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De Geografia e de Diversidade: contribuição para um diálogo de saberes

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Por IELA em 13 de maio de 2019

De Geografia e de Diversidade: contribuição para um diálogo de saberes

Professor da UFF

Falar em diversidade e de diálogo de saberes implica reconhecer que há múltiplas versões, múltiplos lugares, múltiplas culturas, múltiplos povos, múltiplos grupos/classes sociais. Implica se perguntar porque tantos foram negados, olvidados e, assim, que não basta reconhecer que são múltiplos. Sabemos como os negócios e os negociantes contribuíram para isso quando começaram a impor a ideia de ganhar dinheiro como leitmotiv do sistema mundo que, surgido em 1492, nos governaria até hoje. E falar de negócio é falar de negar o ócio – negotium – e, assim, negar outras relações com a vida, outros modos de estar no mundo, enfim, outras versões, outros lugares, outras culturas, outros povos, outros grupos/classes sociais. Enfim, junto com a expansão dos negócios e dos negociantes, colonização.
Assim, em 1492 o mundo começa a se desorientar. Isso mesmo, a desorientar-se. Afinal, até ali todos os caminhos se dirigiam ao Oriente até que os turcos em 1453 tomaram Istambul, ou melhor, Constantinopla. E essa desorientação leva às Índias Ocidentais (ou Acidentais?) que encobrindo seus habitantes originários passará a ser denominada com múltiplos nomes (Nova Granada, Nova Inglaterra, Nova-Algum-Lugar-Europeu) até que o nome América se consagre, sobretudo com as independências onde os filhos dos colonos brancos nascidos nesse outro continente vão afirmar o nome América. Sim, até 1776 com o primeiro abalo na geopolítica colonial com a independência dos Estados Unidos, o nome América não circulava em uso público. 
Entendamos a desorientação: até 1453/1492 a Europa estava marginalizada dos principais circuitos comerciais que iam buscar os negócios da China, o Oriente. Desde então, a Europa se colocará como centro nomeando o outro continente que então passara a conhecer como Índias Ocidentais e só a partir de então a Europa ganhará centralidade política e econômica. E como o poder não se sustenta somente na economia, impôs seu sistema de saber como parte do sistema de poder. Epistemicídio. Assim, passaremos a ver o mundo com a ideia eurocêntrica de conhecimento universal. O que se visa aqui com essas primeiras palavras é um diálogo de saberes que supere a colonialidade do saber e do poder (Quijano, 2005 [2000]).
O que se critica aqui não é a ideia de pensamento universal, mas, sim, a ideia de que há Um e somente Um pensamento universal, aquele produzido a partir de uma província específica do mundo, a Europa e, sobretudo, a partir da segunda metade do século XVIII, aquele conhecimento produzido a partir de uma subprovíncia específica da Europa, a Europa de fala inglesa, francesa e alemã, enfim, a Europa da segunda moderno-colonialidade, que teima em olvidar o conhecimento produzido na primeira moderno-colonialidade, aquela de fala espanhola ou portuguesa (Porto-Gonçalves, 2002: 217).
Com essa desprovincianização da Europa da ideia de pensamento universal o que visamos é o deslocamento do lugar de enunciação e, assim, proporcionar que outros mundos de vida ganhem o mundo, mundializando o mundo. Insistimos que não se trata de negar o pensamento europeu, o que seria repeti-lo com sinal invertido, mas sim dialogar com ele sabendo que é europeu e, portanto, um lugar de enunciação específico, ainda que sabendo (1) que essa especificidade não é igual a outros lugares de enunciação pelo lugar que ocupa na contraditória estrutura do sistema mundo moderno-colonial, (2) nem tampouco que esse lugar de enunciação europeu seja homogêneo e não abrigue perspectivas contraditórias, sejam de afirmação da ordem, sejam de perspectivas emancipatórias. Enfim,  o lugar de enunciação não é uma metáfora que possa ignorar a materialidade dos lugares, enfim, a geograficidade do social e do político (Porto-Gonçalves, 2003). 
