundador de uma das entidades relacionadas à questão das pessoas negras, a Educação e Cidadania de Afrodescentes e Carentes (Educafro), Frei David Raimundo dos Santos, descreve o acordo feito com o IBGE para que, em todos os estudos realizados pelo Instituto, os dados relacionados aos pardos e aos pretos fossem reunidos em uma terminologia, a de ‘negros’. Dessa forma, fortaleceu-se o discurso do movimento negro de que os pardos e os pretos deveriam ser considerados ‘negros’ […]. Entretanto, aqueles que usam esse conceito não levaram em consideração a existência dos mestiços de ascendência indígena e europeia que não possuem antepassados africanos, e também ignoraram o fato de que a miscigenação gera descendentes com ascendências múltiplas e que estas também podem ser manifestadas em sua aparência e na percepção que as demais pessoas possam ter sobre eles”.
Cabem aqui duas observações. A primeira é que os movimentos negros fizeram de conta que aqueles estudiosos não se referiam estritamente ao campo econômico. Mas Hasenbalg é claríssimo a este respeito: “Cabe agregar que quando estudamos essas desigualdades, opondo brancos/não-brancos (pretos e pardos), nos referimos estritamente a processos de estratificação socioeconômica.
Quando examinamos outras dimensões da vida social envolvendo a sociabilidade dos indivíduos (por exemplo, o casamento e a amizade), esse padrão não se verifica, com os pardos se diferenciando dos pretos e se aproximando dos brancos”. Os movimentos negros passaram por cima da ressalva fundamental: estenderam o que era estritamente econômico ao conjunto inteiro das relações sociais. A segunda observação é sobre a questão da ascendência indígena na demografia brasileira. O historiador José Murilo de Carvalho, no texto “Genocídio Racial Estatístico”, foi ao grão da questão: “Está em andamento no Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrado com a arma da estatística. A campanha é liderada por ativistas do movimento negro, sociólogos, economistas, demógrafos, organizações não-governamentais, órgãos federais de pesquisa. A tática é muito simples. O IBGE decidiu desde 1940 que o Brasil se divide racialmente em pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas. [Da década de 1990 para cá] os genocidas somam pardos e pretos e decretam que todos são negros, afrodescendentes. Pronto. De uma penada, ou de uma somada, excluem do mapa demográfico brasileiro toda a população descendente de indígenas, todos os caboclos e curibocas. Escravizada e vitimada por práticas genocidas nas mãos de portugueses e bandeirantes, a população indígena é objeto de um segundo genocídio, agora estatístico”. Aqui, já vemos duas coisas. Primeiro: o IBGE trocou o estatístico pelo ideológico. Segundo: a grande mídia brasileira celebra o genocídio, convencida de que celebrá-lo é fazer “justiça social”.
O que temos é um tripé fraudulento. O sujeito só é registrado como índio se estiver numa aldeia ou se se autodeclarar índio. Caso contrário, por mais caboclo que seja, é compulsoriamente enquadrado como pardo. O passo seguinte é juntar pardos e pretos numa só categoria, os “negros” – e assim se articula a falcatrua político-acadêmico-midiática, com o beneplácito da classe dominante brasileira, de que os “negros” formam a maioria da população do país. Quando, na verdade, pardos sem ascendência negra poderiam mais corretamente ser classificados como índios do que como pretos. O IBGE, o identitarismo político-acadêmico e a elite midiática nacional varrem os índios dos mapas genéticos e das leituras sociobiológicas do Brasil. Apesar dos estudos do geneticista mineiro Sérgio D. J. Pena, mostrando o poderoso componente ameríndio na configuração biológica do nosso povo. Veja-se a propósito, entre outros, um livro como Homo Brasilis, no qual, logo no prefácio, lemos a conclusão da biologia genética: “…os brasileiros constituem provavelmente o grupo humano geneticamente mais diverso do nosso planeta e estão muito além de qualquer tentativa de síntese”. Menos ainda de uma falsa síntese, como a de “negros”. O que o governo, o sistema político-universitário, o empresariado “diversitário” e a mídia ao mesmo tempo esperta e colonizada desejam (e estão fazendo) é jogar no lixo esta simples e profunda verdade sobre nós mesmos.
O quadro é este: ao genocídio estatístico, soma-se o apagamento do mestiço caboclo, seja ele caboclo sertanejo ou caboclo amazônida, da esfera das políticas públicas nacionais. Entramos, enfim, na esfera do pardocídio tristetropical brasileiro. E não são só os descendentes de índios: sararás, mulatos claros, morenos, etc., que se recusam a ser “negros”, passam a párias ou miragens. Vale dizer, além do genocídio estatístico do caboclo, temos o genocídio estatístico de morenos e mulatos – o que também implica, obviamente, o seu eclipsamento no terreno das políticas públicas. Enfim, ser mestiço, hoje, é coisa que não dá camisa a ninguém. E muito mais: ser mestiço, nesse meio governamental-acadêmico-militante-midiático, virou uma espécie de ficção incômoda, sinônimo de invisibilidade e de inexistência, pedreira a ser removida do caminho hostil e desastroso das movimentações racistas. O que é criminoso – mais do que escandaloso – num país como o Brasil, onde a vasta maioria da população, além de ser não-branca, é também não-preta. E, pelos números do próprio IBGE, bem mais não-preta do que não-branca.
