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De Pandemia, de Ciência e de Religiões: algumas notas

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Por IELA em 22 de janeiro de 2021

De Pandemia, de Ciência e de Religiões: algumas notas

Ao contrário do que acreditava um Iluminismo cioso de sua superioridade, o avanço da Ciência não foi capaz de eliminar as crenças religiosas [1]. Aí estão o evangelismo e o islamismo a desafiar essa crença, haja vista sua manifestação como fenômeno social emergente, sobretudo depois que esvaneceram as perspectivas que também bebiam no iluminismo de um mundo mais justo aqui mesmo, na Terra, como prometiam o socialismo e o comunismo.
Chama a atenção a crescente força política dessas religiões entre os mais oprimidos/explorados/subalternizados, aqui entre nós no continente americano e no Oriente Médio, na Ásia Meridional e Norte da África. É como se o socialismo e o comunismo deixassem de ser a força de religação dos homens e mulheres mundanamente entre si e as religações voltassem a ser feitas de modo tradicional pelas religiões, tão condenadas na tradição iluminista, a princípio pelas direitas e pelas esquerdas e, mais recentemente, depois da queda do muro de Berlin, recuperada pelas forças políticas conservadoras de direita, inclusive, em nome dos valores ocidentais, admita-se o paradoxo de se fazer isso, inclusive, em nome do cristianismo cuja origem remete a uma região não ocidental. 
E haja paradoxo: isso vem sendo feito em nome do liberalismo que tanto critica o estado, mas tanto gosta dele, como estamos vendo desde os anos 1970. Afinal, o Cristianismo se ocidentalizara, se é que essa expressão não seja anacrônica, isto é, não corresponda à geografia da época, quando o Imperador Teodósio (347-395) impõe o Cristianismo como religião de Estado do Império Romano proibindo cultos outros, pagãos. À época o mundo, tal como se conta a história no Ocidente, ainda se orientava, ou seja, se referenciava no Oriente, portanto. Ainda que fizesse com que todos os caminhos levassem à Roma e rumar era o verbo que geografava esse sentido de levar à Roma, mundo imperial que nos dera os romeiros, os que iam a Roma. Como se vê são íntimas as relações entre geografia, linguagem e poder. Desnaturalizemos, portanto, a linguagem, a política e suas geo-grafias.
Mas hoje quando, com a pandemia, o espectro da morte se apresenta não mais como uma reflexão filosófica ou teológica, mas ali na esquina, aqui entre os vizinhos, a vida ganha sentido e, como tal, nos convoca ao seu sentido necessariamente natural e social ao mesmo tempo, de bios mais polis.
A vida de cada quem depende das relações e das relações de relações, como diz a física relativística e o pensamento quéchua-aimará do mundo andino. Nossos corpos são constituídos por poros que nos abrem/fecham aos demais seres vivos e outros seres inanimados revelando nossa incompletude, essa complexa relação entre autonomia e dependência que nos caracteriza. É pelos poros que nos comunicamos com o outro com quem nos complementamos, seja para obter oxigênio, água, alimentos em geral, seja para nos reproduzirmos. E, pela linguagem, conformamos sentidos em comum (comun+icação), pois, afinal, não existe linguagem individual. Os limites do individualismo liberal saltam à vista e se procuramos superar a pandemia, essas dimensões da vida em sua incompletude assinalam a necessidade de buscarmos outros sentidos comuns para a vida sem os quais a vida, vemos, corre perigo. 
Mas preocupa-nos um discurso que vem ganhando espaço e que invoca a Ciência numa perspectiva acrítica que nos lembra o tempo em que se acreditou que a peste era uma condenação dos deuses aos nossos pecados. A crença na Ciência é isso, uma crença, que, em si mesma, não é científica, por mais que nos afiliemos entre os que preferem esse regime de verdade (Foucault) que a sociedade moderna assumiu como seu em relação a outros.
É da natureza da realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social, já nos advertira Pierre Bourdieu. Dizer o que é a realidade social é uma construção intersubjetiva (política, comunitária) através do que conformamos uma realidade de facto, com fatos que, tal como nos advertira Marx n’A Ideologia Alemã, sejam empiricamente verificáveis. Mas isso não é suficiente para desqualificarmos os que vêm sendo acusados de negacionistas ou de terraplanistas, simplesmente acusando-os de negacionistas ou terraplanistas em nome de uma crença na Ciência, assim, de modo abstrato, como se bastasse nossa autodeclaração de afirmarmos a Ciência, como se fosse uma nova forma de discurso canônico que não mais seria a verdade da Bíblia, mas agora da biblio-grafia e seus textos, intelectuais e instituições (con)sagrados.
A verdade, sabemos, ou deveríamos saber, nunca está nos textos, mas nos contextos, inclusive, com as conexões que sejamos capazes de fazer, de construir, sempre em relação nas mais diferentes escalas da vida (bios + polis), nas suas múltiplas formas de universalizações (ou pluriversalizações?) possíveis. Afinal, empiricamente, o Sol nasce todo dia à direita de meu escritório e se põe à minha esquerda, mas nem por isso deixo de acreditar no heliocentrismo copernicano e não no geocentrismo.
Mas essa aceitação, nesse contexto argumentativo, nos mostra que, por mais que devamos aceitar que a realidade dos fatos deva se sobrepor às nossas crenças, como reivindica o materialismo e toda uma tradição empírica, isso não se dá por uma afirmação canônica, mas sim por nossa capacidade de abstração que pode nos levar a uma compreensão da complexidade do mundo para além das aparências. Mas defendamo-nos daqueles que se arrogam deter o acesso às essências para além das aparências, seja em nome de um texto sagrado, seja de um método mágico ou científico.