Assim, falar de transversalidade é convidar a que se desprovincianize a razão. Com a prática do negócio muitos foram considerados ociosos, preguiçosos e indolentes, movidos por um tempo lento, afinal entrávamos no tempo dos negociantes: time is Money. A cartografia passou a medir o espaço pelo tempo em segundo e minutos de latitude e longitude com uma nova projeção, a de Mercator [1], que viria facilitar em muito a vida dos mercadores. Assim, os povos e regiões não-europeias do mundo passaram a ser alinhados numa linha do tempo que lhes era estranha, imposta. Enfim, para promover necessária desprovincianização e o reconhecimento de outros lugares de enunciação é preciso trazer o espaço para dentro da história e deixá-lo falar. A visão unilinear do tempo silencia outras temporalidades/outras territorialidades que conformam o mundo simultaneamente. Sucessão e simultaneidade, sucessões simultâneas, eis o espaço-tempo.
O mundo não tem um relógio único. Nesse sentido, é preciso abandonar essa visão linear do tempo e que não é só um tempo abstrato, mas um tempo europeu, branco, burguês e fálico da segunda moderno-colonialidade (Dussel, 2005 [2000]), e se abrir para as múltiplas temporalidades que conformam os lugares, as regiões, os países, enfim, os territórios que as conformam.
Assim, a cartografia da Terra foi grafada pelo Papa, em 1493, com um meridiano, o de Tordesilhas e, desde o século XIX, a Ciência laica se encarregaria de remarcar um novo ponto zero de onde passa a recartografar o mundo, agora a partir do meridiano de um subúrbio de Londres, Greenwich. Marca-se o globo como se marca o gado para lembrar que tem dono!
Embora a segunda moderno-colonialidade, aquela do Iluminismo, procure ignorar a verdadeira revolução no conhecimento da primeira moderno-colonialidade, é preciso assinalar que a missão ibérica, ao mesmo tempo em que estava consagrada pelo Deus cristão, se ancorava na melhor ciência matemática, cartográfica, náutica em suas grandes navegações. “Navegar é preciso, viver não é preciso” [2] (Fernando Pessoa), enfim, navegar é coisa do campo da técnica, da precisão, e os portugueses foram grandes navegadores, sobretudo. Não é incompatível a missão salvacionista e evangelizadora com um saber rigoroso, técnico como, mais tarde, na segunda moderno-colonialidade, se tentará fazer crer. A primeira máquina verdadeiramente moderna, o relógio, surgiu nos monastérios da Idade Média exatamente para controlar o tempo das orações de modo objetivo (Mumford, 1942 e Porto-Gonçalves, 1989). Na verdade, a ciência da segunda moderno-colonialidade está impregnada de um sentido religioso de emancipação. Não nos cansamos de ouvir, ainda hoje, que a ciência opera milagres.
A América experimentará essa razão moderno-colonizadora de um modo muito próprio. As primeiras cidades verdadeiramente planejadas racionalmente no mundo moderno-colonial surgiram na América, onde o espaço da plaza foi concebido sob o signo do controle, da dominação. Já, ali, haviam desplazados. As primeiras manufaturas moderno-colonizadoras se montaram em Cuba, no Haiti, no Brasil haja vista o açúcar não ser exportado para a Europa in natura, mas, sim, manufaturado. A própria monocultura, enquanto técnica, inicialmente para o cultivo da cana, era uma imposição, haja vista a impossibilidade material de um povo ou uma comunidade qualquer se reproduzir fazendo monocultura para si próprio. Assim, a monocultura não é só a cultura de um só produto, mas também a cultura para um só lado. Por isso a energia da chibata para mover o sistema. Afinal, ninguém faz monocultura espontaneamente até que tenhamos subjetivado as relações sociais e de poder assimétricas e contraditórias (a mão invisível do mercado foi precedida de outra mão bem visível que brandia a chibata). 