Não será demais acompanhar os lances principais desse processo de racismo antipardo, racismo antimestiço, no âmbito dos poderes executivo e legislativo (as togas roçagantes do Supremo Tribunal Federal, atualmente, dizem amém a todo modismo acadêmico norte-americano e aos movimentos identitaristas, sempre a emitir asneiras sem fim sobre a história, a cultura e as realidades brasileiras). No âmbito do poder executivo, tudo começa durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, um pardo, mulato entre o claro e o escuro, sujeito que, como ele mesmo disse, tem “um pé na cozinha”. Foi em 1996 que assistimos a um passo decisivo tanto para a implantação de políticas públicas de caráter “racialista”, quanto para as falsificações numéricas da situação nacional. Naquele ano, Fernando Henrique, deixando vir à tona sua face negacionista, lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos, estabelecendo que o IBGE deveria, a partir de então, juntar mulatos, caboclos, morenos e pretos sob uma única rubrica ou etiqueta, ali batizada de “contingente da população negra”. O IBGE tratou assim de comprimir as diversas variações cromáticas brasileiras num bloco só, aproximando-se imitativamente dos Estados Unidos, como se o Brasil fosse um país onde só existissem negros e brancos.
Com Lula, o jogo avançou. Os movimentos negros, que vinham ganhando terreno desde as primeiras políticas compensatórias do governo de José Sarney, implantaram-se de vez no aparelho estatal. O passo seguinte foi em direção a um projeto de lei para implementar o inadequadamente chamado “Estatuto da Igualdade Racial”. Em sua versão inicial, o projeto de lei previa uma indenização para descendentes de escravos, mas o tópico foi descartado, já que não se conseguiu chegar a um acordo sobre o assunto (nem seria possível: no Brasil, não só pretos, mas índios foram também escravizados; muitos pretos foram senhores de escravos; muitos descendentes de escravos são hoje mulatos bem claros, praticamente brancos). Mas, enfim, o tal do estatuto da igualdade racial, com a aprovação do Senado e da Câmara dos Deputados, acabou virando lei em julho de 2010, no final do segundo mandato do presidente Lula. Uma lei que estabelece que é negro mesmo quem não tem uma só gota de sangue negro nas veias. Um crime estatístico, com suas consequências na deformação e desorientação de políticas públicas compensatórias, como as políticas de preferência racial. E é por isso mesmo que a Lei 12.288/2010, o “Estatuto”, tem de ser classificado como racista na sua exclusão de índios e dissolução do mestiço. É a legislação racista hoje em vigor no Brasil, instituindo uma realidade até então inédita em nossa história: o racismo de Estado.
Tudo convergindo para promover o sumiço do mestiço, como persona non grata na paisagem nacional brasileira. De uns tempos para cá, a palavra “mestiço” praticamente sumiu do mapa. Desapareceu das salas de aula e de seminários acadêmicos, dos discursos das elites midiática e empresarial, das páginas de jornais, revistas e livros de história, antropologia, sociologia e política que falam do Brasil e das coisas brasileiras. E isto significa que os pretensos cronistas, repórteres, estudiosos e “intérpretes” do nosso país há tempo não olham para ele, para as pessoas que circulam em nossos espaços públicos e domésticos, nem para si mesmos. Falam do Brasil como se estivessem falando de outro lugar, desde que – por uma imposição acadêmico-ideológica norte-americana, copiada pela universidade e a classe dominante brasileiras – decidiram fechar os olhos à história biológica, social e cultural de nossa gente. Porque é impossível, sob pena de falsificação grosseira, tratar da configuração histórico-social do Brasil sem tratar da grande mestiçagem popular brasileira. O Brasil é produto de um processo intenso e contínuo de contatos e trocas físicos e culturais. De escambos biológicos e simbólicos. Com todas as assimetrias e crueldades que marcaram a construção histórica do país, nossas formas de viver, criar, produzir, amar, falar, cantar e pensar são indissociáveis das nossas mestiçagens. Que alguém hoje se veja obrigado a repetir, alto e bom som, que o Brasil é um país mestiço – eis aí a prova mais ostensiva e escandalosa do quanto andamos alienados com relação a nós mesmos.
Alienação promovida e imposta por uma elite esquerdista hoje patrocinada pela classe dominante e pela grande mídia. Tudo convergindo para promover o sumiço do mestiço, como persona non grata na paisagem nacional brasileira. Sob poderoso bombardeio midiático e benesses do poder público e do setor privado, parecia que a cartada daria certo, contando para isso, inclusive, com o oportunismo “macunaímico” de parte da população: todo mundo querendo mudar de cor a fim de se beneficiar das políticas e dos projetos raciais que elegeram “os negros” como sua clientela preferencial. Para a minha surpresa, não foi o que aconteceu. Ao contrário: o que tivemos foi a afirmação enérgica das massas mestiças brasileiras no Censo de 2022, no tocante à “identificação étnico-racial da população”. Os números dizem tudo. Pela postura da nossa gente, o resultado é do conhecimento geral: o Brasil é hoje um país onde 45.3% da população se definem na categoria pardo-mestiça. 43.5% se dizem brancos. E apenas 10.2% se consideram pretos. Uma derrota espetacular para a elite e a militância racialistas, que procuraram disfarçá-la com uma tese que o povo brasileiro não comprou: a de que pardo é “negro”. Uma vitória ainda mais espetacular para quem quer ver e viver o Brasil real, em toda a nossa riqueza cromática e cultural.
Texto: IELA
Texto: Elaine Tavares
Texto: Nildo Domingos Ouriques