Método, em grego, indica o caminho a ser seguido, e a Ciência, como tal, sempre se vê diante do paradoxo do método na medida em que a ciência se move em direção ao desconhecido que quer fazer conhecido e, como tal, não pode haver um método a priori que, como tal, já é conhecido de antemão que possa nos levar ao desconhecido. A dúvida, metodicamente conduzida, é a melhor receita, já nos indicaram René Descartes e Karl Marx, pensadores tão distintos entre si, mas que nos convidam à abertura para a Ciência, apesar de tantos dogmatismos tenham sido construídos a partir, e apesar, deles.
Vivemos uma quadra histórica em que as instituições estão sendo postas em xeque indicando o caos sistêmico que atravessamos. E é uma transição de larga duração e não somente a crise de um modo de produção, embora também o seja. O capitalismo é esse conjunto de relações sociais e de poder que organizou esse mundo e essa civilização que colonizou o mundo-que-aí-está-em-crise. A Ciência, regime de verdade da modernidade-colonial, está hoje profundamente implicada com os blocos de poder que nos domina e devasta o mundo da vida. Uma das narrativas com que o mundo do agronegócio procura se autolegitimar é o da sua modernidade tecnológica cientificamente sustentada, um dos seus principais instrumentos de poder. E não estão faltando com a (sua) verdade.
Ele se bate contra outros modos de construção de mundos, como o dos camponeses e dos povos com outras matrizes de racionalidade, permita-me estender a esses grupos sociais/povos uma categoria tão cara ao mundo ocidental, a razão. Mas como não existe grupo social/povo sem uma língua e toda língua tem sua lógica de construção de sentidos em comum, aceitemos que a razão é um bem mais bem distribuído pela geografia da história do mundo do que se admite.
Desde Hiroshima e Nagasaki aprendemos, ou deveríamos ter aprendido, que a Ciência não está necessariamente a serviço da humanidade, assim de modo abstrato. Desde que a Ciência se tornou uma força produtiva do capital, o que veio se dando desde que se deslocou o regime de verdade da Igreja para os Laboratórios e gabinetes, que ela se tornou politizada. Não atribuamos àqueles com quem divergimos a prática de estarem politizando o debate sobre a pandemia, sobre a ciência, sobre a vacina. Esse não é um defeito de nossos adversários, até porque a politização está dos dois lados em pugna, se é que são só dois lados. E não é necessariamente um defeito explicitar uma determinada perspectiva: esse é o sentido profundo da política e não demonizemos a política que é, justamente, a arte a ser recuperada. E é o que fazemos quando invocamos uma crença abstrata seja na Ciência seja nos Deuses colocando os homens e mulheres mundanos submetidos a esses lugares inacessíveis de construção de verdades.
Devemos, sim, reconhecer que entre as instituições que se encontram em crise estão o Estado e a Ciência, sobretudo nesse momento histórico em que estão em crise aqueles que mediavam sua verdade, isto é, seus intelectuais e suas instituições como as universidades, os parlamentos e a própria mídia. As redes sociais quebraram o monopólio de dizer a verdade e, com isso, o atual caos onde parece que as coisas não estão no seu devido lugar. Mas não esqueçamos que está no seu devido lugar é ordem determinada e é essa ordem-que-aí-está-em-crise que está demandando outros modos de construir a verdade.
Nesse mundo em caos até mesmo um olavismo terraplanista negacionista [2]  emerge como sinal do próprio caos, como se qualquer modo de dizer a verdade fosse igualmente válido. Afinal, sem abstração, a Terra é plana e é o Sol que gira em torno da Terra. Eis a verdade apequenada. Mas o problema não me parece ser uma defesa abstrata da Ciência como uma prática discursiva capaz de dizer a verdade do mundo. Me parece que o desafio maior é com quem vamos construir essa verdade, com quem vamos nos abstrair desse mundo construindo um mundo outro sem opressão/exploração/subalternização não como fim da história, mas como um novo momento em que a história se abre a homens e mulheres em permanente processo de abertura a outros mundos. 
Sim, queremos uma vacina diante da ameaça em que se vê a vida, mas não façamos da necessidade virtude. A Ciência, hoje, está capturada pelas grandes corporações estatais e capitalistas e foram essas instituições/organizações que levaram a vida a seus limites do que a atual pandemia é sua expressão mais dramática tanto do ponto de vista epistêmico como político. Invoco aqui, para finalizar, as palavras do agrônomo quéchua-equatoriano Luiz Macas: “Nuestra lucha es epistémica e política”! A esperança, o nome sugere, não é uma espera passiva, mas sim algo que se movimenta. 
Notas
1 – Nessa nota retomo as reflexões De Pandemia, de Ciência e de Volta à Normalidade publicada pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (https/iela.ufsc.br/).  2 – Referência a Olavo de Carvalho, o ideólogo brasileiro de Miami, um dos responsáveis pelo bolsonarismo.
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Calo Walter é Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Co-ordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da mesma universidade. Prêmio Casa de las Américas, em 2008, e Prêmio Milton Santos conferido pelo EGAL – Encontro de Geógrafos da América Latina, em 2019.

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