Desde o final da segunda guerra mundial que a centralidade do pensamento europeu vem perdendo terreno junto com a descolonização da África e da Ásia e o surgimento de dezenas de novos estados nacionais num contexto marcado pela guerra fria, mas é a partir dos quentes anos sessenta que o direito à diferença ganha maior visibilidade. 
O questionamento das fronteiras que hoje se vê é, assim, o melhor indício de que as relações sociais e de poder estão sendo desnaturalizadas. O questionamento da conformação geográfica de poder do estado territorial vem sendo feito por cima e por baixo no período atual de crise do sistema mundo moderno-colonial. Nesse sentido, múltiplos grupos/classes sociais passam a falar a partir de diferentes lugares/regiões trazendo seus mundos de vida, numa polifonia desnorteadora que indica o caos sistêmico que vivemos. Desnorteadora tal como em 1492 foi desorientadora? Não sabemos no sentido do saber/episteme, mas experimentamos/sabemos com o corpo: sabor e saber, savoir e saveur, sapore e sapere. 
Sublinhemos o significado do fato de vermos, hoje, outros protagonistas emergindo à cena política, como os camponeses, os povos/etnias/nacionalidades indígenas e quilombolas. Não estamos aqui diante de um conceito qualquer: protagonista deriva do grego protos, primeiro, principal e agonistes, lutador, competidor (Cunha, 1992: 641). Estamos, assim, diante daquele que luta para ser o primeiro, o principal num sentido muito preciso daquele que luta para ser o princípio, que é de onde vem príncipe, isto é, aquele que principia a ação. [3] Numa sociedade democrática o príncipe deixa de ser escrito com letra maiúscula, como o fez Maquiavel, pois é quando a igualdade se inscreve como condição de cada quem poder tomar a iniciativa, o que pressupõe a conversa, isto é, o diálogo, a versão diferente que, só tem sentido verdadeiro, insisto, na igualdade. Como afirmara Hanna Arendt (Arendt, 1987), a iniciativa da ação é o cerne da política. 
A globalização que muitos acreditavam socioculturalmente homogeneizadora se mostrará, ao contrário, “não só não provoca a uniformidade cultural esperada ou anunciada e, mais ainda, complica o fato cultural e em seu seio se registra um forte renascimento das identidades, acompanhado de lutas reivindicatórias em crescimento” (Diaz-Polanco, 2006: 16). E, mais que multiculturalismo, como certa narrativa pós-moderna quer sugerir, é a interculturalidade que vem sendo sugerida “desde abajo” quando os grupos/classes sociais em situação de subalternização reivindicam a ruptura das relações de dominação/exploração que acompanham o sistema mundo capitalista moderno-colonial e que impedem o verdadeiro diálogo entre as culturas/os povos (Walsh, 2002). Até porque a cultura não é algo abstrato, mas implica o comer (agri+cultura), o habitar, respirar, o curar-se (as medicinas), enfim, o espaço concreto (com significado) [ 4] da vida.
 
Notas
1 A projeção de Mercator foi criada em 1569 por Gerhard Kremer (1512-1594), nascido nos Países Baixos.2 Viver não tem precisão técnica, continua o poeta Fernando Pessoa: “Navegar é preciso. Viver não é ´preciso”.
3 Machiavel soube vê-lo. Daí O Príncipe4 Não há apropriação material de algo sem sentido. Toda apropriação material é simbólica. O território é onde a cultura se materializa e, ao mesmo tempo, onde a natureza é significada (territorialidade). Como o signo nunca pode conter seu referente “objetivo” é sempre possível dizer de outro modo o mundo. A palavra pedra nunca será sólida, assim como a palavra água nunca matará a sede de ninguém. Todavia, os homens e as mulheres só vivem através dos símbolos, dos signos, das representações que nunca poderão conter o mundo que representam, simbolizam, significam. Nenhum livro, seja sagrado ou científico terá o contexto no texto, razão de tantos dogmatismos. Como diria Pierre Bourdieu, é da natureza da realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social.
 
Bibliografia
 
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